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A nação, mais do que libras, carecia de alma Nacionalismo literário e cultural

3. O FADO COMO EXPRESSÃO DA ALMA NACIONAL

3.1 A GERAÇÃO DE 1890

3.1.1 A nação, mais do que libras, carecia de alma Nacionalismo literário e cultural

312 CARVALHO, op. cit. 313 PIMENTEL, op. cit.

314 JUNQUEIRO, Guerra. Pátria. Porto: Lello & Irmão – Editores, (1990?) [1896]. 315 Idem. Finis Patriae. Porto: Lello & Irmão – Editores, 1967 [1890].

316 LEAL, Gomes. Fim de um mundo: satyras modernas. Porto: Livraria Chardron, 1899. 317 NOBRE, António. Só. Paris: Léon Vanier, 1892

318 SERRÃO, Joel. Temas Oitocentistas – II: para a história de Portugal no século passado. Lisboa: Portugália,

1962, p. 191, grifos no original.

Nesse ponto é preciso retomar, uma vez mais, o Ultimatum britânico de 1890. De acordo com Fernando Catroga e Paulo de Carvalho esse acontecimento “transformou-se num

facto cultural, de longa temporalidade e alcance, mais do que num facto político, que,

inegavelmente, também foi”.320 Seu efeito imediato, o despertar da consciência colonial,

impulsionou sentimentos nacionalistas que penetraram em todos os âmbitos da sociedade portuguesa.

Analisado, então, como acontecimento cultural, o Ultimatum, responsável por criar uma atmosfera de nacionalismo exacerbado, influenciou a produção de obras de considerável parcela da intelectualidade dos anos 1890. Guerra Junqueiro foi uma voz altissonante desse período.321 Já consagrado quando inicia a última década dos oitocentos,322 conta Rui Ramos que “ele era o homem que todo o jovem escritor gostaria de conhecer. Entre 1888 e 1892, no Porto, nos cafés e em filosóficos passeios pela Praça D. Pedro, arrastava atrás de si um voraz cardume de jovens aspirantes à glória literária”.323 Foi, contudo, em 1896, que alcançou

sucesso editorial com a publicação de A Pátria,324 peça na qual constrói um cenário ao mesmo tempo decadentista e nacionalista.

Antes do êxito alcançado com essa obra, Junqueiro pulicara, em 1890, Finis

Patriae,325 obra poética que melhor sintetiza o sentimento português pós-Ultimatum. Se, por

um lado, trata-se, conforme Fernando Catroga e Paulo de Carvalho, de um “assombroso poema panfletário que retrata, num pessimismo mórbido, um país em ruínas”, de outro há “um anelo regenerador, um grito de fé na imortalidade da Pátria”,326 que apela ao fim da

dinastia dos Bragança e que culpa a Inglaterra pela situação de Portugal. Sendo assim, embora influenciado pelo pensamento decadentista, o autor expõe uma perspectiva de futuro

320 CATROGA & CARVALHO, op. cit., p. 251, grifos no original.

321 A importância que ainda goza Guerra Junqueiro na atualidade é atestada pelo projeto Revisitar/Descobrir

Guerra Junqueiro, com coordenação e direção científica de Henrique Manuel S. Pereira, da Escola de Artes | Som e Imagem da Universidade Católica do Porto. Além do documentário Nome de Guerra, a Viagem de Junqueiro, do blog e site www.artes.ucp.pt/guerrajunqueiro, do livro e CD duplo A Música de Junqueiro e do DVD Lançamento/concerto: A Música de Junqueiro, o projeto publicou, em 2010, a obra À Volta de Junqueiro: Vida, Obra e Pensamento, a qual reúne entrevistas de renomados intelectuais, portugueses ou não, sobre a vida e a obra de Guerra Junqueiro (PEREIRA, Henrique Manuel S. À Volta de Junqueiro: Vida, Obra e Pensamento. Porto: Universidade Católica do Porto, 2010).

322 Guerra Junqueiro já havia publicado A Morte de D. João (1874), Viagem à Roda da Parvónia e A Velhice do

Padre Eterno (1885) (ibidem).

