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Negro fora da negritude em Sagrada Esperança: uma nova possibilidade?

2. CAPÍTULO 2 NEGRO E NEGRITUDE NA SAGRADA ESPERANÇA DE AGOSTINHO NETO

2.3. Negro fora da negritude em Sagrada Esperança: uma nova possibilidade?

Asserta Tzvetan Todorov: «não existe ciência inteiramente feita, a ciência vive superando os erros, e não estabelecendo verdades»193. Essas palavras mostram que as mudanças são próprias da produção e inovação cientificas. Nenhum caminho evolutivo é estanque. Mesmo quando um tema parece esgotado, ainda assim, há novos caminhos e perspetivas a se explorar. É por isso que Carlos Ceia diz:

Tudo aquilo que já está dito sobre um dado texto literário tem que estar permanentemente sob revisão. A crítica de um texto não se constrói de uma só vez: ela é o resultado do que se escreveu a um tempo, mais tudo aquilo que deixar suspenso194.

Quando analisamos a negritude na Sagrada Esperança, uma das questões que emerge é que a consideração de que toda coletânea é cem por cento negritudinista é falsa. Não devemos confundir a parte com o todo nem o todo com a parte. É interessante notar que dos cinquenta e um poemas que compõem a Sagrada Esperança, Pires Laranjeira, no manual

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, apenas identifica dezasseis poemas como

sendo inequivocamente negritudinistas195. Este facto mostra que o trabalho de colocação do negro fora da negritude não é uma construção sem base. Pois os 16 poemas sistematizados como sendo negritudinistas não são os únicos que abordam o negro. É verdade que vários poemas desta coletânea não tratam diretamente de assuntos sobre o sujeito negro, como “Para enfeitar os teus cabelos” e “Dois anos de distância”. Todavia, Pires Laranjeira esclarece que o trabalho de identificar poemas com marcas negritudinistas não é simples e que muitos daqueles textos deixam campo aberto para exploração. Depois de enumerar os

192 René Wellek e Austin Warren, Teoria da Literatura, p. 113. 193 Tzvetan Todorov, Teoria da Literatura, p. 32.

194 Carlos Ceia, A Literatura Ensina-se? Estudos de Teoria Literária. Lisboa, Edições Colibri, 1999, p. 96. 195 Cf. Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, p. 96.

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dezasseis poemas da Sagrada Esperança claramente negritudinistas Pires Laranjeira escreveu o seguinte:

Existem ainda outros poemas percutidos pelo movimento da negritude, datados dos anos fulcrais do inicio da divulgação da negritude francófona em Portugal, e, por isso menos inequívocos: “Velho negro” (1948), “Para além da poesia” (publicado em 4-3-1950), “Noite” (s/d), “Sombras” (cerca de 1948), “Confiança” (1949) e “Voz de sangue” (1948)196.

Ora, ao dizer que os poemas escalonados acima eram menos inequívocos, o ensaísta indica que por mais que os mesmos possam ser confundidos com a poesia negritudinista, quando analisados a fundo, a base dos temas e reivindicações basilares deste movimento mostram-se ocos, sem substância “pura” do orgulho negro, em comparação com os dezasseis poemas antes citados. Certamente, este tratamento suporta-se a partir daquilo que de forma específica os poemas mobilizam. Sabe-se que o sentido do «texto adquire plenitude em função do ambiente linguístico [ou conjuntura] em que os termos se inserem»197. E entende- se que o ambiente aqui expresso tem a ver com o contexto e a identidade da mensagem em relação ao movimento que o mesmo pertence. Este pensamento justifica-se na medida em que o poema é o que é porque foi feito como foi feito».198 Em suma, um poema não pode oferecer algo que o mesmo não esboça, nem pode aceitar uma identidade com base em pressupostos pessoais do investigador. Estas abordagens podem causar surpresa, admitimos. Contudo, essa estranheza acaba quando refletimos nas palavras de Eduardo dos Santos: «a negritude passou da afirmação de uma cultura negra a um programa político-social».199 Portanto, é natural que os temas da poética negra variassem, que se inclinassem a diversas vertentes da sua realidade, quer a pretérita quer a presente naquele contexto. Por mais que a pessoa do negro fosse o epicentro de enunciação, todavia, o poeta que se filiasse a negritude não lhe escapava a natureza existencial do homem e a extensão sem fronteiras do produto literário. É por isso que nesta dissertação preferimos trabalhar poema por poema. Porque o paradigma negritudinista possui foco próprio, assuntos precisos e uma forma peculiar de transformar as palavras em sementes de proteção e revalorização dos negros. Um discurso que é mais claro nalguns poemas do que noutros. Por este facto, os poemas “Velho negro” (1948), “Para além da poesia” (publicado em 4-3-1950), “Noite” (s/d), “Sombras” (cerca de 1948), “Confiança” (1949) e “Voz de sangue” (1948), levantam dúvidas a Pires Laranjeira como que em dúvida de pertença à negritude, porquanto o negro neles presente não tem a mesma força de expressão como os encontrados em “Aspiração” (1948), “Saudação” (1950), e “Consciencialização” (1951), cuja atitude de pertença, de congregação e de autoafirmação são inequívocos a todos os níveis.

196 Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, p. 96 197 Domício Proença Filho, A Linguagem Literária, p. 12. Acrescento nosso. 198 Idem, Ibidem.

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Ora, o negro da negritude será o objeto de diferenciação primária. Porém, é importante deixar claro que não é só a pessoa em si, mas como o negro presente na poesia da negritude é enunciado que vamos analisar. E como já espelhamos acima, o exercício de identificação das marcas negritudinistas nos poemas netianos não é dado fácil. Sem se darem conta, alguns pesquisadores das literaturas africanas, abordando a poesia de Neto que evoca o negro, mencionam alguns poemas e deixam outros de fora que também poetam o negro e as suas vicissitudes. Logo, há portas para investigação deixadas abertas, o que nos leva a questionar: onde devem ser inseridos os outros poemas?

Neste preâmbulo distingue-se o que é negritudinista do que não é para que a nossa dissertação ganhe base de construção. Torna-se oportuno perguntar: se os poemas “Velho negro” (1948), “Para além da poesia” (publicado em 4-3-1950), “Noite” (s/d), “Sombras” (cerca de 1948), “Confiança” (1949) e “Voz de sangue” (1948) falam sobre o negro, porque não são inequivocamente negritudinistas? Que substância eles suportam ou não suportam que os exclui da negritude? Se dois poemas netianos poetam o negro, contudo, são remetidos para posições distintas não é razoável concluir que nem todo poema que anuncia o negro seja necessariamente negritudinista? E que a tarefa de separar o negro da negritude além de possível é um tema antigo?

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