• Nenhum resultado encontrado

NAO SE OBSTINAR CONTRA AS CIRCUNSTÂNCIAS 

No documento SÊNECA- A tranquilidade da alma (páginas 31-38)

XIV — 1. Devemos igualmente mostrar docilidade e não ser escravos demais das resoluções que tomamos; ceder de boa vontade à pressão das circunstâncias e não temer mudar, seja de resolução, seja de atitude, contanto que não caiamos na versatilidade, que é de todos os caprichos o mais prejudicial à nossa tranqüilidade. Porque se a obstinação é inevitavelmente inquieta e deplorável, visto que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa, a leviandade é ainda muito mais penosa, porque ela não se fixa em nada. Estes dois excessos são funestos à tranqüilidade da alma: recusar-se a toda alteração e nada suportar.

2. É preciso, finalmente, que nossa alma, renunciando a todos os benefícios exteriores, se recolha inteiramente em si mesma: que ela só confie em si e só se alegre consigo, que ela só aprecie seus próprios bens, que ela se afaste o mais possível dos estranhos e se consagre exclusivamente a si mesma, que os prejuízos materiais a deixem insensível e que ela. chegue mesmo a encontrar um lado bom nas suas desgraças.

3. Quando lhe foi anunciado o naufrágio no qual tudo o que possuía foi tragado pelo mar, nosso Zenão disse: "A fortuna quer que eu filosofe mais desembaraçadamente". Um tirano ameaçava o filósofo Teodoro303F

33 de mandar matá-

lo e mesmo de privá-lo da sepultura: "Tu podes", disse-lhe este, "dar-te este prazer: existem aí 2,7 decilitros de sangue, sobre os quais tens todos os direitos; quanto à sepultura, és estranhamente ingênuo, se crês que me aflijo por apodrecer sobre ou debaixo da terra".

33

Teodoro de Cirene foi contemporâneo de Sócrates (sécs. V-IV a.C); e o tirano foi Lisímaco, um dos generais de Alexandre Magno e mais tarde rei da Trácia.

4. Júlio Cano,304F

34 um dos maiores homens que já existiram e cuja glória nada

sofreu, nem mesmo por ter nascido neste século, teve uma longa discussão com Caio Calígula. Como ele se retirasse, o novo Faláride305F

35 lhe disse: "Para que não te

iludas nem ao menos com uma vã esperança, ordenei que te executem". "Agradeço- te, excelente príncipe", respondeu Cano. 5. Não sei qual era seu pensamento, porque essas palavras podem bem ter vários sentidos: queria ele ultrajar o príncipe e mostrar toda a crueldade de uma tirania sob a qual a morte era um benefício? Ou censurava-lhe o absurdo de obrigar todos os dias a agradecerem-lhe aqueles cujos filhos ele matara, assim como aqueles de quem confiscara a fortuna? Ou, enfim, via ele na morte uma libertação, que aceitava com prazer? Qualquer que seja a resposta, ela provém de uma grande alma.

6. Dir-se-ia: Caio Calígula podia, depois disto, ordenar que o deixassem  viver. Mas Cano não tinha este receio: sabia-se que, desde que ele dera semelhantes ordens, Calígula manteria sua palavra. Acreditarias tu que os dez dias que decorreram até seu suplício, Cano os passou sem nenhuma inquietude? Na verdade, não parece verossímil o que este grande homem disse, o que fez e a tranqüilidade que manteve. 7. Ele jogava o "jogo dos ladrões",306F

36 quando o centurião, passando

com um grupo de condenados, convidou-o a se levantar e a segui-lo; então ele contou seus pontos e disse a seu adversário: "Atenção! Depois de minha morte, não digas que ganhaste!" Depois, fazendo um sinal ao centurião: "Tu serás testemunha", disse-lhe, "de que eu tenho a vantagem de um ponto". Crês tu que Cano dava tanta importância ao seu jogo? Ele zombava do carrasco. 8. Seus amigos estavam consternados em perder um tal homem. "Por que esta tristeza?", disse- lhes. "Vós vos perguntais se a alma é imortal; eu irei sabê-lo agora mesmo." E até o último instante ele não cessou de procurar a verdade e de perguntar à sua própria morte a solução do grande problema. 9. Seu filósofo307F

37 o acompanhava; já o

aproximavam do túmulo, onde cada dia eram oferecidos sacrifícios a César, nosso

34

 Personagem desconhecida: só Sêneca lembrou-se dele nesta passagem.

35

 Faláride: tirano de Agrigento (Sicília), famoso pela sua crueldade.

36

Uma espécie de jogo de damas: era chamado também "jogo dos pequenos soldados".

