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Norbert Elias trabalhando com os conceitos de “civilização” e “cultura” e de como estes enquanto símbolos da “nós-imagem” européia sofreram modificações a partir do século XVIII, relaciona a crença nos valores do passado a uma mudança radical de atitude desta sociedade que passa a priorizar os ideais nacionalistas ao invés dos humanistas e morais. 245

O autor desenvolve seu argumento afirmando que enquanto no século XVIII os conceitos de civilização e cultura representavam algo dinâmico, projetado para o futuro, no século XX referem-se a algo estático, voltado para o passado. Salienta que o declínio da dinâmica dos processos sociais não está associado a uma mudança nos devidos conceitos, mas de que este foi “um padrão generalizado de desenvolvimento conceitual que se desenrolou em direção inversa ao da sociedade como em seu todo”.246

245 ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e o desenvolvimento do habitus nos séculos XIX e XX.

Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 121-134.

Esta grande mudança nas bases emocionais da sociedade européia deve-se, segundo o autor, à ascensão das classes médias à posição de classe dominante. Durante este processo de transferência de poder ocorre também uma transferência de olhar e de sentimento em relação à auto-imagem da sociedade européia: as elites da classe média passam de humanistas a nacionalistas. Nas palavras de Elias:

Assim como os grupos aristocráticos tinham baseado na ancestralidade da família seu orgulho e suas pretensões a um valor especial, também, como seus sucessores, os mais importantes setores das classes médias industriais basearam cada vez mais seu orgulho e suas pretensões a um valor especial ora na ancestralidade de sua nação ora em realizações, características e valores nacionais aparentemente imutáveis.247

Portanto, a mudança de posição de classes médias em Estados dinásticos para classes dirigentes de estados nacionais, em processo de industrialização e urbanização, gera mudanças nas tradições e nas atitudes dessas elites. A crença nacionalista está baseada principalmente na constituição deste novo e fortalecido sentimento de identidade que aproxima indivíduos de uma mesma classe e categoria, tornando-os compatriotas. A imagem da nação está associada à imagem que as classes médias, enquanto sucessoras do poder do Estado, faziam de si mesmas (e mais tarde as classes trabalhadoras). Há uma mudança de foco nas ligações emocionais da política que passam de relações pessoais próprias da dinastia para símbolos impessoais de uma coletividade.

Essa transferência de poder da aristocracia para a classe média urbana e industrializada só foi concluída, no entanto, depois da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918). Nesse processo, Norbert Elias defende a tese de que o código aristocrático firmado em valores militares como coragem, obediência, honra e disciplina, é assimilado pela burguesia em ascensão. A experiência da unificação após três guerras vitoriosas sob a liderança militar da aristocracia cristaliza-se como núcleo ideológico

burguês. A diferença entre a utilização do código aristocrático nos diferentes núcleos sociais, cada um a seu tempo, está na forma reflexiva e até mesmo romantizada com que a nova classe dominante alemã o assimila. Preocupado em compreender o desenvolvimento do nacionalismo violento da sociedade alemã no momento em que obtém o monopólio estatal, chegando ao momento extremo do holocausto, Norbert Elias mostra como a classe média alemã adota de forma adaptada o ethos guerreiro da aristocracia:

O que era para a aristocracia uma tradição mais ou menos inconteste- uma alta avaliação predominantemente ingênua de valores guerreiros, um entendimento socialmente herdado do significado de potenciais de poder no jogo interestatal de forças – era agora cultivado de um modo muito mais consciente pelos setores superiores da burguesia como algo recém adquirido. Raras vezes se dissera e escrevera antes, tanto quanto agora, em louvor do poder, até mesmo de um tipo violento de poder.248

O nacionalismo político está constituído a partir dessa nova auto-imagem da sociedade alemã no início do século XX. Definida enquanto Estado integrado de uma República Federal parlamentar, a Alemanha derrotada na Primeira Guerra Mundial desestrutura-se tanto externa como internamente. Os antigos alicerces do poder aristocrático, já divididos pelos setores mercantis e empresariais, são então reivindicados pela classe trabalhadora organizada.

A redistribuição do poder nas estruturas internas da Primeira República Alemã gera um nacionalismo fracionado e violento por parte das várias camadas sociais envolvidas nessa disputa. O período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial (1918 – 1939) está marcado pela busca do restabelecimento de uma ordem, em cujo processo o uso deliberado da violência passou a ser uma arma na luta pelo poder entre as organizações de classe. 249

248 Ibidem, p. 167

249 Nessa época apareceram os Freikorps, organizações terroristas que perseguiam e assassinavam

políticos da República parlamentar comprometidos com o tratado de paz e, sobretudo, os “bolchevistas”, lideranças comunistas dos setores das classes trabalhadoras. Formadas geralmente por ex-oficiais do antigo Reich e por estudantes da classe média, os Freikorps tinham como objetivo derrubar a política

O nacionalismo agressivo e estratificado da República de Weimar dá espaço ao desenvolvimento e ascensão em 1933 da política nazista de Hitler, que restabelece a ordem militar e fortalece o poder centralizador do Estado. Exercendo um nacionalismo extremado com um grande apelo para Volksgemeinschaft (comunidade nacional), a ideologia nazista remonta aos valores da Idade Média baseados no mito ariano, assim como personifica, através do Führer, a figura heróica do Imperador.

O processo unificador do nacionalismo alemão nos seus diferentes momentos esteve sempre fundamentado numa comunidade étnica ligada a uma cultura, raça e língua comuns. Esses valores que definem e garantem a continuidade da nação estão estruturados independentes de qualquer relação com o território ou Estado nacional. Como vimos, o processo de desenvolvimento do nacionalismo alemão não coincide com a unificação política dos estados que ocorre tardiamente. Portanto, na tradição histórica alemã, Estado e nação não são conceitos atrelados ideologicamente, ou seja, a nacionalidade é uma condição humana desvinculada da cidadania.

Nesse sentido, para entender de que forma os imigrantes alemães que chegaram ao sul do Brasil articularam as suas identidades nacionais e como estas influenciaram o processo de formação da identidade nacional brasileira, é importante, no próximo seguimento, realizar uma abordagem sobre as questões que dizem respeito à etnicidade.

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