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NEOCOLONIALISMO CULTURAL: O LIVRO DIDÁTICO NO

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO DO SUL (páginas 82-200)

EDUBUSINESS

Nesse capítulo, buscamos apresentar alguns aspectos que situam o cenário onde nossa

pesquisa se desenvolve. Ao recorrer à história do PNLD, visamos expandir nossa compreensão

sobre o longo processo percorrido até sua consolidação e expansão, bem como sobre as

articulações econômico-político-discursivas que constroem as condições para a emergência do

programa como um atrativo às empresas do ramo editorial, de modo especial ao mercado

estrangeiro, que passa a dominar a produção de livros didáticos no Brasil, da mesma forma que

em outros países da América Latina.

4.1 PNLD: BRILHA O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO PARA O CAPITAL

ESTRANGEIRO

O mercado editorial brasileiro nas últimas décadas tem se configurado como um

investimento extremamente lucrativo, sendo o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)

a “galinha dos ovos de ouro” para os investidores, razão pela qual atraiu uma gama de empresas

de capital estrangeiro para o país. Desta forma, embora não desejemos fazer aqui uma

arqueologia sobre o PNLD, entendemos ser necessário tecer um panorama geral do programa

para que possamos, a partir daí, estabelecer algumas considerações, deixando as análises mais

pontuais para cada um dos artigos que compõem esta tese.

Informações constantes do site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

(FNDE) dão conta de que o PNLD tem início em 1985, período da redemocratização do Brasil,

após 21 anos de governo militar. No entanto, programas de distribuição de livros didáticos pelo

Governo federal são bem anteriores ao PNLD, mas nem de longe possuíam tamanha dimensão.

Para se ter uma ideia, desde 1929, com a criação do Instituto Nacional do Livro (INL),

o Estado busca o controle da produção e circulação do livro didático no Brasil, intenção

concretizada legalmente com o decreto-lei nº 1.006, de 30 de dezembro de 1938, que institui a

Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) e regulamenta a primeira política oficial sobre

esse material. Certamente, o governo do presidente Getúlio Vargas, oito anos à frente do país

que ainda governaria até 1945, não permitiria que a educação dos jovens brasileiros fosse

conduzida sem o controle do governo, constituindo oficialmente formas de vigilância e

regulação que normatizariam a produção do livro didático até os dias atuais.

Como exemplo das regulações impostas pelo Estado sobre a produção do livro didático,

destacamos alguns itens do decreto-lei nº 8.460, de 26 de dezembro de 1945, que estabelece

regras gerais para produção ou importação de livros didáticos, evidenciando a restrição às

escolas primárias e secundárias de todo o território nacional na escolha de livros que não tenham

sido aprovados previamente pela CNLD.

Em seu art. 3º, parágrafo único, o citado decreto alerta inclusive às escolas de ensino

superior para que, ainda que isentas da aprovação do conselho para a escolha dos livros

utilizados, “(...) é dever dos professores orientar os alunos, a fim de que escolham as boas obras

e não se utilizem das que lhes possam ser perniciosas à formação da cultura”.

Assim, a produção e a distribuição do livro didático vão se constituindo por meio de

uma aleturgia que assegura sua condição de existência como técnica e mecanismo de poder,

implicando uma “vigilância perpétua e constante dos indivíduos, uma vez que em um sistema

disciplinar “não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme a regra. E preciso

vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares.”

(FOUCAULT, 2012, p. 62).

De um olhar rápido em editais mais recentes do PNLD, já se pode encontrar muitas

similaridades com o decreto citado, que em seu art. 24 determina: “Os livros didáticos, cujo uso

tenha sido autorizado na forma desta lei, deverão conter na capa, impresso diretamente ou por

meio de etiqueta, os seguintes dizeres: ‘Livro de uso autorizado pelo Ministério da Educação e

Saúde (...)”.

