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NA CIDADE

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“Nos meses de Junho e Julho Goiás é só alegria

os carreiros se aglomeram pra bonita romaria Ir a festa de Trindade pra pedir todos os anos a bênção do Pai Eterno É tradição do povo goiano. Carros de boi, caminhões conduzem romeiros felizes todos cantando orações até a porta da Matriz. No meio de tanta gente não falta o pão do sustento o Divino Pai Eterno

nos deu os dez mandamentos De Goiânia à Trindade pela rodovia da fé devotos pagam promessas sempre caminhando a pé cumprimentando os painéis em pensamentos iguais a festa do Pai Eterno É tradição em Goiás. Beleza é a procissão que reúne todo o povo sai da igreja velha até o santuário novo Todos seguem em silêncio com o coração fraterno e o padre gritando viva ao Divino Pai Eterno”.

(A festa de Trindade - Albertino Soares)

A QUINTA-FEIRA DO DESFILE.

Na quinta-feira, dia primeiro de Julho, os romeiros acordaram em torno de seis horas e levantaram acampamento para seguirem em direção a Trindade. Quando chegam ao santuário, depois de sete dias de viagem, os carreiros de Mossâmedes, juntamente com outros de outros municípios, participam de um desfile de carros de boi e de cavaleiros que dá continuidade às festividades da Festa do Divino Pai Eterno. A entrada triunfal na cidade sagrada representa uma participação fundamental na festa, celebrando e valorizando não somente este antigo

meio de transporte, mas um símbolo que remete à identidade de ser romeiro e carreiro, originário da zona rural. Carreiros de várias procedências se reúnem em uma concentração na periferia da cidade, para então seguirem em desfile pelas ruas principais do santuário.

Às dez horas da manhã os carreiros de Mossâmedes estavam na entrada da cidade, às margens da rodovia GO 060. Foi necessário o acompanhamento da polícia rodoviária para que todos atravessassem com segurança, pois a estrada estava muito movimentada, naturalmente por causa da festa. Enquanto os carros de boi atravessavam a rodovia os veículos de passeio e caminhões iam formando uma imensa fila, nas duas direções. O desfile, que passava há vinte anos pelo mesmo itinerário no centro da cidade este ano de 2004 foi alterado em decorrência da construção de um ‘carreiródromo’, uma espécie de estrutura metálica com palanques e arquibancadas montados numa área muito afastada do centro da cidade, o que aumentou consideravelmente o trajeto a ser percorrido. Muitos carreiros reclamaram da situação criada pela Secretaria de Turismo e ameaçaram sair da fila, mas uma vez dentro do enorme comboio que se formou, com mais de duzentos e cinqüenta carros de boi e aproximadamente quatro mil cavaleiros e mais uma multidão de espectadores em volta não havia outra solução senão seguir até o final. Embora reclamando da confusão, os carreiros de certa forma se sentiam orgulhosos, não por estarem em evidência, mas porque o desfile valoriza o símbolo de sua identidade como devoto, romeiro e acima de tudo, carreiro. Além disso, o importante, na opinião dos carreiros, é que mesmo com a mudança no itinerário o desfile continuaria passando em frente à igreja Matriz, o lugar da imagem da Santíssima Trindade, ou seja, o centro sagrado, o da origem da devoção.

Ao entrarem no desfile os carreiros receberam de funcionários da Secretaria de Turismo uma folha de papel com uma numeração identificando o carro e uma camisa comemorativa com a propaganda da prefeitura de Trindade. Além disso, responderam a um pequeno questionário, que entre outras coisas, perguntava a origem e a idade do carreiro. O objetivo, segundo os funcionários da prefeitura, era o de organizar a apresentação do desfile e manter um controle estatístico dos carreiros e cavaleiros na festa do Divino Pai Eterno para facilitar as projeções de organização do ano seguinte. Se durante a viagem os carreiros tinham, de certa forma, uma organização baseada na tradição, ali, no santuário, a coordenação passava

aos domínios da política local. O líder da romaria se diluía dentro do universo maior de carreiros na cidade, que por sua vez passavam para uma liderança fora de suas regiões. No santuário o controle passa a ser dividido entre a Igreja e a Prefeitura, que disputam o prestígio pela organização do evento.

