3. Necessidades e primeira crítica da economia política em Marx
3.2. Ser social e gramática das necessidades
3.2.1. Necessidades e relação do ser natural-humano
Os Manuscritos econômico-filosóficos recusam taxativamente a derivação hegeliana da
natureza pela Idéia449. Segundo Marx, o pensador abstrato450 reconhece a natureza como
sensibilidade, mas vê sua exterioridade ao pensar como uma essência defeituosa em-si-mesma,
uma vez que a justeza do seu próprio conceito já a toma por um ser posto pela Idéia e, assim,
como potencialmente superado451.
Se a natureza é uma determinação devinda da Idéia, então o homem também é apenas
consciência-de-si, pois “só o espírito é a verdadeira essência do homem e a verdadeira forma
do espírito é o espírito pensante, o espírito lógico, especulativo”452. Mas, se, diferentemente, a
natureza, pelo contrário, é uma determinação material em-si, independente do pensamento,
então o homem é também um ser efetivo e, primeiramente, natural. Marx o ilustra com mordaz
clareza: um “homem real, corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme, expirando e
inspirando todas as forças da natureza”453. O que refina na conhecida passagem: “A natureza é
o corpo inorgânico do homem |...|. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu
corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida
449 “A natureza mostrou-se como a Idéia na forma do ser-outro” (ECF, II, § 247, p. 26).
450 Quanto à natureza, “abstrato”, para Hegel, é aquele que se mantém na relação natural, não mediada pelo
espírito. Em certo sentido, é também uma posição de Marx, em suas formulações sobre o ser social, especialmente quando sob os efeitos do estranhamento. Mas o talhe materialista do seu pensamento leva-o também, constantemente, a se referir a “abstrato” como o ‘exagero’ daquele que faz elisão da natureza na relação do espírito.
451 Cf. MEFa, p. 128. 452 MEFa, p. 111. 453 MEFa, p. 116.
física e espiritual do homem esteja em conexão com a natureza, não tem outro sentido senão
que a natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da natureza”454.
Na seção dedicada à crítica de Hegel, Marx expõe elementos de sua concepção do
homem e reedita a idéia feuerbachiana que estabelece a incompletude ineliminável de todo ser
natural vivo:
Um ser que não tenha a sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um ser que não seja ele próprio objeto para um terceiro ser não tem nenhuma essência para o seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, o seu ser não é nenhum ser objetivo. Um ser não-objetivo é um não-ser. |...|. Um ser não objetivo é um ser não real, não sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. Ser sensível, isto é, ser real, é ser objeto do sentido, ser objeto sensível, portanto ter objetos sensíveis fora de si, objetos da sua sensibilidade. Ser sensível é ser que sofre455.
A passagem está à altura de um modo materialista historicamente medular para se
pensar a falta, as necessidades, o movimento e suas mediações em termos ontológicos. Não é à
toa que, em Feuerbach, onde se baseia tal formulação, o texto aparece diretamente orientado à
questão das necessidades como fundamento do ser objetivo456. E o seu lastro clássico pode ser
entrevisto na lembrança de que, para o sentido semântico oposto, Aristóteles definiu, entre os
seus significados de “perfeito”, as coisas que “não têm nenhuma de suas partes fora de si no
âmbito do seu gênero” e, assim, “relativamente ao seu bem, não carecem de nada”457.
Baseado no contraste dessa noção negativa de que um ser que não tenha um objeto fora
de si é um não-ser – um ser irreal, imaginário –, Marx assegura-se de que o homem é um ser
sensível objetivo. O que é explicado na imbricadura de que “o homem como ser sensível
objetivo é portanto um ser que sofre e, porque sente o seu sofrimento, um ser apaixonado”. E
454 MEFa, p. 67. 455 MEFa, p. 117.
456 Cf. TPRF, § 43, p. 58-59 – ver citação no capítulo 2, seção 2.1 deste estudo. 457 ARISTÓTELES. Metafísica, 1021b, p. 241 – sem grifos no original.
acrescenta: “A paixão [Leidenschaft, Passion] é a força essencial do homem tendendo
energicamente para o seu objeto”458. Ou seja, o sofrer diz tanto das limitações e
condicionamentos do homem como ser natural, quanto de suas forças vitais essenciais
voltadas não a outra coisa senão aos objetos que, como Marx estabelece, são objetos
essenciais seus, isto é, de caráter decisivo, pois “objetos da sua necessidade |...|, indispensáveis
para o acionamento e confirmação das suas forças essenciais”459.