Posteriormente, esse controle passaria por modificações, como a indicação na capa dos

livros em: “não recomendados”, “recomendados com ressalvas” e “recomendados”, em vigor

no PNLD de 1997. Para o PNLD de 1998, a classificação passaria por novos ajustes, excluindo

a categoria dos “não recomendados” e incluindo os “recomendados com distinção”,

acrescentando ainda um símbolo gráfico denominado “estrela”. Assim os livros passam a ser

classificados pelo número de estrelas que recebiam na avaliação: 3 estrelas (***) =

recomendados com distinção; 2 estrelas (**) = recomendados; 1 estrela (*) = recomendados

com ressalva. Esta forma de normatização, entre outras, dá-se em meio a um ambiente de

conflitos, próprio das relações de poder, mobilizando embates entre o MEC, autores de livros

didáticos e suas instituições representativas, assunto que será retomado mais adiante nos artigos

que complementam esta pesquisa.

Após acordo entre o MEC e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento

Internacional (USAID), em 1966 é instituída a Comissão do Livro Técnico e Livro Didático

(Colted), garantindo ao governo brasileiro recursos na ordem de 51 milhões destinados a

fomentação das políticas voltadas para o livro didático. Embora surjam diferentes comissões ao

longo do tempo, seus objetivos principais – coordenação das ações de produção, edição e

distribuição do livro didático no país – são mantidos e/ou ampliados.

É possível perceber, já nesse momento, o quão extensas são as relações que tensionam

a rede de produção do livro didático, visto que investimentos internos e externos dão o tom das

políticas que controlam a fabricação de um “produto”, que, com o passar dos anos, torna-se

cada vez mais comercial. Tais tensionamentos podem ser observados por meio da portaria nº

35, de 1970, por meio da qual o MEC dá início ao processo de coedição de livros didáticos

juntamente com as editoras nacionais, utilizando-se de recursos do INL. Após o término do

acordo MEC–Usaid, torna-se necessária uma contrapartida dos Governos estaduais para o

Fundo do Livro Didático, visando à garantia da continuidade do programa de distribuição de

livros às escolas.

Embora nesse momento a insuficiência de recursos (diante da pequena contrapartida dos

Estados) deixasse de fora do programa grande parcela das escolas municipais, com a

complementação da verba a partir dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação (FNDE), o Governo federal assume a compra de grande parte dos livros produzidos

pelas editoras para serem distribuídos às escolas de educação fundamental, num movimento

que mais tarde se constituiria num dos maiores programas de aquisição e distribuição de livros

didáticos do mundo. Tal movimento fazia incidir sobre o Brasil o olhar de grandes empresas do

ramo editorial e fundos de investimentos, conforme explicita Iezzi:

(...) um sacerdote espanhol Marista, quando ele tomou conhecimento da quantidade de livros que eram vendidos de uma tacada só pela FTD ao governo, ele achou que era o Eldourado que ele estava descobrindo, certo? Então, ele passou dar um maior apoio a sua editora. Bom, aí vem uma Santiliana, compra a editora Moderna, vem uma Abril Cultural, que não é a Abril Cultural, é o Fundo Tarpon de Investimentos, compra Ática, Scipione, Saraiva, Sistema Anglo de Ensino que no fundo é uma editora, e outras coisas mais. Então, aí nós estamos tendo uma cartelização [da produção] de livros didáticos. (entrevista concedida por Iezzi em 2017).

Em 1983, a antiga Fundação Nacional do Material Escolar (Fename) dá lugar à

Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), que incorpora o Programa do Livro Didático para

o Ensino Fundamental (Plidef), criado em 1971, e propõe a participação dos professores na

escolha dos livros didáticos. Dois anos depois, o Decreto nº 91.542, de 19 de agosto de 1985,

“extingue” o Plidef e institui em seu lugar o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

De acordo com Hofling (1993), não se tratou verdadeiramente da extinção de um

programa, da mesma forma que o PNLD também não se configura um programa “novo”, visto

que sua organização não teria sido gestada inteiramente no novo governo, sendo apenas mais

um programa que, como tantos outros produzidos pela máquina administrativa do Estado

brasileiro, segue uma lógica de tentar omitir as obras de governos anteriores em detrimento de

sua própria produção, principalmente neste caso, em que os programas de produção e

distribuição do livro didático brasileiro estavam vinculados a um governo militar ditatorial.

