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3 NAQUELE QUARTO ONDE EU TINHA CRESCIDO: A MULHER E O CORPO

Para que o nascimento de Jesus fosse validado como um evento sagrado, o problema da sexualidade feminina foi resolvido com um milagre, assim como no desenrolar da História oficial vem sendo resolvido com o sacrifício das virgens, os cintos de castidade nas esposas, o apedrejamento das adúlteras, o isolamentos das histéricas, a marginalização das prostitutas, a estereotipia das solteiras, a invisibilidade das lésbicas, o slut shaming48 de meninas que mal iniciaram a vida sexual, a punição, das mais diversas formas, das mulheres que fazem ou pretendem fazer sexo: enquanto o homem é definido como um ser que deseja, a mulher tem seu desejo negado para que possa ser livremente objetificada. Tânia Navarro Swain (2014) explica, sobre a reiteração da misoginia que se dá através dos tempos, que as significações sociais entre homens e mulheres é tão diversa e a hierarquia é tão arraigada que o feminismo ainda não conseguiu redefinir os sentidos da diferença. Para a autora, a discriminação se sustenta por três dispositivos principais, que ela propõe como ―subsistemas constitutivos do patriarcado‖, os quais poderão ser observados em operação no decorrer das análises realizadas neste capítulo:

a) o dispositivo amoroso, que é a rede social de convencimento das mulheres em relação aos papéis que lhes são atribuídos tradicionalmente; b) o dispositivo da sexualidade, que faz das mulheres um corpo sexuado; e c) o dispositivo da violência, que atua materialmente com a ameaça, o estupro, o sequestro, o assassinato, o incesto, a pedofilia e toda forma de intimidação àquelas que ousam desafiar seu controle (SWAIN, 2014, p. 40).

Para Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy (1981, p. 20), ainda na Idade Média foram determinados os paradigmas que regeriam o corpo feminino através dos séculos nas sociedades ocidentais, aos quais, ainda que sob novas configurações, seguimos vinculadas:

48 Conforme artigo de Jarid Arraes publicado na página Blogueiras Feministas, slut shaming é o termo

utilizado para definir o policiamento da sexualidade feminina e da sua expressão através da poda, julgamento e restrição de atitudes como usar roupas curtas e decotadas, dançar sensualmente, tomar a iniciativa em situações de flerte etc. Disponível em:

<http://blogueirasfeministas.com/2012/10/cultura-do-estupro-e-slut-shaming/> Acesso em: 24 jul. 2015.

Neste período, essencialmente teológico, a ―maldição bíblica de Eva‖ acompanharia mais que nunca a mulher. Se bem que exista uma contradição interna no pensamento da Igreja medieval no que concerne à posição da mulher, oscilando entre as figuras de Maria, exaltada, e Eva, denegrida, o que prevalece na mentalidade eclesiástica da época é a formação e o triunfo do tabu sexual. Eva é responsável pela queda do homem, e é considerada, portanto, a instigadora do mal. Esse estigma, que se propaga por todo o sexo feminino, vem a se traduzir na perseguição implacável ao corpo da mulher, tido como fonte de malefícios.

Estabelecido o caráter diabólico do corpo da mulher, foi preciso desenvolver estratégias para controlar a grande ameaça que ele representava para a 2moral burguesa que tinha início com a formação das primeiras propriedades individuais. Com a evolução da sociedade moderna, o processo de aburguesamento, conforme analisa Joana Maria Pedro (2003, p. 9) cristalizou vínculos entre o sexo feminino, a feminilidade e a maternidade. Foi por conta da ―garantia da paternidade para a transmissão da propriedade que se acumulava‖ (PEDRO, 2003, p. 10) que a mulher foi aprisionada aos papéis de esposa e mãe, sendo que o primeiro exigia como pré- requisitos a castidade, o bom comportamento e o domínio dos dotes domésticos (só conquistados numa existência circunscrita ao lar) enquanto o segundo se tratava de uma dádiva divina a ser exercida com abnegação. Ainda, a maternidade só era valorizada quando consequente de um bom casamento, o que tornava ambos os papéis indissociáveis um do outro. Estava assim justificada toda e qualquer forma de controle sobre a vida sexual da mulher. A partir do século XIX, a ideia de que ser mãe está diretamente relacionada à constituição da identidade de gênero (PEDRO, 2003, p. 10) das mulheres adquiriu status de natural ao ser balizada por um requintado aparato médico, psicológico e legislativo cujos veredictos são até hoje difíceis de dissolver. Para Maria Rita Kehl (2008) esse aparato atuou tanto sobre a mulher quanto sobre o homem oitocentista, dando origem ao sujeito moderno, o sujeito neurótico da psicanálise. No entanto, conforme a autora,

