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Negociações coletivas transnacionais

No documento Direito reflexivo do trabalho (páginas 98-102)

4 MANIFESTAÇÕES DO DIREITO REFLEXIVO DO TRABALHO

4.1 Modelos bilaterais de direito reflexivo do trabalho

4.1.2 Negociações coletivas transnacionais

Indo para além das formas tradicionais de pactuação entre as próprias partes sobre os rumos da relação de trabalho, são possíveis de serem identificadas negociações coletivas transnacionais, para as quais os limites territoriais dos Estados- nações não constituem barreira ao exercício função do direito. Na literatura sobre o assunto, é possível destacar dois instrumentos consagradores do direito reflexivo do trabalho em sua forma bilateral de composição: (1) Acordos de Empresa Transnacionais (Transnational Company Agreements – TCAs); e (2) Acordos-Quadro Internacionais (International Framework Agreements – IFAs).

A grande característica que pode ser identificada no caso dos TCAs é a negociação envolver, por um lado, multinacionais, e certas entidades de representação de trabalhadores europeus, por outro (PAPADAKIS, 2010, p. 1). Especificando, este autor descreve estas entidades como aquelas integradas por federações (europeias ou internacionais) que representam sindicatos propriamente europeus e/ou Conselhos de Trabalhadores Europeus (European Works Councils – EWCs)44 (2010, p. 1). Assim, embora haja o reconhecimento e a prática de que estes acordos ultrapassem limites territoriais do Estado-nação, os TCAs só se compõem por partes que não ultrapassam a União Europeia ou o Espaço Econômico Europeu.

Enquanto se pode trabalhar com TCAs considerando restritamente atores europeus, os IFAs possuem uma maior abertura aos seus participantes. Para isso, a descrição destes instrumentos de diálogo social, a partir dos quais constroem-se programas jurídicos de responsabilidade social, identifica que a participação dos atores se desenvolve já em um nível global (COMISSÃO EUROPEIA, 2012, p. 2). Diante destas características, considerar que TCAs são uma espécie de IFAs, como defendido por Papadakis, pode ser possível (2010, p. 3). Frente disso, pelo menos quanto aos atores que podem participar da construção do programa jurídico, que se manifesta neste momento a partir de negociações coletivas transnacionais, acredita- se que esta descrição já se demonstra minimamente útil para o trato de como esta manifestação jurídica pode importar para o direito reflexivo.

Interessante, então, é notar as finalidades e o conteúdo destes TCAs e IFAs. Neste ponto, é bastante válida a observação de que standards da OIT ganham uma certa relevância ao serem incorporados por tais acordos, especialmente os que se referem à liberdade de associação e de negociação coletiva (PAPADAKIS, 2010, p. 3). Neste caso, estariam representadas pelas Convenções 87 e 98 daquele organismo. Além disso, questões envolvendo a própria reestruturação da empresa45, saúde e segurança do trabalho, administração de recursos humanos, proteção de dados,

44 Os EWCs são entidades de representação de trabalhadores estabelecidas em empresas que possuem, pelo menos, 1.000 empregados nos países da União Europeia ou nos países que façam parte do chamado Espaço Econômico Europeu (European Economic Area - EEA), segundo a conceituação da Comissão Europeia (2019, online), que é o órgão que produz as diretrizes sobre como estas entidades se compõem e funcionam.

45 Reestruturação no sentido societário, envolvendo fusões, aquisições, etc., e, até mesmo, no sentido da mudança na localização de estabelecimentos.

subcontratação, não discriminação e formação dos trabalhadores também são pontos que podem ser estabelecidos no programa jurídico destas negociações transnacionais (PAPADAKIS, 2010, p. 3).

Observações semelhantes às de Papadakis também foram feitas pela Comissão Europeia, especialmente no trato de 88 acordos coletivos no âmbito europeu. Segundo a observação que pôde fazer, as principais questões abordadas tratavam de saúde e segurança do trabalho, não discriminação, proteção de dados, reestruturação da empresa, organização do trabalho, treinamento, mobilidade e princípios de política de recursos humanos e responsabilidade social corporativa (2008, p. 5). Contudo, ao se perguntar sobre horas de trabalho e remuneração, a comissão apresenta o resultado de que estes temas aparecem apenas incidentalmente, porque acabam sendo mais tratados nas negociações coletivas de âmbito propriamente nacional (2008, p. 6), que são as negociações tradicionais apresentadas anteriormente.

A Comissão Europeia, ao tratar também do conteúdo negociado em tais acordos, destaca que as soluções são sempre tomadas de forma voluntária, inovadora e socialmente aceita (2012, p. 2). Levar em consideração estas características é fundamental para o tema do direito reflexivo do trabalho, porque demonstra a relevância da autorregulação, indo de encontro ao direito material e substancial do Estado como principal regulador da relação de trabalho.