A propósito, Bertell Ollman observa que, “nos escritos de Marx, a ‘necessidade’ está
ligada sempre à ‘capacidade’, como meio através do qual o homem se apercebe da existência
desta última. No homem, cada capacidade vai acoplada a uma necessidade peculiar vinculada
com os objetos necessários para sua realização, para dar-se a conhecer e facilitar seu
desenvolvimento enquanto tal”460. As necessidades não radicam no homem como um registro
no sentido comum de “passivo”, cindido de sua potencialidade ativa, senão que a compõem
num dueto essencial. Sofrimento, passividade ou padecimento são aqui sinônimos de afetação
sensível material461. Não de inatividade, inação. No resumo de Mészáros: “As necessidades
produzem poderes, tal como os poderes produzem necessidades”. De modo que “sofrimento,
sentimento e paixão constituem, portanto, uma unidade dialética, que é inerentemente
ativa”462.
O descompasso histórico entre essas dimensões é resultado do que Marx denomina
como estranhamento, cujas quatro formas são bem representativas da fratura dessa correlação
458
MEFa, p. 117 – para as duas citações.
459
MEFa, p. 116.
460 OLLMAN, B. Alienación, p. 101.
461 “Na linguagem feuerbachiana de Marx, ‘passivo’ e ‘material’ são sinônimos” (PAPAIOANNOU, K.
Introduction. In: MARX, K.; ENGELS, F. La première critique de l’economie politique, p. 24, nota 1).
462 MÉSZÁROS, I. Marx: a teoria da alienação, p. 163 e 180 – respectivamente, para as duas citações. Também
Márkus e Lefebvre acentuam a imbricação ativa necessidades–capacidades: “A necessidade é, ao mesmo tempo, ato (atividade) e relação, em si mesma complexa, com a natureza, com outros seres humanos, com objetos” (LEFEBVRE, H. Sociologia de Marx, p. 30); “é muito característico da concepção marxiana do homem que não separe taxativamente as necessidades das capacidades, senão que as considere determinações reciprocamente condicionadas do indivíduo concreto ativo” (MÁRKUS, G. Marxismo y “antropología”, p. 22, nota 25).
constitutiva463, onde, quanto mais o operário empenha a sua atividade, tanto menos pode fruir:
miséria do trabalho com miséria das necessidades resta aí como única mutualidade possível –
o que não deixa de ser a confirmação negativa da tese anterior, pois “o operário tem a
infelicidade de ser um capital vivo e portanto necessitado [bedürftiges]”464, obrigando-se a
trabalhar. Mas a desgraça do operário não é de ser lida aqui no seu elemento contingente, isto
é, só como fato político, mas como resultante de uma inequação relativa a uma dura verdade
constitutiva do ser.
O tema do sofrer ou padecer, sobre o qual Marx insiste no texto, está diretamente
ligado à determinação do homem como um ser de necessidades. Mais do que isso: uma das
necessidades mais básicas e simples já constitui, para ele, a condição de afirmação desse ser:
“A fome é a necessidade confessada do meu corpo de um objeto que lhe é exterior,
indispensável à sua integridade e exteriorização da sua essência”465. Esta formulação não tem
um sentido estreito, pobre. Indispensabilidade para a exteriorização de sua essência, mutatis
mutandis, deve entender-se na acepção do que dirá, posteriormente, n’A ideologia alemã, ao
falar de que “os homens devem estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’”466.
É onde as necessidades aparecem como um dos pressupostos materialistas da história, que
sustentam a crítica de Marx ao pensamento filosófico neo-hegeliano, que dispensa a análise
séria das condições materiais da existência467. Sobre a base religiosa do pensar sem
pressupostos, esclareceu Feuerbach: “A ausência absoluta de pressuposição – o começo da
filosofia especulativa – não é outra coisa senão a ausência de pressuposição e de começo do
463 Cf. seção 3.1 deste capítulo. 464 MEFa, p. 75.
465 MEFa, p. 117.
466 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã, p. 39. 467 Cf. Ibidem, p. 39-41.
ser (Wesen) divino, sua aseidade”468. Faz sentido, porque Deus, como entidade perfeita, dá-se
por si próprio e não necessita de nada.
