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SEÇÃO V – A ESCRITA INFANTIL: ENFOQUES DADOS AO TEXTO

2.5 Narrador, a voz da narrativa

O narrador é uma criação do autor para estruturar e dar voz à narrativa. Para Bakhtin (2009, p.157), “o contexto narrativo começa a ser percebido – e mesmo a reconhecer-se – como subjetivo, como fala de ‘outra pessoa’”. Segundo o autor, em obras literárias, “isso é composicionalmente expresso pelo aparecimento de um narrador que substitui o autor propriamente dito” (BAKHTIN, 2009, p.157), porém convém salientar que o narrador não é o autor, mas uma criação sua, criado o narrador e definido seu ponto de vista diante dos acontecimentos da narrativa, este que dará voz e conduzirá a história de modo que o autor permanecerá imperceptível ao receptor, seja leitor ou ouvinte. Em relação ao ato de criação do autor, Bakhtin (2009, p.157) esclarece que

o discurso do narrador é tão individualizado, tão ‘colorido’ e tão desprovido de autoritarismo ideológico como o discurso das personagens. A posição do narrador é fluida, e na maioria dos casos ele usa a linguagem das personagens representadas na obra.

Isso se manifesta, principalmente, no discurso indireto, no qual o narrador incorpora ao seu discurso a fala dos personagens apresentando-a de modo não marcado, com ausência de pontuação e verbos dicendi.Bechara (2002) diz que esse tipo de verbos é usado na composição de diálogos no discurso direto, por exemplo, os verbos dicendi: disse, respondeu, perguntou, retrucou ou sinônimos.

De acordo com Gancho (1998), quando a história é narrada em primeira pessoa, o narrador, chamado narrador- personagem, participa do enredo, nesse caso sua visão

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sobre os fatos fica limitada ao envolvimento do personagem no enredo. Assim, temos o narrador-protagonista, como personagem principal da narrativa, e o narrador- testemunha, que narra acontecimentos dos quais participou sem se colocar como protagonista da narrativa.

O texto narrativo do ponto de vista da primeira pessoa pode ser do tipo relato, em que o narrador conta um caso do qual participou diretamente, ou tipo história, na qual o narrador participa ou testemunha uma história imaginada. Segundo Bruner (2014, p.27), “uma história expressa o ponto de vista de um narrador, ou sua perspectiva, ou seu conhecimento de mundo, ou, efetivamente, a verdade, a objetividade, ou até mesmo a integridade, que pode ser difícil de se determinar”.

Ainda sobre os tipos de narrador, Gancho (1998) esclarece que, quando a história é narrada em terceira pessoa, o narrador atua como se fosse um observador dos fatos. Pode o observador ter uma visão completa da história, demonstrando tudo saber sobre os acontecimentos, daí estamos diante de um narrador- onisciente, e pode o narrador estar presente em todos os lugares onde ocorrem os fatos, então temos um narrador-onipresente. Quando o narrador dirige a palavra ao leitor ou tece algum comentário acerca do comportamento do personagem, é chamado de intruso. E quando o narrador, ao se identificar com o personagem, permite que um personagem tenha mais espaço, colocando-o em destaque na história, podemos chamá-lo narrador parcial.

É o narrador que, ao dar voz à história, organiza os outros elementos da narrativa, atuando como se fosse um “intermediário entre o narrado (a história) e o autor, entre o narrador e o leitor” (GANCHO, 1998, p. 9). Ao se analisar a narrativa, observa-se a posição do narrador diante dos acontecimentos, vista pelo uso de pronome pessoal, pois a narrativa pode ser escrita em primeira ou em terceira pessoa.

Sobre o ponto de vista da narrativa, do conjunto dos textos analisados, dezenove crianças escreveram seus textos em terceira pessoa e seis optaram por escrever um texto em primeira pessoa. O formato do texto usado pela criança definiu o ponto de vista da narrativa ou vice-versa, porque o ponto de vista do narrador determinou o gênero predominante no texto.