O que é específico no caso das mulheres, tanto em sua posição subjetiva quanto em sua condição social, é a dificuldade que enfrentaram e enfrentam em deixar de ser objetos de uma produção de saberes de grande consistência imaginária, a partir da qual foi se estabelecendo a verdade sobre sua ―natureza‖ (KEHL, 2008, p. 12).

Escravizadas pelo útero, as mulheres só vislumbraram uma possibilidade de fugir da vigilância e do controle da sociedade com o surgimento da pílula anticoncepcional, disponibilizada na segunda metade do século XX, que sem dúvida representou uma das maiores conquistas femininas por permitir que passássemos a separar, segundo Pedro (2013, p. 244), a procriação da sexualidade: ―a pílula permitiu às mulheres planejarem com mais segurança se, quando e quantos filhos queriam ter, levando em consideração estilo de vida, carreira profissional e questões financeiras. Puderam, então, cogitar outros futuros‖. E assim o fizemos. Além da revolução individual em relação às escolhas que enfim as mulheres poderiam realizar sobre seus corpos e seus projetos de vida, a sociedade pós-pílula iniciou um processo de reconfiguração dos papéis familiares que tem lugar até os dias atuais, conforme descreve Carla Bassanezi Pinsky (2013, p. 517):

Com a possibilidade do sexo com menor risco de gravidez, houve espaço para se questionar publicamente antigos valores como a castidade feminina, a exigência da ―integridade física‖ da futura esposa e a dupla moral sexual, que, entre outras coisas, admitia e incentivava o sexo dos homens com prostitutas. Na nova realidade que se instaurava (não sem traumas e ambiguidades), fazer sexo antes (e mesmo sem) o casamento não seria mais suficiente para comprometer a reputação das mulheres, pelo contrário, aos poucos, o acesso à informação e a busca do prazer passariam a ser considerados ―direitos‖ da mulher.

Em que pesem os avanços promovidos pela revolução sexual na vida da mulher, é preciso sempre questionar de que mulher falamos e em relação a que sociedade. O papel da boa esposa e boa mãe foi concebido para as boas moças filhas das famílias burguesas; as filhas das famílias mais pobres, quando brancas, copiavam esse padrão, enquanto às mulheres negras coube, desde a época da escravidão e da fundação da nossa estrutura social, a ponta mais inferior da hierarquia: seus corpos foram sexualizados em prol do bel-prazer dos seus senhores, e seus úteros acabaram gerando a mão de obra mestiça e bastarda que formou o Brasil. Ao observarmos as origens do feminismo brasileiro, considerando o embate entre as primeiras feministas liberais e as anarquistas do início do século XX, representadas pelos ícones Bertha Lutz e Maria Lacerda de Moura (PINTO C. R., 2003), podemos confirmar esse abismo entre as mulheres brancas das classes mais altas, que tinham acesso às

novidades vindas do exterior (como o próprio feminismo), e a imensa maioria da população de brasileiras, principalmente as negras e pobres, sem acesso à educação e à informação sobre seus direitos, dependentes de iniciativas do governo e da ação de ONGs e movimentos sociais.