323 RAMOS, op. cit., p. 61. 324 JUNQUEIRO, 1990. 325 Idem, 1967.

manifestada pela crença na sobrevivência da nação. Observam-se, aqui, parte dos pressupostos literários e culturais característicos da década de 1890, que dão sustentação ao

modelo etnocultural de nação, tal qual definido no primeiro capítulo deste trabalho,

principalmente no que configura o nacionalismo, entendido como “forma de cultura” que conforma a nação.327

Exploremos a Finis Patriae de Guerra Junqueiro328 mais de perto. A crítica ao imperialismo inglês que desencadeou o Ultimatum ocupa o centro da obra. No poema Falam

estátuas d’heróis, manifestando, em tom apocalíptico, o pessimismo em relação à situação do

país, o autor proclama: “Que é da nação? – Morreu na história!”.329 Seu vaticínio denuncia a

vilania do “oiro inglês”,330 que fez imperar o “Deus Milhão”331 em troca da herança de

“grandeza” e “pujança”332 lusitana.

O ataque à postura inglesa amplia-se em À Inglaterra. Definida como “cínica” e “bêbeda impudente”,333 a nação inglesa é acusada de levar ao africano escravo “chitas e

hipocrisia, evangelho e aguardente”.334 Junqueiro ainda acusa a Inglaterra de se utilizar da fé

para realizar negócios: “A tua Bíblia é uma/ [agenda/ Em que a virtude heroica a cifras se reduz./ E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,/ Deus que ressuscitou para abrir uma tenda/ De cortiço, carvão, álcool e panos crus!”335

O anseio de regeneração a este estado de coisas vem expresso, em forma de redenção, em À mocidade das escolas. Nessa parte de Finis Patriae,336 Junqueiro, expondo

uma perspectiva de futuro, atribui à mocidade a tarefa de regenerar a nação, imortalizando-a. O tom é vocativo:

Beija-a nas mãos, cobre-a de flores, Não morrerá!

[...]

Pega na espada, arma e clavina, Não morrerá!

[...]

Dá-lhe o teu sangue ébrio d’aurora, Não morrerá!

327 SMITH, op. cit., p. 117. 328 JUNQUEIRO, op. cit. 329 Ibidem, p. 29. 330 Ibidem. 331 Ibidem, p. 30. 332 Ibidem, p. 29. 333 Ibidem, p. 45. 334 Ibidem, p. 46. 335 Ibidem. 336 Ibidem.

[...]

Rasga o teu peito sem cautela, Dá-lhe o teu sangue todo, vá! Ó Mocidade heróica e bela,

Morre a cantar!... morre... porque ela Reviverá!337

Conforme se mencionou anteriormente, Junqueiro alcança, em 1896, sucesso editorial com a peça A Pátria.338 De acordo com Fernando Catroga e Paulo de Carvalho, trata-se esta obra da “transmutação de Finis Patriae”.339 Na trama, sua crítica se constrói através de

personagens que representam aspectos da personalidade cultural portuguesa. Assim,

Astrologus, o cronista- mor de el-rei, representa o sebastianismo visionário, o rei é retratado

como figura inútil, Veneno, o fraldiqueiro anão, ladrinchador e lambareiro, e o doido representa os portugueses.340 Nesse trabalho merece maior atenção as Anotações estampadas ao final da obra. Nelas Junqueiro utiliza a expressão alma para se referir à necessidade de Portugal: “Alma! Eis o que nos falta. Porque uma nação não é uma tenda, nem um orçamento uma bíblia”.341E prossegue bradando: “A nação, mais do que libras, carecia de alma”.342

O que Junqueiro põe em discussão é a tentativa de superar a decadência da sociedade portuguesa, perscrutando as características capazes de definir uma suposta originalidade cultural sintetizada pela expressão alma, como forma de superar a crise imposta pelo

Ultimatum inglês. Essa postura remete a análise realizada neste capítulo, uma vez mais, ao modelo etnocultural de nação.

A atmosfera pessimista da última década do século XIX, somada à revolta em relação à Inglaterra, também motivou Gomes Leal. Em Fim de um mundo: satyras modernas,343 publicada em 1899, inicia a obra em tom apocalíptico: “Termina o século no meio de um apocalypse social”.344 Segundo ele,

a causa da decadência contemporânea não é apenas a penuria do proletário, a rapinagem do fisco, a falsificação do leite e o triumpho da margarina, ou a condemnavel mancebia da chicória com o grão de bico, ou o tremoço, no café. Não é o desequilíbrio emfim dos corpos. É a penúria, a falsificação, e o envenenamento das almas. É a ausência do Sentimento, que se chama o egoísmo. É elle que gera o Capitalismo, o Militarismo, a tisica, o imposto, o syndicáto, o monopólio, a fome, o

