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4 CAPÍTULO TRÊS: O ESPECTADOR E O QUERER

4.1 O espectador e o espaço público

4.1.2 Na modernidade

Uma observação de Arendt resume essa questão do espectador em relação à modernidade: “o único fato de que podemos estar seguros é de que a coincidência da inversão de posições entre a ação e a contemplação com a inversão precedente entre a vida e o mundo veio a ser o ponto de partida para todo o desenvolvimento moderno” (CH:333). Arendt ressalta, ainda, que houve a inversão hierárquica entre vita contemplativa e vita activa, não se tratando, porém, segundo a autora, de estabelecer qual delas tem supremacia, pois cada uma tem suas características particulares.

Dos eventos que caracterizam o surgimento da modernidade ― a exploração marítima, a Reforma e a invenção do telescópio ―, Arendt destaca que o mais importante deles foi o telescópio inventado por Galileu, usado “de tal modo que os segredos do universo foram revelados à cognição humana com a ‘certeza da percepção sensorial’” (CH:272). Isso trouxe duas conseqüências contrárias: o homem constatou que os órgãos sensoriais poderiam traí-lo; por outro lado, o homem passou a “pensar em termos de universo enquanto permanecia com os pés neste planeta (..) e de empregar as leis cósmicas como princípios guiadores da ação da Terra” (CH:276).

Nessa inversão entre contemplação e ação, “o que era teoria virou hipótese e o sucesso da hipótese virou verdade” (CH:291); perde-se, então, os conceitos de autoridades grego e romano. A contemplação perde sua superioridade sobre a ação: somente quando a ação ― sob a forma de pesquisa, investigação, experiências concretas ― consegue confirmar a hipótese é que se teria a “verdade’; não mais as “verdades auto-evidentes”, mas, agora, “verdades” científicas. Ao final da análise histórica efetuada por Arendt sobre a “autoridade”, constata-se

o esvaziamento do conceito de “autoridade”, devido à supremacia das “verdades científicas”, o que é agravado pela crescente substituição da ação pela conduta.

Portanto, na modernidade, há uma descrença na vida futura, estritamente vinculada e agravada pela descrença do homem com relação à autoridade:

“[a autoridade] não se restabeleceu em lugar nenhum, quer por meio de revoluções ou pelos meios ainda menos promissores da restauração (..). Pois viver em uma esfera política sem autoridade nem consciência concomitante de que a fonte desta transcende o poder e os que o detêm, significa ser confrontado de novo, sem a confiança religiosa em um começo sagrado e sem a proteção de conduta tradicionais e portanto auto-evidentes, com os problemas elementares da convivência humana”. (EPF:186-7)

Importa, aqui, destacar o seguinte: a verdade buscada através da contemplação efetuada pelo espectador tradicional, e que configura a autoridade grega, não será aceita pela modernidade. A conclusão de Arendt é que as leis produzidas por aqueles que se colocam como espectadores/legisladores, num enfoque platônico/aristotélico, não são “defesas absolutamente seguras contra a ação vinda de dentro do próprio corpo político” (CH:204), o que caracteriza um desequilíbrio entre poder e autoridade. Uma leitura apressada poderia ainda sugerir que os homens estão fadados a viver num mundo sem autoridade, sem religião, restando apenas o poder que emana dos outros homens, resultado do agir e que tem como princípio a liberdade política, a “vontade” (a “vontade livre”, filosófica, não coaduna com o espaço público, visto que ela confere um poder tal ao indivíduo, que pode levá-lo, inclusive, a aniquilar a si mesmo).

Para Eduardo Lyra, “é, portanto, a própria vocação da ação para não se deixar conter, junto com o problema da sua preservação, que vai levar a autora [Arendt] na direção da questão do juízo e da comunicabilidade”78. Se o poder político é limitado, ou ainda, se a liberdade é limitada, cabe aos homens, em sua pluralidade, o restabelecimento de limites para o espaço público.

78

De certa forma, a figura do espectador, estando intrinsecamente associada à do filósofo, irá “incorporar” aquilo que a tradição definiu como “filósofo”; e a decadência da figura do espectador, na tradição filosófica, está relacionada à ascensão da figura do ator, na modernidade. Arendt descreve uma situação complexa: o homem perde a confiança na vida futura, mas, ao invés de voltar-se para o contato com os outros homens, esse indivíduo volta- se para si mesmo. Esse movimento provoca a “perda” do mundo, do espaço entre os homens, acarreta, em última análise, a perda da “vida”, em seu aspecto existencial. O homem “moderno” restringe-se a utilizar o cérebro para prever conseqüências e, em termos de vida social, esse homem está preocupado com o “fazer”, o “fabricar”. A ação, típica da antigüidade, será amplamente substituída pela conduta, na modernidade. Isso não significa, todavia, que o homem tenha perdido a capacidade de agir. Como exemplo, os cientistas ainda agem, mas, segundo Arendt, esses indivíduos não interferem no âmbito político, porque a sua ação “não tem o caráter revelador da ação nem a capacidade de produzir histórias e tornar-se histórica ― caráter e capacidade que, juntos, constituem a própria fonte do sentido que ilumina a existência humana” (CH:337).