A respeito das camadas desprivilegiadas, e portanto sem voz na sociedade, em 1983 Rose Marie Muraro publicou o livro A sexualidade da mulher brasileira: corpo e

classe social no Brasil, que trazia os dados levantados por uma das maiores pesquisas já realizadas sobre o tema em nosso país. Segundo Muraro (1996, p. 15), o objetivo era ―conhecer as verdadeiras intenções da mulher para a maternidade‖ e para isso era preciso ―ligá-las à percepção que elas teriam de seu próprio corpo, da sua sexualidade, dos papéis sexuais que a sociedade lhes determina‖ e ―relacioná-las com sua inserção no mundo do trabalho, bem como conhecer sua ideologia e visão do mundo‖. Para cumprir a proposta, os questionários aplicados diziam respeito a temas como virgindade, adultério, masturbação, homossexualidade, passividade, submissão ao casamento, dissociação amor/prazer, aborto, frigidez, assim como questões relacionadas à supremacia erótica, econômica e jurídica do homem e à diferença de atitudes de homens e mulheres em relação ao casamento, à procriação e ao trabalho. A pesquisa foi aplicada nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco, entre 1269 homens e mulheres divididos entre três classes sociais, burguesia, campesinato e operariado, assim dialogando diretamente com camadas da população feminina que se transformavam aos poucos no principal alvo das reivindicações feministas e reforçando a necessidade de ampliar o olhar em direção à

outra, cujas necessidades são tão diversas quanto são as possibilidades de situações de vida. Segundo Muraro (1996, p. 15),

[...] seria mais importante do que entrevistar mulheres influentes ou membros de organizações, ouvir aquelas que sempre foram o objeto das políticas nacionais e internacionais de controle da natalidade, e das pesquisas demográficas, mas que nunca tinham tido a oportunidade de falar: as mulheres que seriam os ―recipientes‖ dessas políticas.

Daquele 1983 para cá, a observação das mulheres dentro de seus contextos sociais promoveu avanços importantes no que concerne às relações trabalhistas,

como a PEC das Domésticas (2014), ao combate à violência doméstica, como a Lei Maria da Penha (2006), ao acesso ao ensino superior, como a Política de Cotas, e mesmo à situação de miséria, como a instituição do Programa Bolsa Família. Resguardadas as questões ideológicas, a instituição desses programas e leis são marcos importantes para o movimento feminista, pois a questão de gênero no Brasil está intrinsecamente relacionada à questão de classe, e as mulheres negras e pobres são as que mais sofrem as consequências do patriarcado capitalista. Ainda, a postura de Muraro em investigar a real condição da real mulher brasileira se difundiu no desenvolvimento de feminismos que, embora ainda bastante setorizados pelas especificidades das demandas do seu irredutível sujeito mulheres, encontraram possibilidades de se tornarem cada vez mais conscientes, ativistas e abrangentes, não por acaso ―Enquanto houver uma mulher oprimida, nenhuma de nós estará livre‖ é um dos lemas da nova geração. Por outro lado, a legalização do aborto (exceto em casos de estupro, risco de morte da mãe ou feto anencéfalo), para citar o primeiro exemplo de manutenção da discriminação às mulheres pelo próprio Estado, continua fora do debate político, pelo menos entre os governantes e candidatos dos partidos dominantes. Isso justamente num país em que os maiores índices de morte por aborto clandestino se dá entre mulheres em situação de vulnerabilidade social. Herdeiras desses preconceitos fomentados pela escravidão, pelas religiões e pelas desigualdades sociais, nossas leis e políticas públicas só a muito custo vão se desvencilhando do ranço misógino, racista e classista entranhado desde as origens da nossa sociedade.

No Brasil, leis como as que regulam o procedimento de ligadura de trompas pelo Sistema Único de Saúde são elaboradas de forma a manter limitada a autonomia da mulher pobre sobre seu corpo e também sobre sua vida. No texto da Legislação49, a mulher tem direito de realizar a cirurgia quando desejar, desde que cumpra os requisitos de ser maior de vinte e cinco anos ou de ter pelo menos dois filhos vivos, ―se em convivência conjugal, com o consentimento do marido‖. A lei, aprovada em 1996, deveria significar um avanço para as políticas públicas de saúde da mulher, no

49 Lei nº 9.263, de 13 de novembro de 1996, Artigo 10, Parágrafos I e II. Disponível em:

entanto, os entraves promovidos por essas exigências e também pela pressão da igreja sobre o governo dificultam, quando não impedem, a sua aplicabilidade. As consequências são ainda mais graves, conforme analisa Tania di Giacomo do Lago, médica sanitarista especialista no tema, em entrevista ao médico Drauzio Varella:

Na base desse parecer, está a ideia culturalmente estabelecida de que mulher e mãe são figuras quase indissociáveis e que a identidade feminina só se completa na maternidade. Na verdade, agindo assim, os médicos discutem a capacidade que as mulheres têm de decidir sobre a própria vida50.