337 Ibidem, pp. 37-38. 338 JUNQUEIRO, 1990.

339 CATROGA & CARVALHO, op. cit., p. 253, grifos no original. 340 Ibidem.

341 JUNQUEIRO, op. cit., p. 197. 342 Ibidem, p. 201.

343 LEAL, op. cit.

344 Ibidem, p. VII. Gomes Leal inicia a obra com uma carta, datada de 25 de janeiro de 1899, enviada ao então

luxo, a rapina, a onzena, a tavolagem, a questão do Panamá, a questão Dreyfús, a mitra, o alcouce, o lameiro, o velludo, o chinello, e o farrapo.345

A explicação de Gomes Leal procura afastar as causas da decadência das sociedades dos aspectos materiais ou físicos. Essa postura aproxima sua análise do modelo etnocultural de nação, na medida em que busca defender uma espécie de consciência moral, sintetizada pela expressão alma, na orientação do comportamento cultural e político das sociedades.

Essa decadência moral denunciada pelo autor estaria, segundo ele, na gênese das posturas imperialistas tomadas por certas nações, que, dentre outras, alimentaram a emissão do memorando que decretou o Ultimatum britânico. Dessa forma, proclama seu protesto vinculando o cenário econômico a uma visão decadentista: “Todo o mundo contemporâneo caminha hoje, ás cegas, ás tontas, como um morcego doido de sol, para um abysmo: — que é a bancarrota moral. A bancarrota financeira dos estados dessorados e moribundos, [...] é apenas uma consequência da primeira”.346

Considerada por ele “a mais escandalosa representante de uma humanidade traficante e hábil”,347 a Grã Bretanha vira alvo pontual do ataque de Gomes Leal no poema Troça à Inglaterra,348 no qual ele expressa seu sentimento nacionalista. Na linha de Guerra Junqueiro,

observa-se, nesse texto, um apelo redentor dirigido às novas gerações portuguesas, manifestado pela dedicatória “À Mocidade Acadêmica”.349 Antes de iniciá-lo, pode-se ler, em

nota de rodapé, as intenções de Gomes Leal:

o auctor visa especialmente nas suas sátyras a Grã-Brelanha, — á parte os seus philosophos, os seus poetas, os seus sábios — por que, pelo seu espirito vil de ganância, a considera a principal representante de todo o capitalismo, abuso de força, egoísmo e hypocrísia das actuaes humanidades.350

Troça à Inglaterra apresenta tom debochado, procurando desqualificar a nação inglesa

e suas figuras representativas. O rei Carlos II é chamado de “folião!/ patusco caçador, na caça activo,/ que viveste a fazer a digestão,/ a aperaltar-te, a rir, e a ser lascivo”.351 Os ingleses, por

sua vez, são descritos “com essas caras de feições tristonhas,/ vermelhas, mas bisonhas,/ e essas pernas compridas,/ semelhaes umas cómicas cegonhas,/ que entram pelas bebidas”;352

além de acusados de consumir álcool em excesso: “E como vós bebeis ! . . . Com três mil 345 Ibidem, pp. 416-417. 346 Ibidem, p. IX. 347 Ibidem, p. 420. 348 Ibidem, pp. 231-238. 349 Ibidem, p. 231.

350 In: LEAL, op. cit., p. 231, nota de rodapé. 351 Ibidem, p. 231.

pipas!”.353 Na última parte da obra, intitulada Autopsia final, Gomes Leal denuncia a

hostilidade que as nações alimentam em relação à Inglaterra e lança um vaticínio:

A Grã Bretanha pode vencer os boers, derrotal-os, ou invadil-os: isso nada significará. Isso não será senão apenas o tempo da mora, na letra que ella tem a pagar ao seu destino. A sua derrota moral está já na hostilidade que sopra contra ella, por cima de todos os continentes e todos os mares. Isto é que será o verdadeiro motor da sua derrocada, e os factos o provarão.354

O nacionalismo literário e cultural observado nas obras de Guerra Junqueiro e Gomes Leal, alimentado pelo sentimento pessimista também relacionado ao Ultimatum britânico, deve subsidiar a análise das histórias do fado de Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel. Seus ataques à Inglaterra, além de conformar um nacionalismo exacerbado, expõe as intenções da chamada Geração de 1890 de perscrutar características culturais genuinamente portuguesas. Em última análise, trata-se de investigar a alma portuguesa como forma de superar a crise. Essa tarefa ganhou amplitude quando Só,355 obra simbolista de António Nobre, veio a lume.