Aplicando-se a idéia de Aristóteles no seu modo inverso: o homem, como ser
imperfeito, é um ser que tem uma parte fora de si no âmbito do seu gênero e, nesta medida, um
ser que necessita sempre de algo relativamente ao seu bem. Traduzindo na linguagem
marxiana, o homem: a) é ser imperfeito porque é um ser histórico e não um deus; b) tem uma
parte fora de si, porque é integrante da natureza, que é seu corpo inorgânico e não habita
internamente à sua consciência-de-si; c) tem esta parte no âmbito do seu gênero porque, como
ser social, é um ser natural-humano – do contrário, não seria um ser genérico; d) necessita
sempre de algo relativo ao seu bem porque precisa afirmar-se sob tais determinações; e) tem
na sua necessidade a sua noção do bem, para onde dirige a sua paixão, a um objeto sensível ou
subjetivo; f) é ser sensível... e sofrer é a sua empatia do mundo exterior.
Mesmo que já se esteja falando do homem e se tenha relacionado as necessidades com
o trabalho, é importante aceitar aqui uma questão incontornável: afinal, no que um
fundamento que parte da natureza é relevante para compreender o homem, se os animais
também são seres incompletos e possuem necessidades? Em favor da diferença específica do
homem, a resposta marxista precisa realmente sair das necessidades e ir até o trabalho criativo,
do qual os animais não são capazes. O trabalho não só satisfaz como recria as necessidades do
homem. É de sua condição emancipada que depende o enriquecimento substantivo dessas
necessidades. E não só a sua multiplicação estranhada, movida e capturada pela lógica
reificadora das mercadorias. De fato, para Marx, o trabalho não faz apenas tudo isso, como
constitui o homem como homem e, com isso, a própria necessidade hominizada. É o trabalho,
portanto, que distingue, por um salto qualitativo sem par na natureza não-racional, o ser social
do ser puramente natural. Esse é, aliás, o grande elogio de Marx a Hegel469, ao mesmo tempo
que o seu afastamento substancial do naturalismo contemplativo de Feuerbach470 que, sem o
trabalho, permanecia como coisa imediata, como uma entificação apenas externa aos
homens471.
Bem, mas a questão permanece, pois, se a resposta é encontrável só no trabalho, então
que valia tem, em tal quadro, falar das necessidades ‘a partir’472 da indistinguível condição de
que os seres naturais são incompletos? Para enfrentar essa questão a contrapelo, isto é, por um
viés não muito convencional, a resposta marxista agora deve ser outra, qual seja, a de que, de
fato, o que importa aí não é mais tanto a diferença, mas sim a semelhança. Por quê? Porque,
469 “A grandeza da Fenomenologia de Hegel e do seu resultado final – da dialética, da negatividade como
princípio motor e gerador – é |...| que Hegel apreende a autogeração do homem como um processo |...|; que ele, portanto, apreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho” (MEFa, p. 112).
470 Talvez não haja melhor descrição da relação de Marx com Hegel e Feuerbach, no que se refere ao trabalho
como atividade humana sensível, do que aquela que ele mesmo escreveu na I tese Ad Feuerbach: “O principal defeito de todo materialismo até aqui (incluído o de Feuerbach) consiste em que o objeto, a realidade, a sensibilidade, só é apreendido sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, como práxis, não subjetivamente. Eis porque ocorreu que o aspecto ativo, em oposição ao materialismo, foi desenvolvido pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois o idealismo, naturalmente, desconhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis – realmente distintos dos objetos do pensamento: mas não apreende a própria atividade humana como atividade objetiva. Por isso, em A essência do cristianismo, considera apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano, enquanto que a práxis só é apreendida e fixada em sua forma fenomênica judaica e suja. Eis porque não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’” (MARX, K. Teses sobre Feuerbach. In: Op. cit, p. 125).