Nas páginas finais de A Condição Humana, Arendt expressa sua preocupação em relação à modernidade: “(..) as respectivas experiências de mundanidade escapam cada vez mais à experiência humana comum” (CH:337), ou seja, o homem permanece capaz de agir, de pensar, de contar histórias, mas isso tem-se tornado cada vez menos freqüente e a recuperação desse “espaço público” envolve, portanto, a discussão dessas faculdades do homem, do pensar-querer-julgar.

O “espectador” é o responsável pela delimitação do espaço público, através das leis, nas suas variações histórico-filosóficas já apresentadas, quais sejam: individualmente, como espectador platônico/aristotélico, de fora da polis; na pluralidade, como os anciãos e patriarcas, espectadores romanos, no espaço da polis. Por fim, no que se refere à modernidade,

essa autoridade sob a forma de leis emitidas por espectadores, e necessária para o estabelecimento de limites, ficou desacreditada, restando o poder dos homens, através de suas ações. Uma alternativa para essa situação instável, de desequilíbrio, seria a que Arendt defende: uma autoridade sem o apoio da tradição (o “pensar sem corrimão”), mas calcada na presença de espectadores os quais possam ajuizar e “contar histórias”.

A vontade do cidadão é limitada por leis, e em princípio esta vontade poderia estar enfraquecida, dependente dos outros, de espectadores. Apesar disso, enquanto faculdade, a Vontade possui, ainda, autonomia, é livre de pressões externas no que diz respeito à possibilidade de iniciar “algo novo”, mesmo que isto, num momento subseqüente, se torne “necessário”.

Resumindo, quais as qualidades ou características que completam o “espectador arendtiano”, quando investigada a faculdade da Vontade? Ainda, onde a importância dessa figura?

As faculdades do pensar, do querer e do julgar possuem autonomia, mas não são isoladas, não são incomunicáveis umas com as outras (aplicação do princípio da comunicabilidade, fundamental para a filosofia de kant e Jaspers). O homem, postado na dimensão temporal do presente, vai ao passado, à memória, reflete (exerce a faculdade do Pensar), volta ao presente e exerce o Juízo. Através do exercício da Vontade, o homem delibera, com liberdade, afirmando, negando, agindo, tomando iniciativas, numa perspectiva mais voltada para o futuro. Posteriormente ao exercício da vontade, segue-se a reflexão sobre as ações e palavras através dos quais o homem fez sua aparição no mundo.

Vê-se que não é um movimento linear; pelo contrário, percebe-se uma circularidade. Pelo que foi discutido acima, pode-se afirmar ser a faculdade do pensamento que dispara esse “movimento”? Arendt afirma que não. É a Vontade que reúne as outras faculdades. E

respondendo à indagação sobre a relação entre o espectador e a vontade: é também a Vontade que direciona a percepção; uma das funções da Vontade é a atenção, sendo que “um objeto é visto somente quando concentramos nosso espírito na percepção” (VE:260). E é na condição

de espectador (theathai – “olhar para”) que o homem se posiciona para fixar o sentido na coisa vista.

Na faculdade do querer, destaca-se a pluralidade externa em sua extensão prática, de consideração pelo mundo, pela realidade. O homem só adquire existência quando aparece no espaço público. A vida biológica (zóe) é compartilhada com os outros animais, mas só o homem, diante de uma pluralidade de possibilidades internas, pode escolher entre “agir ou não agir”, “aparecer ou não aparecer”. Cabe ao homem a deliberação por uma dessas proposições, de inserção ou não no mundo, numa dimensão ética positiva.

Segundo Jaspers, o “peso da Realidade” faz com que, ao deparar-se com ele, “a Existenz insira-se nele [no mundo] e pertença a ele na única maneira pela qual o Homem pode

pertencer a ele: escolhendo-o”(DP:36). Isso significa que, se o filósofo quer ser “um homem entre outros homens”, ele, numa primeira instância, diante do “peso da Realidade”, escolhe o mundo. A partir daí, passa a escolher os objetos e os fatos para os quais voltará sua atenção e

posterior reflexão. Finalmente, além de “espectador desinteressado”, o filósofo torna-se, no sentido rigoroso da palavra, “espectador do mundo”.

CONCLUSÃO

“Mas, não é a partir da observação sem preconceito da realidade que pode advir a possibilidade de transformá-la? Até esse momento os homens interpretaram o mundo, dizia Marx, agora é preciso transformá-lo. Mas como transformar o mundo sem antes compreendê-lo?”

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