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Narração como técnica de investigação

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 140-142)

CAPÍTULO III – SOFRIMENTO E RESISTÊNCIA

3.1 Narração como técnica de investigação

O objetivo deste capítulo é identificar como, em situações limites, efetuam-se, por assim dizer, a potência de agir em um cenário social específico de adversidades no confronto com formas discursivas cerceadoras. A análise da narrativa efetuar-se-á, primeiramente, por meio de uma abordagem reconstrutiva. Para iniciar esse processo de exposição, foi escolhida uma narração específica, cujo registro se deu em razão de uma pesquisa acadêmica referente ao tema família e violência policial (VIEIRA, 2009). A escolha desse documento deu-se pelas razões que se seguem. Primeiramente, do ponto de vista do posicionamento da narradora, dona Zélia, no processo de organização para o enfrentamento da violência policial, pode-se afirmar que se trata de um caso típico de engajamento, o que significa dizer que, conforme o lema da organização – entre a dor e a resistência – seus relatos podem ser compreendidos como parte constitutiva de seus atos e autos de resistência. Analisando os indicadores de certas estruturas semânticas, certos elementos próprios do pensamento em complexo dessa narração, é possível identificar os nexos existentes entre processos afetivos, formas de pensamento expressos pelas estruturas de generalização na forma de conceitos cotidianos e acadêmicos (científicos, conforme Vigotski), que possam sinalizar algumas especificidades ligadas ao seu engajamento, ou seja, identificar como, em situações limites, se efetuam, por assim dizer, a potência de agir em um cenário social específico de adversidades no confronto com formas discursivas cerceadoras.

34 Conceitos espontâneos são aqueles formados no cotidiano, segundo uso tradicional das palavras no cenário social no qual se inserem as crianças, algo muito próximo do que Paulo Freire (1921-1997), no método de educação de adultos que recebeu o seu nome, concebeu como palavras geradoras, por meio das quais procurava iniciar o ensino da leitura e escrita, sempre utilizando palavras com densidade de sentidos no mundo do educando. (FREIRE, 1967)

Vigotski (2001) declara: “há muito tempo se sabe que as palavras podem mudar de sentido. Mas recentemente se tem observado que é também necessário estudar como o sentido pode modificar a palavra ou, melhor dito, como os conceitos mudam de nome” ( p. 334). Essa nova indicação sugere que o sentido pode separar-se da palavra que o expressa com a mesma facilidade com que pode se somar a qualquer outra palavra, relacionar-se com a palavra em seu conjunto, o sentido da oração, relacionando-se com a frase em seu conjunto. O autor acrescenta:

o sentido se separa da palavra e desse modo o conserva. Dessa peculiaridade deriva outra, a peculiaridade semântica da linguagem interna, que consiste na união, combinação, fusão de palavras, tal como o fenômeno da aglutinação presente em algumas línguas. os sentidos de diferentes palavras se influenciam entre si como se se despejassem uns nos outros, como se o sentido de uma palavra estivesse contido no outro e o modificasse (VIGOTSKI, 2001, p. 335-336).

Os exemplos são obtidos da linguagem literária, e o título de algumas obras assume a expressão sintética de toda ela (Dom Quixote, Hamlet, etc) e palavras repetidas em um poema passam a representar toda a obra. Destaca Vigotski (2001) especialmente, um poema de Gogol, Almas mortas, que trata do caso de servos mortos que não haviam sido excluídos do censo oficial, implicando continuarem sendo vendidos como se estivessem vivos. Almas mortas inicialmente designa o trafico de almas mortas, mas no decorrer do poema, passa a significar algo totalmente novo, em comparação com o uso inicial. Passa a significar não os servos falecidos que constam como vivos, mas também os personagens do poema “fisicamente vivos porém mortos”.

Do ponto de vista das características da própria produção, da própria materialização da forma e do conteúdo, a narrativa testemunhal em análise apresenta algumas características que a distingue de outras. Comparativamente a outros relatos a que se teve acesso (em um total de sete), todos marcados por expressões de grande sofrimento, como o de dona Zélia pode ser de pleno direito definido como um gênero discursivo no qual, de forma vívida, comparecem múltiplos personagens com suas respectivas falas, de tal forma que permite ao leitor, não apenas se aproximar do processo vivido, mas formar um quadro da intensidade da experiência do trágico desencadeada pela violência policial em ato. De pleno direito, o documento em análise pode ser definido por aquilo com que Vigotski caracteriza o conjunto de processos que medeiam a passagem da linguagem ou discurso interior, para a forma comunicativa expressiva na forma da linguagem oral, formando também um tipo de discurso

polifônico, em que o narrador figura como a consciência das consciências (BAKHTIN, 2008), pois, dos relatos destacam-se personagens as mais diversas, e por meio deles, reproduzem-se os diálogos de tal modo que é possível para o leitor adentrar o universo da experiência que se desdobra por meio da narração.

Embora os momentos narrativos evidencie uma figuração da experiência de uma mãe, buscando defender o filho de uma violência em ato sistemática e progressiva, ele pode ser abordado de duas perspectivas complementares. A primeira faz referência ao fenômeno sociológico da violência policial e seu modus operandi, e a segunda, à dinâmica da própria consciência de dona Zélia, especialmente da complexa trama que envolve figuras de referência, negativas ou positivas,, processos tais como memória e emoções, envolvendo a trama estabelecida entre pensamento e palavra. Trata-se de perceber os recursos semânticos, imaginários, emotivos35 a que recorrem pessoas que se encontram diante de uma realidade

que, como se poderá constatar, marca uma experiência de terror, para comunicar e partilhar a experiência específica de dor e perda como um ato político de enfrentamento da censura e da ameaça. Em relação a outros relatos identificados documentos institucionais ou em pesquisa anterior sobre o tema (VIEIRA, 2009), nenhum deles contém a intensidade e riqueza do que será exposto, motivo pelo qual foi escolhido para figurar nessa exposição de testemunhos e experiências, como caso emblemático. No entanto, elementos presentes nos demais casos serão considerados na análise, tanto para estabelecer aproximações como distanciamentos entre o que há de comum em experiências objetivas de perda de entes queridos em razão de violência em ato praticada por policiais militares.

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 140-142)