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Narrar a Experiência e garantir a Tradição

CAPÍTULO II. – O NARRADOR NO LIMIAR

II.2. Narrar a Experiência e garantir a Tradição

“Cada vez que me julgo importante, por ser escritor, ou por ser médico, ou por escrever no jornal, uma vozinha debochada me chama à realidade – que besteiras são essas que andas escrevendo, Mico? – e me faz lembrar que é preciso ser humilde” (SCLIAR, 1984:14). “[...] Sou judeu. Tenho a arcaica, visceral lembrança de anos de dispersão” (SCLIAR, 1984: 15).

Segundo Regina Igel (1997), a temática judaica na literatura brasileira veio como reação aos problemas típicos dos primeiros momentos da imigração para o Brasil. Entre os mais comuns têm-se: as dificuldades vividas nas colônias do Sul do país, os primeiros empreendimentos na cidade de São Paulo e a aglomeração no bairro do Bom Retiro, e, principalmente, a experiência coletiva vivida no bairro do Bom Fim, no Rio Grande do Sul, quando os colonos começaram a migrar para a cidade de Porto Alegre.

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De ascendência ashkenazim, Moacyr Scliar está incluído entre os escritores judeus28 de maior produção literária contemporânea, deixando transparecer em suas obras o conflito do estrangeiro frente ao universo cultural brasileiro. Além do Judaísmo, explora também temas ligados à Medicina e à literatura, sendo que em todos eles promove um diálogo entre os temas. Desse modo, a hibridização cultural entre o que é brasileiro e o que é judaico se mescla, surgindo, quase sempre em seus romances, sujeitos performados do choque, da dispersão constante, daquele que está sempre pronto para mudanças, e tendo que fazer escolhas entre a tradição herdada e a cultura do país de adoção.

Não é diferente o narrador do romance A Majestade do Xingu. Vindo para o Brasil menino ainda, experimenta os mais diversos choques. Ainda na Pale, vive o trauma do pogrom, sendo a mais terrível lembrança, pois o acompanha por toda a sua vida, inclusive no momento da morte. Cabe lembrar que o narrador está numa cama de hospital, e toda a sua família já se encontra dispersa pelo mundo. O que fica como lembranças são os destroços do passado, reconstituído em imagens fragmentadas daquilo que viveu, resultando em muita angústia e muito sofrimento que, estocados em sua memória, emergem nesse momento. Por isso, há uma intensa necessidade de recompor as peças do caminho percorrido, revivendo de novo os fatos e, assim, salvá- los do esquecimento.

Lembra-nos Walter Benjamin: É no momento da morte que “o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer” (BENJAMIN, 1993c:207). A narrativa, então, se dá como forma de salvação, isto é, por meio dela, a sua história se configura, ressurgindo dos “cacos” do passado e re-figura, no presente, aquilo que foi perdido, mas que precisa ser registrado e transmitido de geração em geração, para não cair no esquecimento.

O seu gesto lembra-nos a parábola do velho vinhateiro, apresentada por Benjamin no seu célebre ensaio, aliás, já mencionado em outro ponto do presente estudo. Os filhos acreditam na existência do ouro na terra em que estão plantadas as

28 Segundo Regina Igel (1997), o termo judeu recebe definições de três ordens: a religiosa – aquele que aceita a fé judaica; a cultural – aquele que, sem uma filiação formal religiosa, encara os ensinamentos do Judaísmo – sua ética, seu folclore e sua literatura – como pertencentes a ele mesmo, e a prática, para aquele que se considera judeu ou assim é visto por sua comunidade. Embora tenha sido criado nos dogmas da fé judaica, Moacyr Scliar não se considera judeu pela fé, mas pela cultura.