471 É importante sublinhar que os elogios de Marx ao termo “naturalismo” nos Manuscritos são feitos já num
contexto de mediação com o trabalho, o que não significa, porém (cf. infra), que a natureza soçobre como algo aniquilado. O naturalismo na recepção marxiana é já a relação intrínseca entre necessidades e atividade humana, tal como observou David McLellan: “Marx parecia entender a natureza como tudo o que era oposto ao homem, o que lhe proporcionava um campo de atividade e satisfazia as suas necessidades. Eram estas necessidades e atividades que faziam a natureza do homem. Marx chamava sua visão de ‘naturalismo’ porque o homem estava orientado para a natureza e satisfazia suas necessidades na e através da natureza, mas também, mais fundamentalmente, porque o homem era parte da natureza” (McLELLAN, D. Karl Marx, p. 142).
472 ‘A partir’ entre aspas porque no sentido de fazer apreciação de tal referência, isto é, tentar entender que teor e
alcance pode ter em Marx a idéia da natureza como um pressuposto material sobre o qual se desenvolve a atividade humana. Ou, melhor dizendo: recusar o seu veto epistemológico. Trata-se, assim, de um procedimento metodológico para a investigação e exposição temática, e não do contrabando da sugestão sub-reptícia de que Marx estaria querendo explicar a história por via de uma antropogênese primitiva retilínea, coisa que já nos Manuscritos ele rechaça: “Não nos transportaremos – como o economista nacional quando quer explicar – para uma situação originária fictícia. Uma tal situação originária nada explica” (MEFa, p. 61). Marx prefere partir de um fato que lhe é presente: as condições do trabalho estranhado (Cf. Ibidem, p. 62). Não obstante, vale relembrar: a consideração da anterioridade genética da natureza é fundamental para Marx se diferenciar de Hegel recorrendo a uma base empírica, e não mais a uma natureza concebida “como pura negatividade, como algo destituído de qualquer espessura ontológica que, portanto, está destinado a ser suprimido pela esfera do espírito” (DUARTE, R. Marx e a natureza em O capital, p. 40).
em Marx, o ser social não é uma categoria que exclui ou anula o ser natural do homem. Este é,
para ele, aliás, o defeito do idealismo. Não só não o exclui como o requer, pois, sem ser
natural, não há ser social. Para saber disso, basta retomar a reciprocidade marxiana
necessidades–capacidades: sem o trabalho, não há necessidades hominizadas; mas sem elas o
trabalho não tem objeto constitutivo movente473. Enfrentada a questão da pergunta acima, o
anteriormente disposto fará melhor sentido para potencializar a compreensão do estatuto
filosófico das necessidades nos Manuscritos.
Se Marx mesmo faz a distinção entre homem e animal – com o que inclusive ilustra
suas críticas do estado do homem sob o capitalismo474 –, por outro lado, para ele, o homem é,
mas não é apenas ser natural. O homem, para Marx, é ser natural-humano, que sofre as
determinações da natureza porque é ser sensível, mas não se fecha nelas, tal como ocorre com
os animais, porque é ser sensível-ativo – ainda como eles –, mas, além deles, como já
indicado, é ser social-criativo. Ou, na definição central de Marx, é ser genérico: “O homem,
porém, é não apenas ser da natureza, mas ser da natureza humano; isto é, ser que é para si
próprio, por isso ser genérico, como tal ele tem que se confirmar e acionar tanto no seu ser
como no seu saber”475.
Assim, para Marx o ser genérico é ser relacional, em hipótese alguma uma noção
metafísica, cindida da natureza ou pré-posta à história. Antes, para lembrar uma fórmula
lukacsiana, o homem é um ser em processo, um ser que responde. Tanto que Marx não pensa
473
É o que, num sentido dinâmico, mediado pela atividade da consciência, e não por um ditame retilíneo biológico, expressou Lukács: “Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação. O que não desmente o fato de que tal satisfação só possa ter lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que nela atuam, as suas relações recíprocas, etc.” (LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de ciências humanas, v. 4, p. 5).
