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Em O Chalaça temos uma autobiografia de cunho íntimo, vista pela ótica do narrador Francisco Gomes da Silva, conselheiro de D. Pedro I. O escritor, apoiado em relatos históricos factuais, constrói seu romance como ficção, como podemos observar já nas orelhas do livro, normalmente espaço do editor, aqui ocupadas por uma extravagância: uma psicografia de D. Pedro I, conforme informa o seu autor:

Mas Francisco Gomes também sabia fazer rir. Não é à toa que seu apelido significa gracejo, caçoada, zombaria. Seu humor fino e inteligente, seu talento musical (tirava inspirados lundus de sua viola) e sua habilidade ao intermediar meus encontros com as filhas de Eva fizeram com que ele fosse minha companhia favorita enquanto não admirava as flores pelo lado da raiz.143

Torero costura alguns episódios da história oficial, mais precisamente o período do Primeiro Reinado brasileiro, bem como intenta entrelaçar o destino do narrador Gomes da Silva, uma personalidade que realmente existiu, para, com eles, construir a sua “história”.

O autor preocupa-se mais com o modo de contar a "história" e construir seus capítulos do que com a própria História. A voz do narrador passa a ser o centro do romance. A todo instante ele se faz ouvir, por meio de interrupções explícitas, digressões e comentários à margem do texto. A irreverência e sagacidade do virtuoso Francisco Gomes da Silva percorrem todas as páginas do livro, isto é, atingem o próprio formular da obra.

Torero insere em seu discurso narrativo diversos elementos, como diário, cartas e memórias, fazendo assim um uso constante de gêneros intercalados. O narrador, sujeito já quarentão, se põe a escrever um diário sobre sua vida em

Portugal e também sua biografia durante o período em que esteve no Brasil. Organizados em blocos relativamente curtos, os 63 capítulos d’O Chalaça fluem segundo o ritmo do pensamento do narrador.

Como quem determina o ritmo do tempo narrativo é o próprio narrador, Francisco Gomes da Silva opera no eixo da duração e não do tempo quantitativo. A sucessão das idéias do narrador determina as articulações temporais da obra. Através do tempo narrativo, o narrador age a seu bel-prazer sobre o tempo da ação.

Qual o tempo da ação em O Chalaça? É relativamente fácil de se reconstituir. Quando fugiu para o Brasil junto com a família Real, em 1808, Francisco Gomes da Silva contava com 17 anos. Durante o ano de 1809 passava os finais de tarde encontrando-se com seus amigos boêmios, jogadores, cantadores do Rio de Janeiro num botequim da cidade. A partir daí, segue em suas atividades de criado da corte até que D. João VI deixa o Brasil, em 1820. No mesmo ano, D. Pedro I escolhe Gomes da Silva como seu criado particular, tornando-se ambos amigos íntimos.

Em 1822, Gomes da Silva acompanha o seu amo para uma viagem à província de São Paulo, onde este proclama a Independência. O narrador está agora com 31 anos. Dois anos mais tarde, D. Pedro I outorga a primeira Constituição do Brasil.

No ano de 1830, entretanto, o ministro Marquês de Barbacena consegue, por intermédio de D. Amélia, segunda esposa do Imperador, expulsar Francisco Gomes da Silva do Brasil. Este fixa residência em Londres, retirando-se da vida política.

Em 1831, o Imperador abdica da coroa em nome de seu filho e encaminha-se para a Europa. No ano seguinte, já com 41 anos de idade, Francisco Gomes da Silva arquiteta planos para casar com a Baronesa Marie Louise, mulher sessentona, que, no entanto, morre em seguida. Gomes da Silva segue, então, viagem para Portugal, encontrando-se aí, entre 1832 e 1835, quando escreve o caderno com o diário de anotações.

narrador. O tempo exterior só existe quando refletido na subjetividade de Francisco Gomes da Silva. Tudo se passa como se o narrador-personagem, depois de ter organizado sua obra segundo linhas cronológicas “normais”, tivesse se dado ao trabalho de intercalar os capítulos cuidadosamente.

Devemos lembrar que Torero não é Francisco Gomes da Silva. O narrador cria um tempo narrativo que remaneja o tempo da ação, através de técnicas como

flashbacks e flashforwards, o que confere um tom fragmentário à narrativa, com

movimentos de avanço e recuo constantes, “sem quebra da continuidade do discurso, que evoca ou antecipa acontecimentos, de modo a deslocar a mesma ação ora para o passado ora para o futuro”.144

Assim como o tempo, o espaço também é desconstruído e transposto para dentro da narrativa, transformando-se em vivência subjetiva. O espaço percorrido pelos personagens não se estende em linha reta de um ponto a outro. O movimento espacial em O Chalaça se parece mais com o do romance picaresco, como o de Lazarillo de Tormes, por exemplo, citado pelo próprio narrador. 145

O espaço urbano do Rio de Janeiro se atrofia, encolhe, desrealiza-se, reduzindo-se ao Palácio São Cristóvão e ao Bar da Corneta, onde Gomes da Silva se encontrava com os amigos da boemia. O espaço também é representado pelas diversas viagens encetadas pelo narrador, como, por exemplo, do Rio a São Paulo, quando este acompanhou o seu amo; da travessia marítima de Portugal ao Rio, quando da chegada ao Brasil junto com a Família Real; do Rio a Londres, quando da expulsão do narrador do Brasil; e, depois, da França a Portugal, quando Gomes da Silva reencontra o seu amo.

144 NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2ª ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 32.

145 O gênero de literatura picaresca surgiu na Espanha no século XVI com a obra A Vida de

Lazarillo de Tormes, de autoria anônima, estendendo-se pelo século seguinte com outras

obras como Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán e El Buscón, de Francisco de Quevedo, entre outros. Estes livros trazem características similares da modalidade clássica picaresca. Em geral, são autobiografias com intenção de desmascarar a sociedade da época através de meios ilícitos, com a finalidade de uma possível ascensão social. (GONZALEZ, Mário M. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. p. 11-80).

O espaço é vivido e recordado de modo subjetivo, ao sabor dos interesses do viajante, interessado em pessoas, movido por seus afetos e sentimentos, e não pela fria racionalidade de um guia turístico. Assim, ao narrar sua viagem a Lisboa, volta ao ponto de partida:

Esse já é o quinto dia em que meus ossos estão a sacolejar dentro de uma sege apertada e desconfortável. Estamos agora atravessando Salamanca. Com o dinheiro da venda de algumas roupas, pude reunir os recursos necessários para a comida e os pousos. Se tudo correr bem, poderemos até trocar os cavalos antes de entrar na Lusitânia.146

Em relação ao estilo narrativo empregado em O Chalaça, cumpre destacar que um dos elementos mais relevantes consiste no contraste entre a linguagem culta, formal e o tom coloquial no romance, pois tal contraste ajuda a criar efeitos cômicos e humorísticos. A linguagem do narrador é “sutil”, lusitana, enquanto que seus amigos João da Rocha Pinto e João Carlota apresentam uma linguagem estereotipada, coloquial, brasileira. Na verdade, o narrador busca sempre se "eximir" do surgimento de qualquer expressão de natureza chula em sua narrativa, jogando a "culpa" por este fato sobre seus colegas de boemia. Um exemplo disso pode ser visto no excerto a seguir:

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'Diabo! Já faz dois dias que não fodo uma mulher!' Essas mesmas palavras, ditas com essa mesma crueza e ímpeto, foram pronunciadas pelo meu amigo João Carlota por ocasião da passagem de uma vendedora de doces  muito delgadinha, por sinal, à frente de nossa janela. [...] 'Na África, por Deus! Não há nada como foder na África!' Assim respondeu de chofre o Carlota, deixando-me um tanto mais confuso do que já estava quando constatei que a minha última desobediência ao sexto mandamento tinha se verificado há... três semanas.147

O excerto acima demonstra as intenções de Torero de rechear o texto da sua obra com variadas terminologias de índole sexual, que ajudam a garantir o nível estético da narrativa ao passar do jocoso ao sério, e do sério ao jocoso alternadamente. No entanto, essa mescla de seriedade e jocosidade é ditada pelo

146 O Chalaça, p. 34. .

discurso do narrador, que lança suas raízes numa das tradições narrativas do Ocidente. Esse assunto será tratado adiante com maior profundidade.

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