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vinhas e, ao cavá-las, nada encontram, mas descobrem, meses depois, que a felicidade “não está no ouro, mas no trabalho” (BENJAMIN, 1993a: 114). Ou seja, a vida é preciso ser vivida. Simplesmente isso. E o que fica dela é a experiência, e essa não o ajuda por ter sido vivida no interior de um eu solitário, não compartilhado. Para isso, vale o jogo de espelhos. Em relação ao romance A Majestade do Xingu, o narrador diz que irá contar a história de Noel Nutels, mas escondida na exuberante vida do notável médico, é a dele que se revela numa pura realidade. Ele transmite uma experiência que não lhe serve. Continua moribundo na cama de hospital, mas a transmite, porque é preciso manter a tradição e, afinal, o médico – interlocutor silencioso – é também um jovem, e um dia descobrirá o valor da experiência vivida na subjetividade de cada um. Vejamos a atitude do médico:

Ah, o senhor está prestando atenção. Está escrevendo, mas presta atenção. Bem, os jovens conseguem fazer isso, escrever e prestar atenção no que ouvem. E os jovens doutores, então, nem se fala. São capazes de ouvir o paciente, ler o prontuário, falar com a enfermeira e olhar o monitor, tudo ao mesmo tempo. (SCLIAR, 2001a:10)

O velho e o novo se encontram na história do narrador. O médico se relaciona com os equipamentos da técnica, manipulando-os ao mesmo tempo, com naturalidade. Lê o prontuário, fala com a enfermeira, olha o monitor – certamente do computador, e escreve. Isso requer o uso de diversos sentidos. Mas, não é mais o sujeito que fia e tece, ouvindo as histórias do viajante. É o homem fruto da técnica, pobre de experiências, incapaz de narrar. Ele não descreve os fatos passados. Apenas conta-os. Nesse sentido, a estratégia discursiva do escritor é muito importante, pois, ao situar a linguagem no campo da oralidade, portanto, “livre das amarras da escrita” (cf. WALDMAN, 2003), apresenta o narrador em sua pobreza miserável. Na verdade, sua vida toda é miserável, e esse narrador mostra isso. Ele mergulha o leitor em seu pequeno mundo e extrai dele a sua vida miúda, insignificante, mas de pura realidade e é nisso que se apresenta grande, pois apesar de narrar o nada-em-si de sua vida, a preenche na do amigo de viagem, cuja trajetória acompanha pelas notícias de jornal, trazendo junto com ela muitos fatos da história nacional. É interessante a observação de Berta Waldman acerca dessa relação:

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O certo é que os dois meninos, com seus destinos divergentes, encontram-se enlaçados indissoluvelmente, no romance, pois aquele que é grande, vencedor, realizado e aventureiro, só tem existência na fala daquele que é pequeno, fracassado e humilde. Aliás, essa oscilação de medidas (reversíveis?), o grande e o pequeno, perfazem a rota de todos nós: o miúdo do cotidiano, a vida coagulada no ritmo pequeno do dia-a-dia, pontuada pelos momentos de alumbramento, de sonho. A divergência entre o narrador e Nutels, projetada numa linha contínua, pode ser vista como complementar, em sua diferença. (WALDMAN, 2003:108)

Mesmo insignificante, esse narrador se recusa a morrer sem deixar rastros, insistindo na escuta de sua história, e por isso busca resgatar o passado, misturando as experiências vividas aos eventos da História do Brasil, deslocando, com esse gesto, tempo e espaço, como também, misturando personagens reais aos criados pela sua imaginação. Desse modo, os episódios históricos adentram a narrativa na forma de diversos discursos retóricos, sem excluir o “autocorrosivo” humor judaico; não o factual, mas sim o discursivo faz com que se estabeleça uma relação de suplemento entre o narrador Noel Nutels, tornando-se também um suplemento da História no sentido de propor um deslocamento do próprio discurso historiográfico.

É, portanto, na solidão desse homem preso a uma cama na UTI de um hospital, que surge a necessidade de reconstrução do passado, para garantir uma memória e uma tradição, sugerindo ao leitor a necessidade de se retomar a História, não pelo passar contínuo dos tempos, mas para inscrevê-la na grande temporalidade e preenchê-la com a substância viva da narrativa, preservando-a do esquecimento e da destruição.

II.3. Os Filhos da Imigração: o Anônimo e o Médico

Num ensaio em que aborda a dinâmica de integração dos judeus no Brasil, Bernardo Sorj diz acreditar que tal fato é importante para compreendermos o conjunto da sociedade brasileira, bem como o Judaísmo e o anti-semitismo modernos. Baseando- se nessa idéia preliminar, o ensaísta propõe-se a analisar esses elementos a partir de três hipóteses, a saber: a) compreender o fenômeno particular do limitado impacto do anti- semitismo no Brasil contemporâneo; b) indicar algumas características do Judaísmo brasileiro geradas pela integração na cultura e na sociedade judaicas; c) indicar certos