• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – CONSTRUÇÕES E RECONFIGURAÇÕES DA CIDADANIA NO PROCESSO SÓCIO-

2.7. C IDADANIA NA “ PÓS MODERNIDADE ” E NOVAS FORMAS DE CIDADANIA

2.7.1. Democracia radical ou pluralismo radical

2.7.1.1 Necessidade da abordagem multicultural da cidadania

Antes de discutir de forma pormenorizada a abordagem multicultural da cidadania, precisamos fazer algumas breves considerações sobre a chamada cidadania cultural.

A preocupação central da chamada cidadania cultural é a manutenção e o desenvolvimento das culturas através da educação, linguagem, costumes e religião, e o reconhecimento positivo da diferença pela forma principal de cultura manifestada (MILLER, 2002). Trata-se de um discurso que surge em resposta às grandes ondas de migração das classes-médias nos últimos cinquenta anos e da mobilidade da força de trabalho. A cidadania cultural problematiza o surgimento de uma indústria cultural que favorece o surgimento de uma nova divisão do trabalho internacional (MILLER, 2002). Essa indústria cultural e essa nova divisão internacional do trabalho favorecem as culturas do Norte sobre as do Sul e o capital sobre o trabalho. O capitalismo se beneficia enormemente deste cenário no aprimoramento do modelo pós-fordista de produção que tem como principal característica a flexibilidade da produção num processo internacionalizado, a globalização dos mercados e a busca global do capital, por locais, condições favoráveis à reprodução do capital e mão-de- obra à custos menores (precarização do trabalho). Essa indústria cultural é difundida em filmes, programas de TV, computadores, esportes etc.

Já a preocupação central da cidadania multicultural, em geral, é conciliar o universalismo dos direitos liberais e de filiação em Estados-Nação com o desafio da diversidade étnica e outras formas que podem ser consideradas “identidades” (JOPPKE, 2002). Na visão multicultural, o conceito de cidadania deve levar em conta as diferenças, na medida em que os direitos de cidadania, originalmente definidas por e para sociedades e culturas específicas (por exemplo: homens, bancos, cultura ocidental etc.), não podem dar resposta às necessidades específicas dos grupos minoritários.

A desconstrução da cidadania liberal, frente a suas dificuldades, discutidas na seção anterior, é um aspecto central do debate acerca da cidadania na chamada pós- modernidade. A crise da cidadania moderna é originada em duas dimensões da cidadania, construídas na modernidade: a crise da cidadania civil e política (Estado-Nação) e a crise na cidadania de coesão social do Estado-Providência (SANTOS, M., 2005; ISIN; TURNER, 2002).

A origem da cidadania liberal, amparada numa filosofia individualista e opressora, na medida em que subordina a subsistência da classe não detentora de meios de produção à venda do trabalho para aqueles detentores dos meios de produção, é paulatinamente reconhecida. A diversificação, ampliação e construção de novas identidades, movimentos sociais e grupos sociais, como o movimento feminista e determinadas circunstâncias como a consolidação e ampliação do sufrágio universal, a exigência por transparência nas administrações públicas, o desemprego em face da categoria trabalhador- cidadão, a atuação da imprensa livre, os processos de sindicalização, os diversos tipos de exclusão e o consequente aumento da marginalização são manifestações que fizeram perceber a fragilidade e a decadência da cidadania liberal frente às promessas da modernidade (SANTOS, M., 2005; ISIN; TURNER, 2002).

Diversas perspectivas ideológicas expõem as contradições da cidadania liberal que, em resumo, podem ser assim apresentadas:

 A excessiva valorização da autonomia individual promovendo uma liberdade dependente do desenvolvimento econômico, o que promove a noção de interesse próprio a uma espécie de lei universal levando à alienação das construções humanas ao submetê-las quase exclusivamente ao poder econômico.

 A excessiva valorização da igualdade civil, que ao se considerar suas constituintes de natureza políticas, jurídicas e cognitivas, ou seja, a igualdade política, igualdade jurídica e a igualdade de condições para a cognição, faz a igualdade civil convergir para a igualdade econômica, que como é sabido abrange uma infinidade de níveis com desigualdades perturbadoras.

 A excessiva valorização de aspectos de consumo na cidadania, concebendo o cidadão mais como um mero consumidor de bens públicos, serviços e direitos voltados para interesses próprios. Neste sentido ser um consumidor de direitos não significa ser crítico, mas ao contrário reflete uma passividade diante da “produção” de direitos. Acerca dessa crítica da “cidadania do consumo”, é interessante a síntese feita por Canclini (1995), na qual o autor faz um contraponto a esta crítica, tentando esboçar aspectos favoráveis da cidadania produzida sob estas circunstâncias.

[fala-se] em um “projeto de comunidade” que se acredita encontrar reação ao descrédito suscitado pelas promessas de mercado de gerar coesão social. [...] se existe algo assim, como um projeto de comunidade, se deposita cada vez menos em

entidades macro sociais como a nação, ou a classe, e se dirige mais a grupos religiosos, conglomerados desportivos, apego a mídia de massas [...]. Uma característica comum entre estas “comunidades” atomizadas é que são nucleadas em torno do consumo simbólico mais do que se relacionam com processos produtivos. [...]. As sociedades civis aparecem cada vez menos como comunidades nacionais, entendidas como unidades territoriais, lingüísticas e políticas. Manifestam-se melhor como comunidades interpretativas de consumidores isto é, conjuntos de pessoas que compartilham gostos e acordos de leitura a respeito de certos bens (gastronômicos, desportivos, musicais) que lhes dão identidades compartilhadas. [...] As críticas apocalípticas ao consumismo seguem indicando que a organização individualista do consumo tende a nos desconectar como cidadãos das condições comuns, da desigualdade e da solidariedade coletiva. Em parte é certo, mas também ocorre a expansão de comunicações entre os consumidores, geram associações de consumidores e lutas sociais, alguns em grupos marginais, menos informados das condições nacionais e internacionais. (CANCLINI, 1995, p. 195-196).