Depois de praticamente atravessarem a cidade debaixo de um sol causticante e sacrificar ainda mais os animais, que não se adaptavam em andar no asfalto, os carreiros se dirigiram ao ‘carreiródromo’, que estava tomado por uma multidão de espectadores. No alto, no palanque de autoridades, estavam o prefeito da cidade, alguns vereadores, suas famílias e artistas conhecidos da região. Na rua o locutor que coordenaria a apresentação dividia espaço com um padre que abençoaria os carreiros e cavaleiros. Quando os carros de boi começaram a passar o desfile se transformou em um verdadeiro espetáculo, a multidão aplaudia cada vez que o locutor apresentava a procedência do carreiro. Havia uma espécie de disputa regional entre os espectadores, que mediam força através dos aplausos e da gritaria. De certa forma o desfile também era uma maneira pela qual o campo político podia medir forças com o campo religioso, até esse momento da festa a prefeitura dominava a situação, com a distribuição de brindes, a disponibilização dos pastos para os animais, a organização do trânsito, a contratação de artistas para apresentação. Todavia, mais ao centro da cidade, a Igreja controlava as celebrações, dentro da programação religiosa da festa.

LOUVANDO O DIVINO PAI ETERNO – A CONSAGRAÇÃO.

Depois do desfile os carreiros de Mossâmedes se dirigiram ao acampamento, cangaram os bois e logo em seguida foram à igreja Matriz louvar o Divino Pai Eterno. A pequena imagem da Santíssima Trindade fica disposta dentro de um relicário no alto do retábulo da igreja. Ao relicário são amarradas fitas coloridas de cetim que se estendem ao alcance das mãos; ao tocá-las e beijá-las o devoto carreiro acredita estar na presença do Divino. A imagem da Santíssima Trindade e as fitas de beijamento são elos simbólicos que conectam os devotos ao santo, e nessa medida, ligam os dois planos, o material e o espiritual:

“A primeira coisa que eu faço depois de cangar os bois é ir nos pés do Divino Pai Eterno, do jeito que eu chego eu vou: sujo, cheio de poeira (...) pro Divino Pai Eterno não tem diferença se a gente tá sujo (...) Eu levo minha vara de ferrão e vou louvar, vou agradecer a Deus por mais um ano, por tudo que Ele fez por nós. Aí depois é que eu vou arrumar a barraca e tomar banho. Mas enquanto eu não for lá não fica bem porque eu não cumpri com a minha missão”. (Seu Belchior, Mossâmedes).

A imagem de masculinidade do carreiro se transforma completamente quando o assunto é louvar o Divino: a postura altiva que ele exibe em todo o decorrer da viagem é substituída por uma saudação reverente, carregada de emoção, muitas vezes com lágrimas nos olhos. Os carreiros entram na igreja, tiram seus chapéus em sinal de respeito e se ajoelham com humildade: fazem suas preces, seus pedidos e agradecimentos em silêncio. As mãos estendidas para o alto refletem a humildade de quem é pequeno diante das coisas sagradas. Os gestos bruscos que caracterizam suas performances na estrada são substituídos por gestos singelos, quase femininos, em homenagem ao Divino Pai Eterno.

A romaria dos carreiros de Mossâmedes oferece uma estrutura ritual de uma viagem preparatória de sacrifício, em que o romeiro carreiro, no extremo final da peregrinação, de certa forma é oferecido à divindade: esse é o momento crucial da romaria - a consagração, ou seja, o momento de ‘tornar sagrado’. Rubem César Fernandes, em seu estudo sobre a romaria dos Cavaleiros de Bom Jesus de Pirapora (1982), aponta que o ser profano se transforma em sagrado por uma inversão ou transformação substancial de suas características. Durante a consagração, “o exaltado de um lado é humilhado no outro extremo do rito sacrificial.

Implica a sujeição da coisa ou pessoa consagrada a um ser superior, o qual se encontra em outra esfera de grandeza”.(FERNANDES, 1982:84). O fazer o sagrado - ‘sacre facere’- está

associado às antigas tradições pagãs de oferendas feitas às divindades sob a forma de imolação de animais ou queima de oferendas; por exemplo, o vivo era sacrificado, parte da colheita era destruída. A reverência humilde do carreiro ao Divino Pai Eterno em oposição à sua altivez durante a jornada, e o sacrifício que essas duas fases do ritual compreendem, explicam, em

síntese, o significado da consagração na romaria: quando ele se apresenta como inferior e dependente em relação a um poder superior, ingressa no domínio do universal, cumprindo a personalização de uma categoria ideal78. Esse momento se processa quando ele “paga o

tributo da sujeição a um poder que está incontestavelmente acima de qualquer contestação profana” (FERNANDES: 1982:84-85). Como enfatiza Fernandes, a consagração é um

processo gerador de personagens ideais, nessa romaria o carreiro e o Divino Pai Eterno são celebrados, eles representam a personalização de categorias ideais. A romaria dos carreiros, de um lado é a construção ritual do ideal de masculinidade, de outro a ratificação dos valores ideais do catolicismo, dentro dos quais o Divino Pai Eterno simboliza o primeiro na ordem sagrada, o mediador dos mediadores, o exemplo que consagra virtudes de todas as ordens, entre elas a do devoto romeiro e carreiro.

Segundo o mesmo autor na cosmologia dos romeiros católicos não há separação entre as esferas do sagrado e do profano, mas a sobreposição de uma e de outra, como duas faces de um mesmo mundo. Esse mundo reflete uma dualidade contraditória que é irredutível “e que

permite sempre a descoberta da manipulação profana nas coisas sagradas e vice-versa, o sacrifício pelo sagrado nas lides profanas” (FERNANDES, 1982:85). A tradição católica tem

interpretado essa duplicidade de planos de existência como se vivêssemos simultaneamente em duas cidades, a cidade dos homens e a cidade de Deus (1982:84). No santuário essa dualidade se reflete em todas as dimensões: a festa enfatiza tanto as comemorações ‘profanas’ quanto as celebrações ‘sagradas’, dentro das quais desenvolvem-se vários tipos de relações, que dão origem a uma pluralidade de discursos. As festividades profanas têm crescido, em Trindade, na mesma medida das celebrações religiosas. De um lado a Igreja pós-conciliar defende uma peregrinação de encontro à Palavra, de outro, os romeiros defendem uma romaria em direção à ‘casa’ do Divino Pai Eterno e principalmente à festa que se forma em torno dele. Para os romeiros as celebrações ao santo não eliminam as festanças na cidade, as compras nas barracas, a fartura nos almoços: tudo faz parte de um universo maior que para eles é o sagrado.

78 A tese de Durkheim tem sido criticada, entre outras coisas, porque na sociedade moderna a religião já não é a

AS MISSAS.

Durante os nove dias que antecedem a festa do Divino Pai Eterno são realizadas nos dois santuários e em horários alternados, as novenas, para as quais são convidados para proferirem os sermões padres locais ou de outras localidades. O discurso segue o temário anual que é concebido geralmente sobre a campanha da fraternidade. Segundo opinião de um padre local, os sermões são parte essencial da romaria, pois dão ênfase à doutrina e se referem a temas voltados à cultura local ou ligados aos problemas de injustiça social. Seus conteúdos se inscrevem dentro das diretrizes pós-conciliares, em uma narrativa fundada na consciência e na razão, vistas como mediadoras de acesso ao sagrado. Foi possível perceber que a Igreja não esvazia completamente o discurso mítico, mas trabalha no sentido de racionalizar sua explicação. Outros santuários administrados pela missão redentorista também apontam nessa direção: Carlos Alberto Steil, em seu estudo sobre a romaria de Bom Jesus da Lapa (1996), enfatiza que essa ambigüidade de discursos decorre de que o consenso mais geral do catolicismo não permite o total esvaziamento do discurso mítico, o que “fecharia a

possibilidade de comunicação com a massa católica dos romeiros (...) a indefinição é alimentada e mantida pragmaticamente como um elemento central e estruturante do próprio culto” (STEIL, 1996:121).