Em verdade, nesse caso, os médicos e o governo não discutem a autonomia das mulheres, pois o não direito à escolha é imposto de antemão pela lei. Lago e Varella observam ainda que esse não direito é imposto especialmente às mulheres pobres, tendo em vista que clínicas particulares realizam livremente o procedimento para quem possa pagar por ele. Dessa forma, para Lago, ―Estamos negando a essas mulheres a possibilidade de exercer sua vida no sentido pleno, o que é uma enorme injustiça do ponto de vista social51‖. A lei da laqueadura, no entanto, é apenas um exemplo. Antes de apelar a essa alternativa, as mulheres deveriam, seguindo um raciocínio que seria lógico, optar por métodos contraceptivos reversíveis, mas também nesse caso a moral social é imperativa na configuração da desigualdade, pois não há no Brasil uma política de planejamento reprodutivo efetiva, capaz de promover a distribuição regular dos métodos nos quatro cantos do país e o acesso de todas as mulheres a eles, bem como ao mesmo tempo informá-las sobre como e por que motivos utilizá-los. Muito menos há qualquer esforço em conscientizar os homens de que a contracepção e o planejamento familiar são também responsabilidades deles: as concepções convencionais dos papéis femininos e masculinos assim como as diretrizes impostas pela religião ainda têm força decisiva na elaboração dos direitos e deveres dos cidadãos.

Diante dos impasses que passam ao largo da sua realidade imediata, as mulheres acabam apelando ao aborto, procedimento que só pode ser realizado clandestinamente e que assim mesmo corrobora com a divisão hierárquica da

50 LAQUEDURA. Disponível em: <http://drauziovarella.com.br/mulher-2/laqueadura/> Acesso em:

24 jul. 2015.

sociedade: enquanto as pobres arriscam suas vidas nos açougues, e muitas vezes morrem por isso, as mais privilegiadas têm a oportunidade de recorrer a clínicas decentes, mesmo que ilegais. Em 2010, a Universidade de Brasília, em parceria com o Instituto de Bioética, realizou a Pesquisa Nacional sobre Aborto (PNA), com financiamento do Fundo Nacional de Saúde, que comprova essas afirmativas e mais:

A PNA indica que o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Tipicamente, o aborto é feito nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional. A religião não é um fator importante para a diferenciação das mulheres no que diz respeito à realização do aborto. Refletindo a composição religiosa do país, a maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p. 96452).

A expectativa de que a legislação avance nesse sentido é quase utópica, tendo em vista os nossos precedentes no tocante à discriminação da mulher e ao abismo estabelecido entre a teoria e a prática no que concerne à aplicabilidade das leis em nosso país. Andamos a passos muito lentos na dissolução institucional da misoginia: causa surpresa e indignação descobrirmos que somente no início dos anos 80 do século passado a utilização da legítima defesa da honra como justificativa dos chamados crimes passionais cometidos por maridos contra esposas (a situação oposta é registrada em números infimamente menores), foi revista, graças, grande parte, à pressão do movimento feminista no famoso caso Doca Street. Em 1976, Raul Fernando do Amaral Street assassinou a namorada Ângela Diniz com quatro tiros à queima-roupa, justificando o crime a partir da acusação de infidelidade dela, que foi rapidamente transformada pela mídia na pantera de Minas, uma socialite de modos poucos convencionais e vida inconsequente. A vítima, nesse caso, foi submetida a julgamento muito mais rigoroso do que seu assassino: em 1979, quando o caso foi ao tribunal, Evandro Lins e Silva, advogado de Doca, conseguiu abrandar a pena do

52 Cf. o artigo ―Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna‖, publicado pelos

pesquisadores coordenadores do projeto, a PNA combinou duas técnicas de sondagem, técnica de urna e questionários preenchidos por entrevistadoras, para levantar dados sobre aborto no Brasil urbano em uma amostra estratificada de 2.002 mulheres alfabetizadas com idades entre 18 e 39 anos em 2010.