474 Como, por exemplo, na emblemática passagem na qual afirma que, sob o regime do trabalho estranhado, o
homem se torna animal e o animal se torna humano (Cf. seção 3.1 deste capítulo).
só na relação social entre homens, mas também numa relação dinâmica posta por sua própria
concepção de ser natural-humano, que institui a imbricadura natureza–homem, a partir do que
nenhuma das duas ‘partes’ permanece isolada, mas como movimento dinâmico: “Portanto,
nem os objetos humanos tal como imediatamente se oferecem são objetos da natureza, nem o
sentido humano, tal como imediatamente é, objetivamente é, é sensibilidade humana,
objetividade humana; nem a natureza – objetivamente – nem a natureza subjetivamente está
imediatamente dada, de um modo adequado, ao ser humano”476. Com efeito, Marx critica
Hegel por fazer a consciência abstrair ou suprassumir a natureza a tal ponto que “o saber é o
seu único ato”477. Contra isso, estabelece que “não só no pensar, mas com todos os sentidos se
afirma portanto |o| homem no mundo objetivo”478. Sentidos esses que são históricos, ao
mesmo tempo em que “a história é a verdadeira história natural do homem”479. Na síntese de
Schmidt: “A história natural e a história humana constituem para Marx uma unidade na
diversidade. Com isso, não resolve a história humana na pura história natural, nem a história
natural na história humana”, uma vez que nesta “se prolongam os fatos característicos da
história pré-humana”480.
Se o conceito de ser natural-humano já sugere, por si, que não é apenas ser natural,
igualmente indica não ser só ente humano puro. Esse sentido conexo – desde o homem, que é
posterior à natureza – é o que explica a controversa passagem onde Marx afirma: “Mas
também a natureza, tomada abstratamente, para si, fixada na separação do homem, é para o
476 MEFa, p. 118. 477 MEFa, p. 119.
478 MEFa, p. 98. Para um detalhamento das capacidades e sentidos que caracterizam e potencializam o ser
genérico, como ver, ouvir, sentir, pensar, etc., ver a seção “9. El hombre genérico”, de OLLMAN, Op. cit., p. 109-111.
479 MEFa, p. 118.
homem nada”481. De fato, numa cisão irreflexa, idealística ou estranhada, ela é (representa)
para ele nada. Embora disso não siga que ela em si, antes dele, é nada. Ou, o que é o mesmo:
de que a natureza existe só porque o homem a reconhece. Destarte, a afirmação de Marx
implica que, para o homem, ela só pode fazer sentido como relação mediada no plano real da
vida, o que pressupõe a existência material da natureza e não exclui a sua anterioridade ao
homem.
No parágrafo seguinte, Marx reprisa a tese como crítica às mediações ‘positivistas’482
que o pensamento abstrato estabelece para determinar a ‘figura’ da natureza: “a natureza
apenas lhe repete numa forma sensível, exterior, as abstrações lógicas”, para quem ela
“separada, diferenciada destas abstrações é nada, um nada asseverando-se como nada, é
desprovida de sentido ou tem apenas o sentido de uma exterioridade que tem que ser
superada”483. Ou seja, a natureza não deve a sua existência às operações e ao reconhecimento
do espírito humano. Assim, se, na primeira referência à tese, a afirmação de Marx tem um
sentido epistemológico, apenas mediatamente ontológico, nesta segunda adquire um sentido
diretamente ontológico, pois se trata de uma crítica justamente à posição teórica que se efetiva
num homem que faz elisão à natureza, que Marx qualifica apropriadamente de “si-mesmo
abstraído” ou “egoísta abstrato”484.
481 MEFa, p. 126.
482 Alusão ao que Marx chama de “positivismo incrítico” (MEFa, p. 111), o que não tem a ver com o positivismo
tal como conhecido desde Auguste Comte. Mas sim com o fato de que o idealismo pensa o mundo como uma posição (exteriorização) do espírito, critica o resultado disso como estranhamento a ser suprassumido de volta no espírito, mas não é crítico daquilo donde parte tal estranhamento, ou seja, da sua própria operação espiritual especulativa.
483 MEFa, p. 127 – para as duas citações. 484 Cf. MEFa, p. 114.
Ao falar do homem natural, Marx, evidentemente, fala mais do homem do que do
animal, visto que aquele gera a sociedade como ‘segunda natureza’485, que pode manter um
tanto ‘latente’ o elemento da naturalidade. Mas nunca o suprime por completo. Marx se refere
à sociedade como ressurreição, e não como final da natureza486. Em tal ‘sobrevivência’, o
decisivo é que o estatuto residualmente natural das necessidades alcança a figura histórica
do homem, independente de que nele tais necessidades se refinem e multipliquem
infinitamente. Por mais evoluído que seja o processo social, do homem “a natureza é o seu