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Na baixada do Manduca / Bailanta da Sia Chinica

3. LADO A

3.2 Na baixada do Manduca / Bailanta da Sia Chinica

Para as composições Na baixada do Manduca26 e Bailanta da Sia

Chinica27, optou-se por uma análise conjunta devido a sua proximidade tanto

estrutural quanto interpretativa. Ambas são as composições descritas no LP como sendo de “inspiração folclórica” e tratam de temas muito parecidos – os bailes de campanha.

Apresentam-se aqui estruturas muito características de composições musicais. O ritmo musical das duas composições está descrito na contracapa do disco como “Chamarrita28”. Bailanta da Sia Chinica é composta por quintetos e

sextilhas. E, Na baixada do Manduca é composta por estrofes em sextilha, oitava e quadra, além de apresentar uma especificidade muito própria da música – o refrão. Segundo Paul Zumthor,

26 Ver anexo D (p.98) 27 Ver anexo E (p.100)

28 Chamarrita: ritmo marcado em compasso binário, de origem portuguesa, mais especificamente

da região dos açores – era um ritmo para ser dançado. Foi na região do Corrientes – Argentina que assumiu a característica de canção sem o compromisso da dança. No Rio Grande do Sul esse ritmo é também conhecido por chamarra. (Fonte: Marcelo Caminha: Manual Prático – vídeo aula violão gaúcho)

O uso de refrão interfere na produção de sentido. Tecnicamente, o refrão é uma frase musical (às vezes instrumental) recorrente – dividindo o canto em subunidades [...] ele contribui para reforçar o significado das partes precedentes ou seguintes [...]. (ZUMTHOR: 1997, p. 195, 196)

Nas referidas composições existe a empatia da música popular, levado pelo prazer da identificação – com o espaço, os personagens, a realidade social ali representada. Sobre a importância da construção e representação dos personagens na letra de uma canção, Luiz Tatit afirma que

A qualificação de um personagem [...] ou de um objeto [...] é uma das principais formas de manifestação da reiteração na letra. A exaltação, a enumeração das ações de alguém [...] ou a própria construção de um tema homogêneo [...], funcionam muito bem como espelhamento das reincidências melódicas. [...] Reiteração da melodia e reiteração da letra correspondem à tematização. (TATIT: 2003, p. 9, grifo do autor).

Há uma cumplicidade melódica e temática existente entre as duas canções, a ponto de observar que, ao escutá-las na sequência em que estão postas no disco, parecem a mesma composição. Tem-se a impressão de não haver mudado a canção. A alegre movimentação dos personagens, a certeza confortante dos acontecimentos que se sucedem na letra das canções, combinam harmoniosamente com a frequência alegre e cadenciosa da melodia, bem como com a forma ágil e descontraída sustentada pelo intérprete, que muito bem representa a agradável agitação de um baile de campanha.

A menção do eu-lírico a nomes familiares ao contexto cultural e histórico evidencia uma inserção do ouvinte/leitor nessa dinâmica, como é o caso de “Dom Ortaça” (v. 5), que pode fazer referência ao artista missioneiro Pedro Ortaça; ou o “gaiteiro Malaquia” (v. 6), muito conhecido na região das Missões; ou ainda o ginete “Zaragoza” (v.13).

1. O chinaredo lá da estância 2. se aprepara já faz dias 3. Segundo Siá Basilícia 4. vai trazer varias famílias 5. Pra escutar o Dom Ortaça 6. e o gaiteiro Malaquia 7. E um cantor da Bossoroca 8. que canta com galhardia 9. Jaguarão Chico e Vichadero,

10. se alvorotou a peonada, 11. Do caseiro ao capataz 12. todos de bota ensebada 13. E o careca Zaragoza 14. nem liga pras gineteadas

(GUARANY: 1976 - inspiração folclórica) Nessa composição, é possível perceber a presença da ideia romantizada e cultuada, principalmente no meio tradicionalista, de que peão e patrão vivem em harmonia e dividem os mesmos espaços sociais. É o que se observa nos versos 11 e 12 da estrofe descrita acima, e continua no mesmo sentido na estrofe seguinte, em que descreve a filha do patrão preparando-se para participar do mesmo baile.

A prendinha Ana Luisa filha do nosso patrão Já encardou água de cheiro vindo de outro rincão E um delantal colorado

partido de sua opinião (GUARANY: 1976 – inspiração folclórica) Há uma curiosidade, logo na primeira estrofe da referida composição, no que se refere à utilização da palavra “baixada”, que pode ocupar dois sentidos: um pejorativo – evidenciando um lugar que representa um bordel – e isso poderia se acentuar em função da utilização de outra palavra que também pode representar sentido duplo – “china”, que pode ter o significado de “mulher de vida fácil”29. Porém, no decorrer dos versos, percebe-se que o autor fala de um lugar

em relevo baixo (por isso baixada), localidade onde é realizado o baile de campanha, e as chinas não possuem menção pejorativa, mas fazem referência às mulheres da localidade, com traços de etnia indígena, morenas.

Lá na baixada do manduca hay rebuliço de china Três guitarras orientales e uma gaita correntina E um biriva Rio-grandense

com toadas lisboinas (GUARANY: 1976 – inspiração folclórica)

29 NUNES, Zeno Cardoso; NUNES, Rui Cardoso. Minidicionário Guasca. 8ª ed., Porto Alegre:

Em Bailanta da Sia Chinica há a presença de uma característica marcante da cultura gauchesca, que são os nomes singulares dos personagens, “Telesforo”, “Otacília”, “Possidônio”. Esses nomes fazem referência direta à memória folclórica dos moradores da campanha.

A siá Otacília vai trazer a ‘fiarada’ Pra dança inté a madrugada Com os ‘fio’ da sia Chandica

O Possidônio, com ciúme do Telesforo Só por causa do namoro

Com as primas da sia Chinica

(GUARANY:1976 – inspiração folclórica) Ainda nessa composição, há uma intertextualidade direta com outra obra também de autoria de Noel Guarany – “Romance do Pala Velho”30. Em Bailanta

da Sia Chinica, aparecem os seguintes versos: “/Pena me faltar o pala,/ que faz tempo me roubaram”. Esse pala já havia sido o personagem principal de uma

composição sua que ficou muito conhecida e que iniciava narrando em versos o dia do desaparecimento de querido “pala velho”, parceiro de grandes gauchadas.

Uma vez fui na cidade Na maldita perdição Lá perdi meu pala velho

Que me doeu no coração. (Noel Guarany)

Observando as descrições folclóricas realizadas nas composições Na

baixada do Manduca e Bailanta da Sia Chinica, percebe-se que elas integram de

maneira leve e descontraída o projeto sustentado pela obra – a representação artística de um idealizado historicamente e moldado pelo espaço da campanha (ou do pampa).

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