cliente em um ano e cinco meses, usando como estratégia induzir o júri a refletir "até que ponto a participação da vítima contribuiu, mais ou menos fortemente, para a deflagração da tragédia53". Após os protestos dos grupos feministas, a sentença, considerada insatisfatória, foi anulada e Doca voltou a ser julgado em 1981, quando foi finalmente condenado a quinze anos de detenção. A aplicação da pena foi considerada uma vitória pelas feministas, porém uma recente pesquisa de Silvia Pimentel, Valéria Pandjiarjian e Juliana Belloque (2006, p. 80) indica como resultado a persistência dos velhos paradigmas da defesa da honra:

A prática da reprodução da violência de gênero contra a mulher encontra-se presente, para além de certos aspectos da legislação, no conteúdo de argumentos jurídicos e decisões judiciais que incorporam estereótipos, preconceitos e discriminações contra as mulheres que sofrem violência, desqualificando-as e convertendo-as em verdadeiras rés dos crimes nos quais são vítimas. Infelizmente, essa prática ainda é bastante comum e se apresenta com frequência em processos de delitos sexuais praticados contra mulheres, especialmente o estupro.

Para as autoras, nos chamados crimes de honra é que a discriminação encontra ainda hoje sua máxima expressão, já que ao lançar mão da tese de legítima defesa os/as advogados/as promovem ―um verdadeiro julgamento não do crime em si, mas do comportamento da mulher, com base em uma dupla moral sexual‖ (PIMENTEL; PANDJIARJIAN; BELLOQUE, 2006, p. 80). A persistência de tal prática pode ser explicada pela longa narrativa construída entre o sistema legislativo e as estratégias de controle do comportamento feminino. Em 1916, o casamento para sempre, no qual as mulheres tinham evidente desvantagem de direitos, foi estabelecido pelo Código Civil. O único meio de se anular uma união era pela comprovação de que um dos cônjuges cometera um dos quatro erros essenciais, previstos em lei, sobre a pessoa do outro cônjuge: 1) o que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento

53 Evandro Lins e Silva, o ―advogado do século‖, foi um dos fundadores do Partido Socialista

Brasileiro, em 1947, defendeu mais de mil presos políticos gratuitamente em pleno Estado Novo e concedeu habeas corpus que desagradaram os militares no período em que foi ministro do Supremo, entre 19963 e 1969. Ele ainda atuou como ―advogado do país‖ apoiando o afastamento de Fernando Collor da presidência em 1992. Nada disso, como podemos observar, o impediu de recorrer à misoginia no caso Doca Street, comprovando a profundidade em que o machismo se encontra imiscuído na nossa estrutura social. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jan-18/eleito- advogado-seculo-evandro-lins-silva-completaria-100-anos> Acesso em: 24 jul. 2015.

ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; 2) a ignorância de crime inafiançável, anterior ao casamento e definitivamente julgado por sentença condenatória; 3) a ignorância, anterior ao casamento, de defeito psicológico irremediável ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência; e 4) o defloramento da mulher, ignorado pelo marido. O último item pode não soar estranho se relacionado a um distante 1916, porém é preciso destacar que essa lei só foi revogada em 2002 (pela Lei nº 10.406), fazendo valer até muito pouco tempo a ideia de que a virgindade da mulher estava diretamente relacionada à honra do futuro marido.

Seguindo a trajetória de injustiças institucionalizadas, as mulheres casadas, até 1962, ano em que foi aprovado o Estatuto Civil da Mulher Casada (Lei 4.121), graças à luta de um grupo de advogadas lideradas por Romy Medeiros, eram, de acordo com Céli Ferreira Pinto (2013, p. 46) ―consideradas na Constituição na mesma condição dos silvícolas e tinham o exercício da sua cidadania controlado pelos maridos, que podiam negar-lhes permissão para trabalhar ou para viajar ao exterior‖. O divórcio foi aprovado em 1977 (Lei 6.515) e somente em 1988 a Constituição Federal estabeleceu a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres em todas as esferas, inclusive no casamento. Apesar dos avanços, ficou apenas para 2005 a descriminalização do adultério (Lei 11.106), o que finalmente deveria inviabilizar a traição como justificativa para o assassinato, no entanto a pesquisa de Pimentel,

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