As crianças que escreveram histórias com características semelhantes à versão de uma fábula (Quadro 5) e as crianças que escreveram um texto contando a história do Peixoto (Quadro 6) optaram pelo ponto de vista narrativo em terceira pessoa, no qual essas dez crianças contaram uma história que não era sua, era a história da vida dos

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personagens, enquanto um não-eu do narrador/autor, em que o distanciamento da cena da história, manifesto na redação em terceira pessoa, parece necessário.

Das seis crianças que optaram por escrever o texto em primeira pessoa, cinco foram as que escreveram o relato pessoal sobre o açaí (Quadro 9), utilizando o pronome pessoal ‘eu’. Nas condições de produção da escrita, embora a consigna não tenha indicado o gênero textual esperado na escrita do texto, foram as questões da consigna que forneceram o molde do formato de texto a ser usado pela criança na atividade, incluindo o uso do ponto de vista narrativo em primeira pessoa com caráter autobiográfico. O texto de Brayan (Quadro 9) ilustra nossa análise.

O açaí é muito bom

1 Eu tomo açaí com uma colher.

2 Eu tomo açaí em casa. Eu tomo açaí no almoço e no jantar. 3 Eu tomo açaí com a minha mãe, meu pai, minha avó e meu avô. 4 O açaí é uma delícia.

5 O açaí veio do açaizeiro. 6 Uma senhora que faz o açaí. 7 O preço do açaí é 5 reais. (Brayan)

Brayan escreveu um texto, em sete linhas e um título, sobre o tema solicitado: o açaí. De modo geral, as crianças responderam parte das questões. Mas, o menino respondeu no texto as oito questões da consigna, como se vê no Quadro 11.

Quadro 11 - Análise do texto-resposta às questões da consigna

Questão da consigna Texto-resposta do Brayan

(1) Como você toma açaí? ‘Eu tomo açaí com uma colher.’ (l. 1) (2) Onde você toma açaí? ‘Eu tomo açaí em casa.’ (l. 2)

(3) Quando você toma açaí? ‘Eu tomo açaí no almoço e no jantar.’ (l. 2) (4) Com quem você toma

açaí? ‘Eu tomo açaí com minha mãe, meu pai, minha avó e meu avô.’ (l. 3) (5) Como é o açaí? ‘O açaí é muito bom.’ (título)

‘O açaí é uma delícia.’ (l. 4) (6) De onde vem o açaí? ‘O açaí vem do açaizeiro.’ ( l.5) (7) Quem é que produz o

açaí? ‘Uma senhora que faz o açaí.’ (l. 6) (8) Qual é o preço do açaí? ‘O preço do açaí é 5 reais.’ ( l. 7)

Fonte: Pesquisa documental, 2015.

Lendo o texto de Brayan, podemos verificar que ele interagiu com o escrito, compreendeu o que leu e respondeu às questões atendendo ao solicitado, observando

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inclusive a ordem das questões da consigna na escrita de seu texto. Por isso, podemos afirmar que ele estabeleceu diálogo com as questões da consigna e as respondeu sem acréscimo de elementos que a extrapolassem.

Este texto se apresenta como um ‘complemento às questões’, pois as informações seguem a mesma ordem das questões da consigna, constituindo-se em um ‘rótulo’, cuja leitura parece não se desprender da consigna. Em virtude disso, o denominamos texto-resposta.

Neste texto narrativo tipo relato pessoal predomina a primeira pessoa, as quatro primeiras frases iniciam com o pronome ‘eu’, sendo também empregados os pronomes possessivos ‘meu’ e ‘minha’. Trata-se, portanto, de um narrador em primeira pessoa.

De modo geral, o texto que a criança leu forneceu elementos acerca da temática do texto, da escolha de personagens, da sequência das ações que realizam, do espaço e do tempo da narrativa. Assim, quando são solicitadas a escrever a partir de uma experiência de leitura que antecedeu a escrita, as condições de produção interferem, de certo modo, na forma como a criança produz o seu texto. Nesse movimento da leitura para a escrita, a criança traz para o texto que escreve elementos extraídos do texto lido.

