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Nascimento – promessas e preâmbulos de vida

Outro eixo temático que podemos extrair do Romanceiro de Dona Beja é o nascimento e em todos os seus significados: o sair do ventre materno; o brotar, germinar da terra; o formar-se, constituir-se. É interessante observar que ao tratar de começos e recomeços, a poeta recorre à forma do soneto. Sua dicção, permeada de “desencanto, inquietação, acabarão forçando os limites dessa moldura inicial [a forma], fazendo a poesia percorrer um itinerário que vai das formas tradicionais ao verso livre, havendo, porém, sempre um retorno ao soneto.”174, que é o berço de sua voz lírica, suas publicações anteriores

ao Romanceiro fazem uso constante dos quatorze versos, sendo que seu livro de estreia é exclusivamente composto por sonetos (XX Sonetos).

Como a fonte que jorra, ambivalente marejados de sono, navegamos – que esse rio de amor e de abandono seja leito comum para quem morre. Impelidos à margem da corrente sacudimos a tarja temporária – e a alma se evapora: tarlatana sobre a nossa nudez contraditória.

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ELIOT, 1981

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Na umidade do riso, no desejo impreciso e profuso, pelo pranto que no calor das órbitas poreja, Ah, transidos de frio, patinamos entre quiosques, domos e coretos sem nada surpreender ou consumar.175

Aquavia é um soneto de rimas brancas que faz parte do episódio Caminho das águas e apresenta-se logo após a volta de Anna Jacintha a sua terra, marcando, assim, o nascimento de um novo tempo, de uma nova vida, o vir ao mundo da cortesã Dona Beja. A água tem como significação simbólica três representações dominantes: fonte de vida, meio de purificação e regeneração. De acordo com Chevalier & Gheerbrant, a água é o símbolo da infinitude dos possíveis, ou seja, ela é o potencial que guarda, em estado latente, todas as possibilidades. “A imersão [na água] é regeneradora, opera um renascimento, por ser ela, ao mesmo tempo, morte e vida. A água apaga a história, pois restabelece o ser num novo estado. A imersão é comparável à deposição do Cristo no Santo Sepulcro: ele ressuscita, depois dessa descida nas entranhas da terra. A água é símbolo da regeneração: a água batismal conduz explicitamente a um novo nascimento”176.

A fonte, símbolo que é vinculado até hoje ao mito de Dona Beja por seus tradicionais banhos, pode ser comparada à água batismal, que a conduz à nova vida. E dessa fonte jorra amor e abandono, e, mais uma vez, a ambivalência rege o poema que se desnuda de forma contraditória. Da “umidade do riso” brota a água do pranto “que no calor das órbitas poreja”, enquanto a voz lírica patina transida de frio. E o rio, que é símbolo de vida, também é leito comum para quem morre.

Continuando pelo itinerário do nascimento, temos a trilogia de sonetos intitulada Progenitura, composta por Concepção, Gestação e Maternidade. Devido à cronologia historiográfica que encadeia os poemas, é pertinente relacioná-los com as gestações de Dona Beja, que foi mãe solteira de duas filhas de pais distintos. Os poemas dessa tríade são carregados de símbolos e imagens, construídos a partir de tensões e ambiguidades. A geração do filho pode ser lida como a geração da palavra, bem como o nascimento na poética de Maria Lúcia é sempre relacionado à morte, porque nascer também é morrer.

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ALVIM, 1979, p. 111

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A solidão a qual a mulher é submetida durante a gestação pode ser sentida nos versos, assim como é solitário o ato da escrita poética. O parir é uma expulsão, um exílio da palavra e desse outro que antes era uno ao corpo. Em Concepção o eu lírico, quase em estado de inanição, se vê parasitado por um novo ser, como “cogumelos prorrompem à deriva” “Sob o limo das pedras, parasitas” que dilata o tempo e o corpo, desvelando os arcanos de um lugar que não esse, sempre um outro, sempre futuro “promessas e preâmbulos de vida”, enquanto tudo é ainda é nebuloso e obscuro, a “placenta de vidro” e a “côncava piscina” que lateja gerando o novo translúcido.

À força de sofrer, engravidamos com certa indolência compassiva; no torpor de esquivanças e vigílias cogumelos prorrompem à deriva a capciosa jiga. Vesperal

que o tempo dilatamos no delito do nebuloso engaste, tíbio arcano em placenta de vidro, volumoso. Sob limo das pedras, parasitas os venenosos dedos compilando promessas e preâmbulos de vida; e pelo desalinho dos estímulos na côncava piscina latejando o ser se concretiza e se adivinha.177

O poema segue tomado de tensões e oposições conflituosas. E, no último verso, “o ser se concretiza e se adivinha”, o outro ser, a segunda voz, a própria palavra. Tanto este quanto os outros dois poemas que integram a trilogia são sonetos sem divisão estrófica e de rimas brancas.

Em Gestação o corpo é o artesão que tece a vida recrudescendo “na morte a carne viva”. A geração moldada da argila é permeada de oscilação, é flor e náusea e o corpo já não pesa, rompe-se, assim como a terra, num “fluxo de aurora” promovendo o nascimento. Todo esse processo de angústias e incertezas ronda os poemas que contam com uma densa adjetivação das palavras, aumentando sua carga de significação, bem como sua multiplicidade de sentidos. Observemos um excerto:

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O corpo é o artesão que mistifica o próprio sentimento de gerar – ao tecer o embrião fibra por fibra recrudesce na morte a carne viva.178

O corpo é o criador do mistério que consegue tecer a vida, fibra por fibra, enquanto aproxima-se da morte. A relação que o eu lírico estabelece entre gestação e morte, que teoricamente seriam substantivos opostos, revela uma profundidade e extrapolação do significado das palavras e ações. Gerar também é morrer, é ter o corpo invadido por outra vida, que ao deixa-lo o transforma em um outro, o novo.

Em Maternidade a marca da solidão e do desterro retomam a questão do exílio e esse entre-lugar pelo qual a voz poética flutua. A gestação também é exílio.

Mas como acalentar os nossos filhos neste exílio do amor? Nessa precária sombra de árvore maldita? No seio de imprecisa flor? Resta-nos calcar o pranto sem ressalva, a doce fraude enquanto a alma foge pela boca.179

O eu lírico se coloca repartido, como um pássaro que canta sem desejos. A geração do filho é um confronto entre o corpo e o imprevisível, que de forma parasitária, como no primeiro soneto da trilogia, abandonará seu lugar de origem e constituição, exigindo, agora no fora, amor de um corpo já desalmado. O confronto dos sentimentos carrega o tom dos poemas, que correspondem a uma das partes mais líricas e densas do romanceiro.

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