 A desvalorização dos direitos sociais, que passam a ser encarados como deletérios às liberdades previstas nos direitos civis. Faz-se perceber as práticas sociais como sem sentido ou com sentido meramente burocrático (SANTOS, M., 2005). A crescente concessão de direitos individuais via contratos, distancia a noção de destino comum, fragilizando as chances de solidariedade entre os cidadãos. Como exemplo disto, é sabido que frequentemente são empenhadas forças para criticar a qualidade dos serviços públicos para justificar sua extinção ou transferência para a esfera privada.

 A equiparação entre direitos civis e direitos de mercado tem levado à desatenção a direitos humanos envolvidos na fundamentação da vida em sociedade. Essa equiparação também faz reduzir a relevância da participação do cidadão na esfera política e a perda do sentido dessa participação. Levou ainda ao arrefecimento dos debates públicos acerca de questões controversas envolvendo temas éticos. Assim, o conhecimento valorizado pelo mercado é aquele “arrojado” do ponto de vista cognitivo. Conforme já mencionado, o conhecimento científico economicamente estratégico deve ser restrito às elites, logo a relação entre conhecimento e cidadania é prejudicada seja no descrédito de saberes considerados não científicos, seja no controle da difusão do conhecimento científico relevante.

Estas críticas são algumas das apresentadas por Santos, M. (2005), Schuck (2002), Canclini (1995), dentre outros e representam o reconhecimento da crise da cidadania moderna. A partir do reconhecimento dessas contradições faz sentido pensar numa cidadania “pós-moderna” cuja construção se dá no intuito de superar tais contradições.

No entanto, é essencial perceber que todas as correntes de pensamento político tentam dar tratamento à questão da diversidade cultural (VELASCO, 2005), inclusive o liberalismo. Rawls (1993), pensador liberal, reconhece a questão da existência de “discrepâncias irredutíveis” entre os cidadãos de uma mesma sociedade sobre assuntos cruciais como as “concepções de mundo e os códigos culturais”.

Segundo Velasco (2005), esse amplo reconhecimento da questão da diversidade cultural advém dos riscos percebidos pelos pensadores e pelos Estados. Riscos das comunidades culturais cancelarem liberdades de seus indivíduos no seu interior, risco de subjugamento e supressão do desenvolvimento de culturas mais frágeis pelas mais fortes e tradicionais, risco de que a cultura nacional, enquanto fator de união da sociedade mais ampla, seja debilitada e leve a uma desintegração total (VELASCO, 2005).

A ingênua convicção liberal de que uma concepção compartilhada de justiça desenvolve os necessários vínculos de coesão social, leva à necessidade de uma teoria para a cidadania, não apenas uma teoria para a justiça e para a democracia, como tem sido feito, mas

[...] uma identidade cidadã compartilhada que supere as identidades que se rivalizam baseadas na etinicidade. Parece claro, pois, que este é um ponto onde necessitamos de uma teoria da cidadania e não somente uma teoria da democracia ou da justiça. (KYMLICKA; NORMAN, 2000, p. 32-33).

Em particular, vemos esta preocupação por parte das teorias políticas e especialmente dos Estados como uma forma de preservar a existência de uma forma de Estado enquanto tal, assumindo políticas que reconheçam as diversidades. Velasco (2005) tem o seguinte posicionamento:

No mundo atual, o Estado, concebido como entidade política soberana de base territorial e forma organizativa básica, tem sido reiteradamente questionado por processos de integração supranacional e transnacional, por um lado, e por processos de descentralização e fragmantação, por outro, de modo similar, a nação enquanto tipo particular de comunidade política e enquanto modo singular de lealdade tem sido posto em questão pela erupção de formas de identidades novas e

mais complexas, particularmente formas pós-nacionais as multiculturais e poliétnicas. (VELASCO, 2005, p. 195).

Segundo Isin e Turner (2002), os estudos em cidadania começaram como um campo incipiente na década de 1990, nas Ciências Humanas de modo geral e nas Ciências Sociais, tendo como foco principal de estudo “[...] as condições que tornam possível estes novos pedidos de direitos de cidadania e os seus perigos e promessas não somente em contextos ocidentais, mas em todo o mundo” (ISIN; TURNER, 2002, p. 1). As condições definidas como pós-modernidade e globalização e suas manifestações concretas foram as principais propulsoras desses estudos, em particular “reconfiguração de classes, o aparecimento de regimes de governo internacionais novos, novas racionalidades de governo, regimes novos de acumulação de diferentes formas de capital, como também novos movimentos sociais e as lutas para reconhecimentos e redistribuições (ISIN; TURNER, 2002, p. 1)”. Esses autores consideram que a recorrência à ampliação de direitos é um aspecto natural das políticas democráticas desenvolvidas nas últimas décadas, porém consideram um aspecto novo, nas últimas décadas: “as condições econômicas, sociais e culturais que tornam possível a articulação de novos pedidos, o conteúdo e a forma dessas alegações, tal como direitos de cidadania”. Assim, “[...] os três eixos fundamentais, a extensão (normas e regras de inclusão e exclusão), o conteúdo (direitos e responsabilidades) e profundidade (importância para sociedade) da cidadania estão sendo redefinidos e reconfigurados” (ISIN; TURNER, 2002, p.2).

Documentos relacionados