37

 Era costume das grandes personagens da época ter sempre a companhia de uma espécie de diretor espiritual, chamado "filósofo". Ver, a este respeito, a obra de Sêneca Consolação a Márcia (IV, 2).

deus: "Em que pensas neste momento, Cano?", perguntou-lhe o filósofo; "em que disposição de espírito te encontras?" "Tenho", respondeu Cano, "a intenção de observar neste instante tão breve se vou sentir minha alma elevar-se." E ele prometeu, caso descobrisse alguma coisa, tornar a voltar, a fim de instruir seus amigos sobre a sorte das almas.

10. Eis a tranqüilidade no meio da tempestade! Não é digno da imortalidade este homem que procura na sua própria morte uma prova da verdade; que nos últimos momentos de vida interroga sua alma exalante, e que, não satisfeito de instruir-se até a morte, quer que a morte mesma lhe ensine alguma coisa? Pessoa alguma jamais filosofou por tão longo tempo. Não abandonemos depressa demais este grande homem, do qual não se pode falar a não ser com veneração: sim, nós transmitiremos teu nome até a posteridade mais afastada, ilustre vítima, cuja morte ocupa um tão grande lugar entre os crimes de Calígula!

XV — 1. Mas não adianta nada ter eliminado as causas da tristeza pessoal, pois algumas vezes acontece que um desgosto pelo gênero humano se apossa de nós, quando percebemos quão grande é a quantidade de crimes felizes; quando refletimos até que ponto é rara a retidão e desconhecidas a inocência e a sinceridade, desde que ela não convenha; quando notamos os lucros e as dissipações da paixão desregrada, igualmente odiados, e a ambição que vai além de seus próprios limites, a ponto de procurar seu esplendor através da baixeza. Então mergulha o espírito em noite escura; e destas virtudes assim transformadas, que em ninguém se espera ver, nem são de utilidade alguma para quem as tem, originam-se densas trevas. 2. Assim devemos aplicar-nos a não considerar odiosos, mas ridículos, os vícios dos homens e a imitar Demócrito antes que Heráclito: este não podia aparecer em público sem chorar, o outro sem rir, um não via a não ser a miséria em todas as ações dos homens, o outro só tolices. Aceitemos, pois, todas as coisas superficialmente e suportemo-las com bom humor: pois está mais em conformidade com a natureza humana rir-se da existência do que lamentar-se dela.

3. Acrescentemos que se presta melhor serviço ao gênero humano ao se rir dele do que ao lamentá-lo: o gracejador nos deixa alguma esperança de melhora, o outro se aflige estupidamente com os males que desesperadamente procura remediar. Enfim, para quem julga as coisas de um ponto de vista mais superior, uma alma mostra-se mais forte abandonando-se ao riso do que cedendo às lágrimas; visto que não se deixa perturbar a não ser por uma emoção muito superficial e que não vê nada de importante, nada de sério, nem mesmo de deplorável em toda a comédia humana.

4. Observemos os motivos de cada uma de nossas alegrias e de nossas tristezas e compreenderemos à precisão deste pensamento de Bíon: "A vida dos homens se assemelha a uma série de experiências: ela não tem nem mais valor nem mais importância do que aquela de um embrião".308F

38 5. Vale mais aceitar

tranqüilamente os costumes comuns e os vícios da humanidade, sem se deixar levar nem ao riso nem às lágrimas: pois atormentar-se com os males dos outros é tornar- se perpetuamente infeliz, e alegrar-se com eles é adotar um prazer desumano. 6.  Assim é mostrar uma sensibilidade inútil chorar porque o vizinho enterra seu filho e tomar um ar de tristeza: igualmente, nas nossas desventuras pessoais, jamais nos devemos entregar à dor a não ser o quanto exige a natureza e não o que reclama o costume. Quantas pessoas não vertem lágrimas unicamente para que estas sejam  vistas, e cujos olhos secam no mesmo instante em que ninguém mais as observa! Mas elas julgariam vergonhoso não chorar quando todo mundo o faz: o hábito de se sujeitar à opinião de outrem é um mal tão inveterado que o mais espontâneo de todos os sentimentos, a dor, tem também sua afetação.

XVI — 1. Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem acabarem mal — Sócrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão, enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar

38

publicamente, atirando-se contra sua espada, que a República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não se afligir com a idéia de que a fortuna paga tão injustamente os méritos dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os . melhores dentre eles são os mais maltratados?