Ainda segundo a autora citada, o lançamento do PNLD busca o apagamento dos

programas que o antecederam, visto que o decreto de sua implantação não cita sequer o Plidef,

incorporado pela FAE em 1983, e seus relatórios anuais posteriores também não fazem qualquer

referência a este programa (HOFLING, 1993).

Ao considerar as prescrições legais que anteveriam o PNLD como um marco na

produção e distribuição gratuita de livros didáticos no país e alterariam todo o mercado editorial

brasileiro, Cassiano (2013) chama atenção para dois documentos: a proposta “Educação para

Todos: caminho para a mudança”, de 31 de maio de 1985, e o “Plano Decenal de Educação”,

proposto melo MEC em 1993, este último resultado de compromisso firmado pelo governo

brasileiro em Jomtien –Tailândia, no ano de 1990, na Conferência Mundial sobre Educação

para Todos, cujos alguns pontos serão elencados a seguir.

4.2 PRECARIEDADE E ASSISTENCIALISMO: O DISCURSO PRODUZINDO O OBJETO

Numa sociedade como a nossa – mas, afinal de contas, em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam, constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somo submetidos pelo poder à produção da verdade, e só podemos exercer o poder mediante a produção da verdade (FOUCAULT, 2016, p. 22).

Embora não seja possível encontrar o lugar do poder, até porque ele se dá em

movimento, pode-se ao menos captar suas vibrações, sentir as tensões provocadas por suas

linhas de força. Dito de outro modo, da mesma forma que não se pode ver uma carga elétrica,

mas sabe-se que sua presença (re)configura o campo a sua volta, o poder deixa marcas,

(re)estrutura o ambiente, objetiva, cria e se cria por meio do verdadeiro produzido

discursivamente, afinal, conforme assevera Foucault (2003, p. 10),

[e]m nossas sociedades, a "economia política" da verdade tem cinco características historicamente importantes: a "verdade" é centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo

social é relativamente grande, não obstante algumas limitações rigorosas); é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade, exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas "ideológicas").

Nessa perspectiva, ao entendermos a verdade como “(...) um conjunto de procedimentos

regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados.”

(FOUCAULT, 2003, p. 14), podemos inferir que os documentos citados compõem, em conjunto

com outros, um discurso sobre o verdadeiro que cria condições de possibilidades para o

surgimento/fortalecimento do PNLD.

Consideremos, por exemplo, o Plano Nacional de Educação (PNE) de 1985. Emergindo

em um ambiente político de redemocratização do país, tendo José Sarney como presidente da

denominada “Nova República” e Marco Maciel como ministro da Educação, o documento

apresenta em sua primeira página:

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Em cumprimento à determinação de Vossa Excelência, trago a sua presença a proposta Educação para Todos - Caminho para Mudança, tendo como objetivo possibilitar a universalização dessa modalidade de ensino, assegurados satisfatórios padrões de qualidade. Inspirada em diretriz contida no documento Compromisso com a Nação, a proposta Educação para Todos - Caminho para Mudança contempla, em sua fase inicial, uma série de medidas relacionadas com a implantação de programas de aperfeiçoamento e valorização do corpo docente, distribuição de livro didático e material escolar, fornecimento de merenda e, ainda, expansão e recuperação das unidades escolares. Nestas condições, tenho a honra de submeter a referida proposta à aprovação de Vossa Excelência.

Reitero a Vossa Excelência os protestos do meu mais profundo respeito. Marco

Maciel (BRASIL, 1985, p. 1).

Veja-se que, ao anunciar suas intenções de universalização do que se denominava, à

época, ensino de ‘primeiro grau’, o documento elenca alguns fatores de degradação das

condições sociais do país, bem como de entraves à qualidade do ensino na educação básica

atual, a saber: a precariedade na saúde, a carência alimentar, os baixos níveis salariais e as

desigualdades sociais nas diferentes regiões. O mesmo documento acrescenta outras causas

“(...) mais específicas do setor educacional, como insuficiência e má distribuição espacial da

rede escolar, inadequada formulação dos currículos, deficiências na formação e baixos padrões

de remuneração dos professores, entre outros.” (BRASIL, 1985, p. 6).

