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Nascimento e mutações do “camaleão”

CAPÍTULO 2 O ENCONTRO COM O “CAMALEÃO”

2.2. Outros ditos sobre o “camaleão”

2.2.1 Nascimento e mutações do “camaleão”

Já foi dito anteriormente como epígrafe (Cap. 1, item 1.1), que o boato é uma constante nas relações sociais. DiFonzo1 (2009:10) explica sua prática por duas características

da natureza humana: (1) As pessoas são “entidades sociais e relacionais” e (2) têm “profundo anseio por compreender o mundo.” Juntando estas duas características, resulta o que o autor chama de racionalização compartilhada e o boato é a sua atividade por excelência, isto é, diante de incertezas, buscamos compreender o mundo coletivamente.

1 Nicholas DiFonso é professor de Psicologia do Rochester Institute of Technology. Estuda boato no ambiente de

Kapferer (2003) também afirma que quando não temos uma explicação oficial, lançamos mão de cogitá-la por meio do boato, para satisfazer nossa insegurança. Sinceramente, não consigo fechar tanto o foco de explicação para a ocorrência deste fenômeno. Questiono se realmente sejam estas as únicas razões, ou ainda as mais recorrentes dentre todas elas. Creio, como demonstro no capítulo seguinte, que um boato pode ser fruto de um projeto de dizer que não se embasa somente na falta de explicação. Penso que pode ser um recurso, uma estratégia para outros dizeres, outras Vontades de Verdade, de uma maneira mais indireta ou camuflada. Ora, se percebemos que um boato pode servir para alterar opiniões, para deflagrar preconceitos, para definir o que consumimos, para projetar-nos como sabichões bem “informados”, para refutar ou aproximar pessoas das nossas relações e para ter tantas outras serventias, acho difícil pensar o boato somente a partir do medo e da falta de explicação para as coisas do mundo, apesar de reconhecer que talvez possam ser usuais estas razões. Ainda assim, várias coisas escapam destes motivos. Para mim, o boato é mesmo um “camaleão” que serve de forma escamoteada aos mais variados projetos de dizer (enunciados/textos), fazendo-se presente nas diversas atividades humanas de interação social. Digo escamoteada por ele servir a outro dizer, por trazer um dize r que não está dito, por isso, um recurso, uma estratégia, um argumento, um implícito.

Aliás, retomo em tempo o que disse Jean-Bruno Renard (2007), isto é, que não existe meio social sem boato e que cada grupo social possui seu próprio repertório. Também o que disse Bakhtin (2006b: 261): a) Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem; b) O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados, orais e escritos, concretos e únicos; c) Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo temático e pelo estilo - seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional; d) tema, estilo e forma composicional se ligam “ao todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação; e) cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros discursivos.Ora, se há “meio social”, neste há “atividade humana que usa a linguagem em forma de enunciados relativamente estáveis” (próprio repertório de boatos), boato seria um gênero discursivo? Um gênero que hibridiza outros gêneros? Seria esta mais uma resposta afirmativa a um dos questionamentos iniciais? Continuemos refletindo porque ainda não estou tão certa disso.

Caminhando um pouco mais com os ditos encontrados, Allport e Postman afirmam que os boatos “encolhem” (apud DiFonzo,2009: 6), fato percebido a partir de uma

pesquisa realizada com uma metodologia que lembra a brincadeira do telefone sem fio. Isto equivale dizer que a mensagem vai sendo alterada e reduzida. Talvez seja com base nesta pesquisa que estudiosos da área de comunicação chegam a afirmar que o boato se origina nas primeiras trocas de comunicação entre os indivíduos, que sofre mudanças e que se estabiliza na sexta ou sétima transmissão (Kapferer, 1993: 6). Creio que esta seja uma afirmação matemática demais para o universo discursivo-interativo. Entretanto, vejo lógica quanto ao fato de que os pormenores do boato são poucos, embora, às vezes, de teores exagerados, adaptados ao presente e apresentados de acordo com a realidade das pessoas, isto é, seu modo de ver o mundo. Penso que, quanto mais detalhes existem num boato, maiores são as chances de checarmos cada ponto dito; talvez seja a razão de serem estruturados como narrativa breve. Quanto mais “peças” estiverem disponíveis, mais eficiente será a nossa capacidade de verificação; além do que, um boato sem qualquer efeito atual, não interessa a ninguém.