3 A construção de diálogos no texto da criança

Em relação à presença de diálogos em textos infantis, deve-se salientar que a concepção interacional e dialógica de linguagem pressupõe o reconhecimento da reciprocidade entre o eu e o outro, presente em cada enunciado, numa alternância de vozes. Quanto a isso Bakhtin afirma que

o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda a comunicação verbal, de qualquer tipo que seja (BAKHTIN, 2009, p. 127).

O diálogo não ocorre apenas na conversa face a face, entre duas ou mais pessoas, em sentido restrito, pode ocorrer também no discurso escrito, em sentido mais amplo, próprio da condição dialógica da linguagem, concebida por Bakhtin (2009). E é justamente o discurso escrito da criança que se pretende analisar nesta pesquisa. Tal estudo se faz relevante, pois, segundo pesquisas de Smolka, na escola “espera-se que as crianças se tornem leitoras e escritoras como resultado do seu ensino. No entanto, a

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própria prática escolar é a negação da leitura e da escritura como prática dialógica, discursiva e significativa” (SMOLKA, 1993, p. 93).

Pesquisas realizadas pela autora apontaram que “a escola não tem considerado a alfabetização como um processo de construção de conhecimento nem como um processo de interação, um processo discursivo, dialógico” (SMOLKA, 1993, p. 76). No entanto, mesmo bloqueando a fala e limitando as possibilidades de leitura e de escrita, “a escola não consegue bloquear o discurso interior” da criança (idem).

Embora seja mais difícil ter acesso ao discurso interior do que ao discurso que é verbalizado, para Bakhtin (2009, p. 62), “o discurso interior pode, igualmente, ser exteriorizado”. Segundo ele, as formas do discurso interior se assemelham às réplicas de um diálogo, e “não existem entre elas, assim como entre as réplicas de um diálogo, laços gramaticais; são laços de outra ordem que as regem” (BAKHTIN, 2009, p. 64).

Para Bakhtin (2009, p. 95), “a consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma mera abstração, produzida com dificuldade por procedimentos cognitivos”. Entende-se, então, que a compreensão das formas normativas resulta de uma reflexão sobre a língua ainda a ser trabalhada na escola, pelo professor, no entanto o seu desconhecimento, por parte da criança, não inviabiliza que se solicitem às crianças que produzam textos, na alfabetização, uma vez que podem mostrar o que já sabem sobre a língua que usam em situações concretas do dia a dia, e podem também as crianças na situação de escrita serem levadas pelos outros – colegas ou professor(a) – a refletirem sobre aspectos referentes à escrita de texto.

A respeito da criação literária infantil, Vigotsky (2009, p. 66) esclarece que seu desenvolvimento “torna-se de imediato bem mais fácil e bem-sucedido quando se estimula a criança a escrever sobre um tema que para ela é internamente compreensível e familiar e, o mais importante, que a incentive a expressar em palavras seu mundo interior”.

Entende-se que, na sala de aula, quando se cria uma atividade de interação verbal, o discurso interior pode ser externado, entremeado aos textos orais e escritos produzidos pelas crianças, e que, em textos escritos, que é o foco deste estudo, o discurso interior pode se manifestar na construção de diálogos na forma de textos escritos, quando o autor se coloca no texto, extrapolando os elementos dos textos que motivaram a atividade de escrita.

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Na escrita de textos narrativos, o autor pode optar por três tipos de discurso: o discurso direto, o discurso indireto e o discurso indireto livre. Estes três tipos de discursos não estão necessariamente separados, eles podem coexistir em um mesmo texto. Isso porque em um mesmo texto pode haver partes em que o narrador conta a história, em discurso indireto, como se estivesse observando a certa distância os acontecimentos. Em outras partes, o autor dá voz aos personagens, em discurso direto, deixando que expressem a sua própria fala, constituindo assim legitimamente um diálogo.

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