As missas que acontecem durante os dias da festa também se revezam nas duas igrejas, sendo que nos nove dias que antecedem o domingo são celebradas duas missas no Santuário Novo e quatro missas na igreja Matriz. No domingo são celebradas cinco missas na igreja Matriz, três missas no Santuário Novo e duas missas na esplanada, das quais uma é a missa solene da festa, geralmente presidida pelo arcebispo de Goiânia, e conta com a presença de representantes políticos. A missa é o ato que organiza as demais programações do dia no santuário, é o eixo da festa. Ali o clero domina as celebrações, como observa Sanchis, “é a sua

volta [da missa] que o clero regula o conjunto da romaria (...) Os regulamentos episcopais tendem fazer da missa o ponto frontal divisor do tempo, raiz e origem de todas as atividades religiosas e mesmo lúdicas que ocuparão [os dias da festa]” (SANCHIS, 1983:98). Entre os

romeiros que acompanhei durante a pesquisa de campo em Trindade em 2003 e 2004, os mais idosos normalmente assistiam pelo menos uma missa durante o dia. Já os mais jovens assistiam a missa pelo menos uma vez durante os dias da festa. Entre os romeiros carreiros somente era ‘obrigatória’ a participação da missa dos carreiros. Para cada categoria dentro da romaria de Trindade a opinião é unânime em considerar o ritual da missa como central dentro da festa, mas isso não significa o comparecimento e a participação. A missa possibilita o encontro de diferenças que momentaneamente são unidas em torno do santo, uma unidade, segundo Sanchis, que coexiste com conflitos e tensões.

Ilustração 11 - Missa na igreja Matriz.

Ilustração 12 - Missa no Santuário Novo.

(FERNANDES, 1982:85).

As missas que assisti durante a festa apresentavam aspectos semelhantes aos que Steil (1996) descreveu sobre as da festa em Bom Jesus da Lapa: as celebrações eram muito festivas, bem diferentes das missas pré-conciliares celebradas em latim; aproximavam-se mais dos cultos protestantes e da estética dos programas de auditório, com muita música cantada tanto pelos fiéis como pelos conjuntos musicais contratados para o evento. Uma delas, a missa dos carreiros foi particularmente interessante: ela congrega tanto os romeiros carreiros como os demais romeiros que estão na festa durante o sábado porque é a principal missa do dia e também porque é um grande espetáculo. No ano de 2004 a celebração foi feita na esplanada em frente ao Santuário Novo devido a grande participação dos fiéis.O altar é decorado com motivos relacionados à vida rural, os padres são paramentados com indumentárias parecidas com as dos carreiros e todo o ritual é celebrado com músicas sertanejas. Em momento de grande emoção os berrantes são tocados pelos ‘berranteiros’ oficiais de cada localidade representada na romaria, que faz do momento uma responsabilidade especial para os devotos- berranteiros, eles se vêem com a responsabilidade de tocar os berrantes da melhor maneira, pois de certa forma estão representando sua cidade. Edilane, berranteira de Anicuns, me falou de seu orgulho em ser a berranteira oficial de sua cidade:

“Em Trindade, eu fui escolhida pra representar a berranteira devido eu estar participando sempre e por ser diferente, por ser mulher, é comum você ver homem, você ver mulher é difícil. Aí eles viram eu tocar e passaram a me convidar todo ano, então eles pediram para que jamais eu deixasse de fazer aquilo”

(Edilane, Anicuns).

A missa dos carreiros é uma celebração através da qual os romeiros carreiros definem sua identidade. Os diversos elementos constitutivos do ritual, as roupas, os chapéus, o sermão, os diferenciam dos outros romeiros no espaço do ritual. Dentro do universo de devotos que, de certa forma, têm uma ligação com o meio rural, eles são aqueles que, além de representarem a memória das romarias, ainda dão continuidade à tradição dos carreiros levando seus carro-de- boi para a festa. E por mais que entrem no santuário e participem da missa dos carreiros, suas

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