• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I: A retórica da libertação inscrita em cartas de alforria

1.5. Nas velhas fórmulas sempre renovadas expectativas

196 Freire, Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, tabela 07, p.73.

197 Poppino, Feira de Santana, Cap. III. Ressalta-se que essa informação aparece também em boa parte

dos jornais citados nesse estudo.

198 Mattoso, Da Revolução dos Alfaiates, pp.185-185 199Mattoso, Da Revolução dos Alfaiates, p. 192.

Era antevéspera do natal de 1885 quando o proprietário de Salvador, pardinho, então com idade de um ano, fez registrar em notas públicas a carta de alforria condicional conferida cerca de 15 anos antes ao filho de Benedicta, sua cativa. No documento o proprietário não se omitiu de explicitar suas condições: “cujo beneficio confiro-lhe gratuitamente sob a condição de esta reservando-me [sic] o direito de revogá-lo no caso de desobediência ou ingratidão”.200 Embora em termos legais este artifício não fosse mais possível depois de 1871, a possibilidade da revogação continuava no horizonte deste senhor como forte reforço à ideologia paternalista em 1885. O seu plano era que a dependência e subordinação não se esgotassem com a liberdade, mesmo que lançando mão de um recurso já em desuso - a ameaça da revogação da carta de alforria.201

Nesse caso a possibilidade de revogação da liberdade de Salvador pode ter servido para manter não só ele, mas também Benedicta, obediente ao cativeiro por muitos anos, ainda que ela tivesse sido registrada pós 1871, já que não tendo sido lavrada em notas públicas, o proprietário poderia desistir da carta de alforria a qualquer tempo enquanto ela permaneceu no âmbito doméstico. Era um ato privado, portanto sem garantias de que viria se concretizar. A inutilização de títulos de liberdade, por que sem registro, foi um artifício senhorial para desistir de alforrias conferidas mesmo depois da proibição de revogação e, além disso, sem registro a carta podia ser considerada apenas intenção e não ato concreto.202 Desse modo, a obediência de mãe e filho garantiria, de

certa forma, que a alforria seria registrada e daí em diante não mais revogada. Portanto, no caso de Salvador, mesmo que a cláusula restritiva tivesse perdido a validade depois da Lei, no cotidiano daquelas pessoas ainda vigorava.

Interessante notar ainda que as cartas com expressões de afetividade senhorial e/ou condições que diziam respeito aos cuidados com o corpo e alma dos senhores apareceram com certa frequência ainda na segunda metade do XIX, pelo menos até 1880. Ao que parece, esse formato barroco começou a desaparecer em outras regiões a partir de 1850. É o que nota, por exemplo, Kátia Lorena Almeida para a região de Rio

200 UEFS – CEDOC - Pacote – 1885-1886 (fragmentos e folhas avulsas), fl. 66.

201 Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil, pp. 117-121. Para uma abordagem que considera a alforria

localizada no âmbito pessoal da relação senhor-escravo, a despeito das interferências do Estado e, além disso, como elas atrelavam os libertos à política senhorial de dependência, ver: Manuela Carneiro da Cunha, Negros estrangeiros.

de Contas.203 Na Feira, ainda em 1885, se estranhava formas menos pomposas de títulos de alforrias. Leiamos o testemunho de um articulista:

lavra-se nesta vila a mais breve e sucinta de quantas cartas de liberdade que aqui já se escreveram e ainda se escreverão. Conhecem-se várias fórmulas, mais ou menos palavrosas, para tais documentos. A de hoje apenas diz: A minha escrava Leocádia há livre. Antonio Alves Carneiro.

E no final assinaram as testemunhas e colocou o seu sinal público o tabelião. Era 16 de outubro de 1885.204

Alguns historiadores abordaram, por outro lado, que quando a abolição já era uma certeza muitos senhores tornaram o momento de libertação um ritual de muita pompa e muita prosa com a expectativa de (re)atualizar o poder moral em decadência naqueles dias. Conforme Fraga Filho,

em 1887, as fugas coletivas e a recusa de trabalhar nos canaviais, sob a condição escrava, fizeram os senhores refletirem sobre os perigos da manutenção das relações escravistas. No final daquele ano, começaram a conceder alforrias coletivas sob condição ou gratuitas. Os jornais deram grande publicidade a estes atos como prova de desprendimento e de espírito humanitário. Na verdade, era um meio de conter a crescente insatisfação da população cativa e evitar distúrbios na produção.205

Ainda que não tenha tido o efeito esperado pelos senhores, essas informações sugerem que eles usavam as cartas de alforria cultivando determinadas expectativas, pautadas numa lógica que outrora havia funcionado e, por isso buscavam atualizar o seu uso, sobretudo, ao tornar o momento de concessão uma cerimônia pública.206 No Correio de Notícias de 1885 publicou-se a carta conferida pelos pais do Dr. Argemiro Guimarães ao cativo Dionísio – ao que parece sem ônus algum. Passada em cena pública, a alforria foi propaganda abolicionista. Segundo informa o anúncio, o discurso de José Souza de Lustosa, o tal Dr. Lustosa, então juiz de direito que estava presente na 203 Almeida, Alforrias em Rio de Contas, especialmente a tabela 05.