Corroborando com a afirmação feita pelos dois estudiosos pioneiros, Allport e Postman, Ramon-Cortés (2008)1 diz que as informações da história boatada sofrem pequenas manipulações que lhe dão força. Em sua obra, ele articula, o tempo todo, dois episódios: a instalação, disseminação e erradicação de uma epidemia virótica nas Ilhas Virgens Americanas e os problemas que um amigo enfrenta na sua empresa, na verdade frutos de boatos. Os dois eventos são tratados como vírus e as ações são analógicas. Daí, o que afirma o autor:

Quando começa a circular, o rumor vai mudando. É o mesmo que acontece com alguns vírus, normalmente a mutação implica aumento da virulência, de poder destrutivo. O rumor, que passa de boca em boca, é modificado com a finalidade de ter mais sentido e interesse para os novos destinatários. Detalhes externos são excluídos e outros exagerados para que a mensagem adquira um significado determinado. São pequenas perversões que fazem com que a mensagem chegue a ser mais impactante. E, de rebote, aumente a sua virulência e se torne mais “contagiosa.” (grifo do autor, p. 62)

Vale destacar que quem conhece e pensa no “destinatário” é o próprio enunciador. Esta afirmação de Ramon-Cortés vem ao encontro do que afirmei acima, sobre boato a serviço de um projeto de dizer, isto é, a manipulação ou pequena “perversão” é

1 Licenciou-se (1987) em Ciências Económicas e Emp resariais em ESADE (u ma das 10 melhores escolas de

negócios da Europa). Depois de uma breve experiência no campo do Marketing, escolheu a publicidade como profissão, na qual continua a trabalhar. Nos últimos anos dedicou-se ao estudo da comunicação pessoal. Fonte: http://mhij.pt/autor/ferran-ramon-cortes/

feita pela mudança de estratégia no projeto de dizer do novo enunciador, um novo recurso ou um recurso mais otimizado servindo a uma intenção, a um desejo de dizer e provocar uma reação, uma resposta presumidamente desejada também. Esta ação, no meu entendimento, não visa “dar força ao boato”, mas ao que se quer obter como resposta dada ao que ele está servindo, ao projeto de dizer do locutor.

Cabe aqui uma nova indagação que agora me ocorre: É fácil notar que o boato circula em vários suportes [jornais, revistas, e-mails, rádios, conversas pessoais e vários outros], que atende a vários projetos de dizer [o que significa vários enunciadores, vários destinatários, vários temas]. Ora, estas são questões que determinam a variação dos gêneros discursivos [se muda o suporte e/ou a forma e/ou o tema e/ou o estilo e/ou o auditório e/ou o sentido de acordo com as relações asseguradas pela interação, muda-se o gênero]. Porém, o boato continua “boatando” tranquilamente diante das mudanças. Por dedução poderíamos afirmar que o boato é um gênero mutante? Transversal por corre r em quase todas as raias do discurso? Mas, por outro lado, se todo gênero é “relativamente” estável, sua natureza também instável não o torna “sempre” mutante? Da mesma forma, se os gêneros circulam em diferentes esferas da comunicação humana, ser “transversal” não seria uma característica constitutiva? Difícil ainda sabe r se boato é gênero discursivo.

Julgo relevante observar aqui, que os mais recentes estudos sobre o boato têm uma ligação quase que direta com o mundo do trabalho. Ouso inferir que isto se dá pelo fato de os prejuízos serem diretamente vinculados ao capital monetário. Uma empresa que enfrenta problemas decorrentes de frequentes boatos, seguramente terá queda na qualidade das condições de trabalho (produção). Num mundo em que se pensa sob a ótica capitalista, competitivo, cercado por uma rede de relacionamento inclusive cibernético, há que se preocupar com ameaças como o boato, porque ele se alastra. Vejamos: