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Na rua, no beco: o espaço de convivência com as crianças

CAPÍTULO 2: CORPO EM FORMAÇÃO

2.2 Na rua, no beco: o espaço de convivência com as crianças

Na rua, no beco, perambulam crianças curiosas que ao anexar tais espaços ao seu registro corpóreo e afetivo apropriam-se de si. A despeito das inúmeras maneiras de viver a primeira infância no Arraial do Retiro – conforme mostrei anteriormente – ao longo da realização desse trabalho, a infância que se corporifica nas ruas do bairro foi se impondo como o foco da pesquisa.

Antes de ser resultado de um planejamento prévio dos contornos da pesquisa, foi da conivência e observação que a vida de algumas crianças nas ruas do bairro seduziu-me. Aceitei com medo os riscos e mergulhei. Nesse mergulho, senti o sabor que as crianças, no chão do bairro, estavam a exigir desse exercício acadêmico: a experiência vivida no espaço público da rua. Aqui, “espaço público é situado como o espaço da sociedade, do uso coletivo, da participação comunitária, da troca de valores das crianças e dos adultos.” (CLÁUDIA OLIVEIRA, 2004, p. 69).

No fluxo entre o sentido e o refletido, foi sendo vislumbra a perspectiva da rua assumida aqui.

Cláudia Oliveira (2004) discutindo a interconexão entre espaço urbano e criança, assunto ainda pouco contemplado no âmbito das pesquisas em Educação e em Arquitetura, aponta a necessidade de refletirmos em que medida a atual configuração urbana contribui para que a criança distancie-se da referência do espaço público, ao mesmo tempo que suas ações passam a ocorrer mais freqüentemente em espaços fechados.

Ao abordar a questão da criança no espaço Cláudia Oliveira (2004) sinaliza a rua como espaço público privilegiado de convivências e brincadeiras fundamentais à formação dos pequenos cidadãos. Na acepção da autora a rua é “[...] o espaço aberto, público e coletivo,

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lugar dinâmico onde todos se encontram, universo de múltiplos eventos e relações, enfim, é o elemento estruturador da cidade” (p. 74) a que as crianças devem ter acesso.

A defesa da rua enquanto local público, no qual a presença de crianças e das outras pessoas que compõe o tecido urbano, deve ser garantida – este é um dos argumentos centrais da autora, com o qual me coaduno. A rua em sua diversidade de funções – rua como ambiência de convívio, de brincadeira, solidariedade, de trabalho, de descoberta, de aprendizagem, de sonho, de mudança e de transgressão – é possível quando a mesma se constitui numa ambiência matizada pelas apropriações e interações produzidas pela e na comunidade.

A experiência nas ruas do arraial, enquanto pesquisadora, sinalizava que precisava agregar ao seu contorno físico da rua e do beco, a dimensão do movimento existencial da infância: a experiência. Os escritos virtuais de Magnani9 (2006a; 2006b), e mais especificamente o acento que o autor coloca na experiência da rua, também auxiliaram no trajeto desse estudo.

Em Rua, símbolo e suporte da experiência urbana, Magnani (2006a) apresenta uma vertente para se (re)pensar a rua como espaço de vida, incluindo o fazer pesquisa. Nesse artigo o autor propõe contemplarmos não apenas a materialidade física daquele espaço público, mas antes, a experiência da rua.

Para o autor, ao se falar de rua faz-se necessário especificar de que rua está se tratando, uma vez que ela comporta diferentes sentidos.

[...] tudo depende de que rua se está falando. Certamente não é a rua definida de forma unívoca a partir do eixo classificatório unidimensional (vias expressas, coletoras, locais, binárias, etc.) dado pela função de circular. A rua que interessa e é identificada pelo olhar antropológico é recortada desde outros e variados pontos de vista, oferecidos pela multiplicidade de seus usuários, suas tarefas, suas referências culturais, seus horários de uso e formas de ocupação. A rua, rígida na função tradicional e dominante – espaço destinado ao fluxo – às vezes se transforma e vira outras coisas: vira casa (SANTOS e VOGEL, 1985), vira trajeto devoto em dia de procissão, local de protesto em dia de passeata, de fruição em dia de festa, etc. Ás vezes é vitrine, outras é palco, outras ainda lugar de trabalho ou ponto de encontro. [...] Se esta é a rua que interessa – sem esquecer a dura realidade da vida cotidiana nos grandes centros urbanos, [...] então fica claro que se está

9 Texto capturado no site do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, disponível em: <http://www.n-

falando não da rua em sua materialidade, mas em experiência da rua. (MAGNANI, 2006a, s/pág.10).

Para Magnani (2006a) a rua que interessa é a aquela que assentada em múltiplos eixos, não se orienta pela univocidade de significados, antes guia-se a partir de um sistema de relações atualizado pela prática social dos atores que, abrindo e/ou fechando tal sistema, mantém e enriquece a dinâmica urbana – daí privilegiar a experiência da rua.

Nos bairros da maioria afrodescendente de Salvador, além dos aspectos contemplados por Cláudia Oliveira (2004) e Magnani (2006a) acerca da rua, há que se considerar a composição étnica. Este é um importante marcador da história social daqueles territórios, ou seja, das apropriações e sentidos dados a rua.

No Arraial do Retiro, os moradores se apoderam da rua para além da sua função de circulação. Desde o cuidado com as crianças; o dar de comer, pentear, dar banho, brincar; passando pelo festejar, trabalhar, brigar, encontrar, namorar, ajudar, conversar, realizados pelas próprias meninas e meninos, bem como pelos jovens, adultos e idosos do bairro. A rua pulsa vida! Esta se expande para além dos limites dos espaços da casa.

Os acidentes geográficos que compõem a paisagem do arraial também contribuem para que a rua, muitas vezes não seja designada verbalmente como rua. É muito mais freqüente ouvir as pessoas se referirem a este espaço público como beco, ladeira, caminho. A localização no bairro desses espaços públicos, e o deslocamento por ele, também se efetiva mais a partir de referências pessoais e afetivas, e por meio dos estabelecimentos privados como vendas e outros estabelecimentos comerciais, terreiros de candomblé, elementos da natureza e igrejas, do que pelos nomes oficiais das ruas.

Essa adaptação que a população do Arraial do Retiro empreende da rua, no que diz respeito principalmente às interações e ao divertimento, comporta uma dimensão cultural, de invenção ante às adversidades, mas também é resultado da inexistência de amplos espaços de lazer e de socialização construído por meio de políticas públicas. A negligência desta última incorreria em concordar com o atual descaso que as políticas públicas urbanísticas vêm tendo para com os territórios de maioria afrodescendente como mostra Cunha Júnior no trabalho

Políticas Públicas para as Populações Afrodescendentes (2006).

Compreendo a rua do Arraial do Retiro como espaço visceralmente forjado pela interface das especificidades étnica, geográfica, etária, histórica, cultural, econômica, e de

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gênero no contexto da cidade de Salvador. Nesse sentido, a rua do arraial constitui-se diversa; no tom e no ritmo das desimportantes e micro interações e apropriações cotidianas inventadas pelas crianças e pelos adultos. Mas também se compõem de linhas de unicidade; ao gestar valores, idéias e experiências que partilhados pela comunidade circulam e habitam nesse espaço público da rua do bairro.

A experiência da infância na rua do arraial foi se sobrepondo ao traçado original do projeto, que também previa encontro com as crianças nas suas residências, e eu a acolhi. Assim, esse estudo tem a especificidade de ter se realizado junto às crianças no espaço aberto, na rua do bairro.