2. Mas, que se deve, então, fazer? Observa como cada um destes grandes homens suportou seu destino; e se eles mostraram coragem, ambiciona a mesma firmeza de alma. Se foram fracos e covardes diante da morte, sua perda é indiferente: ou eles são dignos de que os admiremos por sua bravura, ou sua covardia os torna indignos de pena. Não será vergonhoso se a morte heróica destes homens de coragem fizesse de nós apenas covardes? 3. Glorifiquemos um herói digno de tanta glória e digamos: "Ó bravo! Ó afortunado homem! Eis que tu escapas a todas as misérias, à inveja, à morte; eis-te a sair da prisão. Longe de te julgarem digno de uma má sorte, os deuses estimaram que mereceste estar para o futuro ao abrigo da tirania da fortuna". Quanto àqueles que querem salvar-se e que no limiar da morte se voltam para a vida, é preciso empurrá-los com viva força para seu carrasco.

4. Eu não chorarei nem por quem se alegra nem por quem chora: o primeiro seca minhas lágrimas antecipadamente e o outro torna-se por suas lágrimas indigno das dos outros. Vou eu chorar por Hércules queimado vivo; por Régulo crivado com mil pontas ou por Catão, que suportou com coragem tantos golpes? Todos estes heróis, pelo sacrifício de uma insignificante parte de sua existência, souberam tornar-se eternos e a morte foi para eles o caminho da imortalidade.

RATICAR A SIMPLICIDADE

XVII — 1. Um outro gênero de inquietude, que não merece menos atenção, nasce do cuidado que o homem emprega em fingir e em jamais se deixar ver tal como é: é o caso de muitas pessoas, cuja vida só é hipocrisia e comédia. Que tormento, esta permanente vigilância sobre si mesmo, este terror de ser surpreendido num papel diferente do que aquele que se escolheu! E esta

preocupação não nos deixa mais, desde o instante em que nos persuadimos de que somos julgados a cada olhar que nos lançam. Com efeito, aparecem mil incidentes, que nos revelam contra nossa vontade; e quando logramos nos observar sem desfalecimento, que satisfação! Mas que segurança pode oferecer uma existência inteira passada sob uma máscara?

2. Que encanto, ao contrário, na espontânea simplicidade de um caráter, que desconhece os ornamentos artificiais e que despreza disfarçar-se! É verdade que corremos o risco de perder a consideração, abrindo-nos ingenuamente demais a todos: pois não faltam pessoas para menosprezar o que se lhes torna acessível. Mas a virtude não pode ser de modo algum desprezada, quando oferecida a todos os olhares; e não é melhor ser menosprezado por sua franqueza do que impor-se o suplício de uma dissimulação perpétua? Todavia, não excedamos à medida: pois há muita diferença entre a sinceridade e a falta de modéstia.

 A

LTERNAR O RECOLHIMENTO E A VIDA SOCIAL 

3. É preciso freqüentemente recolhermo-nos em nós mesmos: pois a relação com pessoas diferentes demais de nós perturba nosso equilíbrio, desperta nossas paixões, irrita nossas restantes fraquezas e nossas chagas ainda não completamente curadas. Misturemos, todavia, as duas coisas: alternemos a solidão e o mundo. A solidão nos fará desejar a sociedade e esta nos reconduzirá novamente a nós mesmos; elas serão antídotas, uma à outra: a solidão, curando nosso horror à multidão, e a multidão, curando nossa aversão à solidão.

 A

LTERNAR O TRABALHO E O DIVERTIMENTO

4. Nem mesmo é bom ter sempre o espírito igualmente ocupado: é preciso saber distraí-lo com divertimentos. Sócrates não se envergonhava de se divertir com crianças pequenas, Catão bebia para descansar das fadigas da vida pública, Cipião exercitava seu corpo de triunfador e de guerreiro no compasso da dança: não com estas atitudes moles que hoje em dia estão na moda e que dão ao

movimento mesmo uma languidez mais que feminina, mas do mesmo modo que nossos grandes antepassados, que sabiam nos dias de júbilo e de festa dançar  varonilmente sem que seu prestígio se arriscasse a sofrer, mesmo que eles tivessem por testemunhas seus inimigos. 5. É preciso saber recrear o espírito: ele se mostrará, depois de um repouso, mais resoluto e mais vivo. Do mesmo modo que não se deve fazer um solo fértil (pois uma fecundidade sempre ativa brevemente se esgotaria), assim um trabalho ininterrupto diminuirá o ardor do espírito: um instante de repouso e de distração lhe devolverá sua energia. Quando o esforço se prolonga demais, ele acarreta à inteligência uma espécie de enfraquecimento e de abatimento. 6. Aliás, os homens não se inclinariam tanto aos divertimentos e aos jogos, se o prazer que sentem não satisfizesse a um desejo. Todavia, abusando deles, o espírito perderá sua elasticidade e seu vigor: o sono também é necessário para restaurar nossas forças; mas se ele continua dia e noite, é a morte. Suspensão e supressão não são absolutamente sinônimos.