Considerando que as primeiras iniciativas de TCAs se deram em 2000, em 2012 já havia um número de 224 acordos catalogados envolvendo 144 empresas multinacionais, sendo a maioria com sede na Europa e cobrindo em torno de 10 milhões de empregados (COMISSÃO EUROPEIA, 2012, p. 2). Um grande momento no qual tais acordos se tornaram uma saída de resposta jurídica às irritações sociais foi o contexto da crise de 2008. A tomada de decisão das empresas como organizações sociais sobre a própria organização produtiva pôde ter os TCAs como importantes instrumentos de diálogo social e de estabilização de expectativas normativas que tinha esta crise como contexto de irritação sistêmica. Neste ponto, respostas à crise no sentido de ainda proteger o emprego podem ser identificadas nos diversos exemplos que Papadakis colaciona na pesquisa que desenvolveu (cf. 2010, p. 5).

Diversos ramos da indústria se fizeram valer de TACs para se reestruturarem. Foi o caso da Rhodia, empresa francesa da indústria da química, que firmou acordo com a Federação Internacional de Sindicato dos Trabalhadores Químicos, de Energia e Minas (International Federation of Chemical, Energy, Mine

and General Workers’ Union – ICEM), cujos elementos-chave foram a adoção de

direitos sociais fundamentais (Convenções da OIT e o Pacto Global da ONU) dentro da cadeia de produção globalmente situada, o uso sistemático do diálogo social e a articulação de mecanismos de saúde e segurança ocupacionais, como auditorias conjuntas (PAPADAKIS, 2010, p. 5). Observe-se que não há imposição de se formular o programa jurídico que orientará as expectativas normativas dentro da relação de trabalho, conforme a utilização de instrumentos como TACs e IFAs. A voluntariedade se apresenta como condição para se falar em autorregulação aqui. Somado a isso, o fato de muitas delas fazerem referência a standards promovidos por diversos outros atores sociais, como foi o caso dos da OIT e da ONU acima, constitui uma evidência de que a autorregulação regulada do direito reflexivo do trabalho aqui se manifesta.

Entrando nos detalhes do caso da ArcelorMittal, empresa do setor da metalurgia, pode-se indicar o acordo que fizeram com a Federação Europeia dos Metalúrgicos (European Metalworkers’ Federation – EMF) em 2009. Sediada em Luxemburgo e bastante afetada pela crise, chegou a paralisar temporariamente metade de toda a sua produção, em que tomou medidas que afetavam questões relacionadas ao emprego (PAPADAKIS, 2010, p. 6). A empresa não chegou a realizar demissão compulsória ou fechar completamente, mas, contra até as expectativas dos sindicatos, procurou manter a força de trabalho para garantir a produção após a crise e realizou um pioneiro acordo com a EMF (PAPADAKIS, 2010, p. 6). Por ser uma das maiores empresas do mundo em seu setor industrial, este acordo dizia respeito ao trabalho de 115.000 empregados na Europa (VOLKER, 2009, online).

Através deste acordo, comprometeu-se a ArcelorMittal com seguinte:

Fazer uso de contratos de trabalho de curto período; promover treinamento para aqueles que fossem afetados pela crise; evitar demissão compulsória; na ocasião de demissões inevitáveis, entrar no processo de planejamento social para estes trabalhadores demitidos; não fechar completamente estabelecimentos, mas apenas realizar paralisações temporárias; participar de um Grupo de Diálogo Social, sendo ele composto por 12 representantes de sindicatos (liderados pela EMF) e 12 representantes da administração com a tarefa de monitorar a implementação do acordo e prever reestruturação e

mudanças industriais num futuro próximo (PAPADAKIS, 2010, p. 6-7, tradução nossa)46.

Já seria possível identificar alguns resultados das tentativas de restruturação em razão da crise. E dentre estes resultados está a negociação com a EMF. Pelo menos em 2010, após a manifestação da própria ArcelorMittal e do Secretário-Geral Adjunto da EMF, foi apresentado que não houve fechamento de fábricas ou demissões compulsórias; que já havia uma maior reabertura das fábricas em toda a Europa a para além dela; e que já houve uma recuperação de 75% da capacidade de produção na Europa e 80% no resto mundo (PAPADAKIS, 2010, p. 7). Diante deste quadro, pode-se apontar para uma manifestação que depende da produção de acordo das próprias partes envolvidas na relação de trabalho, mesmo que algumas delas se façam presentes por entidades de representação coletiva, como sindicatos e federações. Aqui, a possibilidade de o direito reflexivo do trabalho se realiza como uma tentativa de se manter expectativas normativas com a participação de um programa jurídico que parte da autorregulação. Além disso, exerce sua função porque permite maiores chances de adequação social a partir das irritações que sofre oriunda da complexidade social que o circunda.

No documento Direito reflexivo do trabalho (páginas 98-102)