• Nenhum resultado encontrado

O nascimento do asilo e da loucura

1.2 Procedimentos

1.3.1 O nascimento do asilo e da loucura

Foucault (em História da Loucura) mostra como antes do século XIX a loucura não era vista separadamente da vagabundagem, dos doen- tes venéreos, dos devassos – todos formavam uma massa heterogênea de perturbadores e que, ao serem internados, eram excluídos da sociedade no Hospital Geral.

Foi a partir do final do século XVIII e no início do século XIX que a loucura ganhou privilégio e se homogeneizou – ela foi isolada e recebeu o rótulo de doença mental. Como marco desse momento, Foucault cita o acontecimento mítico da liberação das correntes dos presos de Bicêtre, por Pinel, para tornar a loucura, ao mesmo tempo, diferenciada e livre, porém aprisionada pelos muros do grande asilo. Assim, segundo o autor, o asilo inicialmente passou a ter a mesma função dos hospitais no fim do século XVIII: de “permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la”(1979, p. 121).

O hospital no início do século XVIII é mais um local para morrer do que para curar: a função do médico não estava atrelada ao hospital (ali- ás, a medicina enquanto prática científica era individualista – não estava atrelada à instituição), mas a visitas privadas e ao trabalho direto com o doente. “A cura era um jogo entre a natureza, a doença e o médico” (p. 103). O hospital, um morredouro, estava nas mãos dos religiosos e leigos que davam assistência aos pobres e aos que estavam para morrer; um local, portanto, que protegia a saúde da sociedade, excluindo os passíveis de con- taminar outros com doenças, e que servia de transição entre vida e morte. Pois bem, se o hospital não tinha nenhuma relação com a prática médica, como se deu então a medicalização do hospital? Segundo o autor, pela confluência de duas séries distintas:

1) Havia a necessidade de anular a propagação de doenças dentro do hospital para evitar contaminação das cidades – nos hospitais ma- rítimos, por exemplo, preocupava-se com as doenças epidêmicas que as pessoas podiam trazer ao desembarcar. Já a preocupação do

hospital militar girava em torno dos soldados, que passaram a ter maior valor devido à preparação do soldado com o manejo do fuzil (a partir do século XVII), pois não se podia dar ao luxo de treinar os soldados e perdê-los: o preço do exército tornava-se mais custoso! Assim, a reorganização desses dois hospitais se deu através da dis- ciplina, ou seja, uma “nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-los ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade”(Foucault, 1979, 105). E é justamente “a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização”( ibidem, p.107). 2) Por outro lado, concomitante ao processo de disciplinarização do es-

paço hospitalar, descrito acima, houve o processo de transformação do saber médico – disciplinarização do saber médico. Este se deu a partir de um descolamento da atenção do médico da doença/cura do indivíduo (medicina da crise) para as condições do meio e a consti- tuição da doença como um fenômeno natural15 e que sofre influências do meio (medicina do meio). Essa concepção fazia com que o hos- pital possibilitasse o isolamento (em instituição) do doente, pois o meio poderia “atrapalhar” a percepção médica do desenvolvimen- to da doença, visto que a natureza da doença, “suas características essenciais, seu desenvolvimento específico poderiam, enfim, pelo efeito da hospitalização, tornar-se realidade”(ibidem, p.118) Foi a partir dessas duas séries que houve o nascimento do hospital. Os doentes passam a ser distribuídos “em um espaço onde possam ser vigiados e onde seja registrado o que acontece; ao mesmo tempo se mo- dificará o ar que respiram, a temperatura do meio, a água que bebem... de modo que o quadro hospitalar que os disciplina seja um instrumento de modificação com função terapêutica”16 (ibidem, p. 108).

Essa disciplinarização trouxe os seguintes resultados: a) a locali- zação do hospital passou a ser alvo da medicina do espaço urbano – deve se localizar em um local cujo ambiente é propício para o tratamento; e a distribuição interna do mesmo, em termos de condições dos quartos, lei- tos individualizados, etc., também deve ser propícia para o tratamento, de forma a evitar contágios; b) a organização hospitalar passou dos religiosos para o médico, visto que o papel do hospital se deslocou de um morredou- 15 O modelo de doença que permeava a medicina do século XVIII era baseado na botânica, na classi- icação de Lineu. Ou seja, a doença “terá espécies, características observáveis, curso e desenvolvimento como toda a planta” (p. 107).

16 Vale lembrar que a teoria microbiana de Pasteur permitia-lhe postular que o médico era o maior agente de contágio ao passar de leito em leito nas suas visitas aos doentes (FOUCAULT, 1979, p.123).

ro para um local /instrumento de cura. Assim, no final do século XVIII, nasceram, dentro do hospital, o médico e o poder médico; c) a criação de uma forma de registrar os doentes e todos os procedimentos tomados des- de a sua entrada até sua saída, como diagnóstico, remédios, terapêuticas, visitas, etc, constituindo-se, assim, “um campo documental no interior do hospital que não é somente lugar de cura, mas também de registro, acú- mulo e formação de saber”(ibidem, p. 110). Esse procedimento passou a caracterizar o hospital também como “lugar de formação de médicos” (ibidem, p. 111), para uma atuação clínica.

Assim, no final do século XVIII teve-se, através da medicalização do hospital, uma medicina que, em um mesmo gesto, se voltava para o trabalho individual com registros, diagnósticos e prognósticos, constituin- do um saber médico, e se preocupava com a população, ao considerar a doença como um fenômeno natural.