7. Os legisladores instituíram dias de festa nos quais nos reunimos para nos divertirmos em comum, porque consideraram necessário que o trabalho fosse de tempos em tempos interrompido por descansos: vêem-se, assim, grandes homens tomarem regularmente de permeio diversos dias de férias. Outros, ainda, dividiam cada dia entre o repouso e os afazeres. Lembro-me, por exemplo, de que o grande orador Asínio Polião jamais se ocupou de qualquer coisa depois de quatro horas da tarde: passado este momento, nem mesmo lia suas cartas, a fim de evitar qualquer preocupação nova; e ele se reservava duas horas durante as quais esquecia todo o afã do dia. Outros, depois de ter feito uma pausa no fim da manhã, reservavam a tarde para tarefas de menor importância. Nossos pais, não impediam eles de se iniciar depois das quatro horas da tarde um novo debate no Senado? Os soldados repartem entre si a vigília; e os homens que voltam da expedição estão livres do serviço durante a noite.

8. É preciso governar nosso espírito e conceder-lhe de tempos em tempos um descanso que fará sobre ele o efeito de um alimento restaurador. E preciso,

igualmente, ir passear em pleno campo, pois o céu aberto e o ar puro estimulam e avivam a inteligência; algumas vezes uma alteração, uma viagem, uma mudança de horizontes, assim como uma boa refeição com um pouco mais de bebida do que de costume, lhe darão um novo vigor. Pode-se mesmo, por vezes, chegar até a embriaguez: não, de modo algum, para nela mergulhar, mas para nela encontrar a calma, pois ela dissipa as inquietações, modifica totalmente o estado da alma e afasta a tristeza, assim como cura certas doenças. O inventor do vinho não foi chamado "Liber"309F

39 porque ele solta a língua, mas sim porque liberta a alma das

inquietações que a escravizam; e a reanima e fortalece e a dispõe para todas as audácias.

9. Mas o vinho, assim como a liberdade, não é salutar a não ser tomado com medida. Afirma-se que Sólon e Arcesilau tinham um gosto acentuado pelo vinho; censurou-se a Catão sua embriaguez:310F

40 bom meio de reabilitar este vício em vez de

rebaixar Catão. Mas não se deve recorrer a ele muito freqüentemente, a fim de não adquirir este detestável hábito; é preciso, todavia, por um instante afrouxar as rédeas à exuberância e à liberdade e fazer uma interrupção momentânea à sobriedade austera demais. 10. Porque, se acreditamos no poeta grego, "É doce algumas vezes perder a razão"; ou em Platão: "É em vão que o homem de sangue- frio bate à porta das Musas"; e Aristóteles: "Não se vê jamais um gênio que não tenha seu grau de loucura". 311F

41 11. Somente a linguagem de uma alma exaltada pode

atingir o majestoso e o grandioso. Que ela desdenhe os sentimentos vulgares e batidos; que um entusiasmo sagrado a anime e a arrebate: somente depois ela pronunciará palavras divinas pela boca de um mortal. É impossível alcançar o sublime e o inacessível, enquanto a alma pertencer a si mesma: é preciso que ela se

39

 Líber: um dos nomes de Baco, deus do vinho.

40

Sólon: legislador e poeta grego (séc. IV a.C); Arcesilau foi filósofo da escola de Platão, iniciador do probabilismo. A embriaguez de Catão é lembrada pelo historiador Plutarco (Catão, o Moço, IV).

41

O poeta grego aqui lembrado é Menandro (fragmento 321 da edição Koch): o provérbio é antigo e popular ("Semel in anno licet 

insanire") e ocorre também em Horácio: "Dulce est desipere in loco" (Ode IV , 12, 28). O mesmo Sêneca, num diálogo de A Superstição (que não chegou até nós, mas do qual Santo Agostinho no A Cidade de Deus, VI. 10, citou este fragmento), tinha afirmado, tratando das festas anuais egípcias em honra de Osíris: "Huic tamen furori certus tempus est. Tolerabile est semel anno insanire". E o provérbio continuou através dos séculos, entre o povo e nas obras dos escritores (Roman de Renart, VI, 485; La Rochefoucauld, Heine. etc.). — A frase de Platão encontra-se no Fedro (22, 245); e a de Aristóteles nos Problemas (30.1).

No documento SÊNECA- A tranquilidade da alma (páginas 31-38)

Documentos relacionados