204 UEFS - BSRG, FN, n.1788, Coluna da Vida Feirense, Loc. Livro 04, pag. 78, de 16/10/1943, Ano de

Ref. 1886.

205 Walter Fraga Filho, Encruzilhadas da liberdade histórias e trajetórias de escravos e libertos na Bahia 1870-1910, Tese de Doutoramento, IFCH- UNICAMP, 2004, p. 104.

206 Sobre o assunto ver ainda Silva, “Fugas, revoltas e quilombos”, in Silva e Reis (orgs.), Negociação e

conflito, pp. 62-78; Carvalho, Liberdade, especialmente o capítulo 13; Albuquerque, O Jogo da dissimulação , pp.103-105.

festa “foi acolhido debaixo de vivos e frementes aplausos.” E arremata: “Não cessaremos de aplaudir ações como esta que noticiamos, principalmente quando são praticadas na intimidade da família sem ostentações, nem pompa.”207 Ao que parece, o articulista não deixara de ponderar uma suave crítica, talvez esperasse maior comprometimento com a causa abolicionista e menos autopromoção da parte dos benfeitores.

Retorno aqui à carta de alforria de Maria Crioula, com a qual iniciei esta exposição. Penso que o comportamento de Maria da Anunciação em libertar a dita cativa para mantê-la presa abre outras possibilidades de análise dos sentidos e usos da carta de alforria. A alforria concedida em casa, na Fazenda Santa Tereza, só registrada cerca de 10 anos depois, em 1865, não garantia que Maria pudesse gozar de sua liberdade, visto o direito de sua proprietária de revogar a carta. Além disso, foi uma alforria não-paga, cujo significado dessa modalidade para a produção e reprodução da “ideologia paternalista”.

Outro aspecto que também considero ilustrativo na carta de Maria é o argumento da senhora de que seu marido já havia colocado fora todos os bens que lhe pertencia e que aquela era a última cativa que o casal possuía. A despeito de ter sido Erculano Lopes de Medeiros um perdulário, esse fato sugere outras nuances, como a que a alforria fora escrita em 1856 e que àquela altura- contexto de fim de tráfico, encarecimento de mão-de-obra, epidemias e secas – o casal já não possuía muitos bens, salvo Maria. Se por um lado, temos a possibilidade de aumento das vendas nessas conjunturas de crise podemos (re)pensar, por outro, quais os usos que podiam ser feitos das cartas de liberdade.

Entendo que com a alforria começava a labuta para realizar a liberdade. O que as fontes têm possibilitado ponderar é que pensar a liberdade numa conjuntura onde se vigorava a escravidão e, ao mesmo tempo, se discutia a sua superação é uma tarefa complexa. Certamente, o sonho da liberdade pautou todos os dias as vidas dos cativos em Feira de Santana. Tanto o foi que é possível ver registrado nas cartas o esforço para realizá-lo. Tiveram que, habilmente, negociar, submeter-se e trabalhar incessantemente. Muitos deles deram tudo ou quase tudo que conseguiram numa vida de trabalho em troca da não-escravidão.

207 UEFS - BSRG, FN, n.1538, Coluna da Vida Feirense, Loc. Livro 01, pag. 93, de 31/12/1938, Ano de

Ref. 1885. Ao que parece esse tal Juiz Lustosa não foi sempre afeito à causa da liberdade, sendo juiz em algumas ações de liberdade foi contrário aos libertando. Falarei dessas ações no próximo capítulo.

Portanto, penso que é de fundamental importância para entender o significado da carta de alforria e o caminho percorrido para a vida fora do cativeiro em que medida as circunstâncias e a forma de libertação via carta determinou a experiência de liberdade. Nesse aspecto é fundamental compreender com quais noções de liberdade operavam esses cativos naqueles anos, quais as expectativas que nutriam - ou podiam nutrir. Essa reflexão é o ponto de partida para o próximo capítulo, no qual, aliás, a trajetória de luta pela liberdade vai se deslocando para o campo jurídico, em virtude, principalmente, da interferência do Estado, depois de 1871, na política de alforrias.

Nas páginas seguintes o leitor irá acompanhar a luta por liberdade nos tribunais, convido-o a adentrar e a espreita, por sobre os ombros dos juízes208, arriscar-se ouvir nas múltiplas “vozes” que ecoam das ações cíveis, entre argumentos e contra- argumentos de procuradores, depositários, testemunhas, juízes, os sussurros e os murmúrios dos libertandos, que se misturaram às falas, muitas vezes manipulando-as e influenciando-as – desvelando-se.

208 Nas palavras de Ginzburg, o melhor ângulo para o historiador, ou para aquele que deseja compreender

as performances daqueles que estão do outro lado. Carlo Ginzburg, "O Inquisidor como Antropólogo", in

Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, n. 21 - setembro 90/fevereiro 91 ( pp. 9-