Ao criar elementos/documentos que reforçam uma construção discursiva de verdades,

de modo a impulsionar a implantação e consolidação do programa, o MEC, ao mesmo tempo

que responsabiliza a desorganização curricular, bem como a “má-formação” do professor pelas

mazelas da educação, “vende” o livro didático como um guia bem elaborado que poderá sanar

tais problemas.

É o que observa ao considerar os cinco pontos críticos a serem enfrentados, conforme

proposta do documento: 1– Falta de uma consciência nacional sobre a importância

político-social da educação; 2– Baixa produtividade do ensino; 3– Aviltamento da carreira do

magistério; 4– Inexistência de um adequado fluxo de recursos financeiros para a educação

básica e 5– Insuficiência e má-distribuição espacial de vagas nas escolas.

No tocante à “falta de uma consciência nacional sobre a importância político-social da

educação”, apelando para certa visão de globalidade que justificaria a amplitude da proposta,

os proponentes recorrem à necessidade de “(...) articulação, coerência e equilíbrio entre os

esforços orientados para o crescimento econômico e a compartilhamento de seus benefícios.”

(BRASIL, 1985, p. 5) e deixam explícita a intenção de aliar educação e economia.

Com efeito, a partir de Ball (2014), poderíamos considerar que as políticas adotadas na

Nova República apresentam a educação do país como grande oportunidade de negócio, na qual

Estado, Educação e Economia estão intrinsecamente interligados e visam à produção do lucro,

para, então, dividir as benesses desta parceria, numa aproximação que adentra o campo das

relações neoliberais globalizadas que criam condições para a implantação e expansão da

Educação como negócio rentável, denominado pelo mencionado autor de edubusiness.

Ao discutir a “baixa produtividade do ensino”, bem como a “inexistência de um

adequado fluxo de recursos financeiros para a educação básica” e uma “insuficiente e

má-distribuição espacial de vagas nas escolas”, o PNE avança na construção das bases que

promoveriam o PNLD a partir do processo que cria discursivamente o problema para,

posteriormente, “vender” a sua solução. Certamente que não entendemos esta criação como

invenção fictícia de uma realidade inexistente, mas como estratégia de identificação e

enfatização em um determinado ponto/tema/problema a fim de evidenciá-lo/atuar sobre ele,

uma vez que, a partir de Foucault, o discurso é entendido como “prática instituinte, como

materialidade, como aquilo que cria os objetos de que fala.” (RAGO, 2009, p. 17).

O contexto apresentado explicita o modo como novamente alia-se a carência social aos

problemas educacionais e oferecem-se soluções assistencialistas em um único pacote, em que

são colocadas questões relativas à repetência e evasão escolar que, segundo o documento,

derivam de programas que não consideram a realidade vivida pelas crianças e que apresentam

conteúdos superficiais e de utilidade duvidosa presentes em currículo desconexos, que não os

preparam para o exercício da cidadania. Ainda nesse contexto, aponta-se a falta de bibliotecas

e materiais didáticos, principalmente nas escolas de regiões mais carentes, afetando

significativamente as famílias mais pobres e sem recursos para aquisição de material didático

para seus filhos.

Outros fatores de destaque na proposta abordam o “(...) aviltamento do status social da

carreira docente, de que resultam deficiente preparo técnico, falta de identificação profissional

e eventual descompromisso com os resultados do trabalho”, além dos “(...) deficientes padrões

de ensino nos cursos de preparação para o magistério (...)”, por sua vez impactados pelo “(...)

descumprimento das obrigações do setor público para com a educação do povo, em termos de

destinação de recursos financeiros.” (BRASIL, 1985, p. 7-8).

Tudo isso cria as condições que farão emergir e consolidar um programa que vislumbra

– na distribuição de livros didáticos, mas também paradidáticos, dicionários, livros de literatura

etc. – solucionar problemas de ordem social, curricular e até mesmo da formação docente, à

medida que o livro didático permitiria não somente determinar os conteúdos que se quer

ensinados, mas também a sua ordem de apresentação, além de oferecer, no manual do professor,

orientações de como desenvolver as atividades propostas, permitindo-lhe “aprimorar” seus

conhecimentos teórico-metodológicos numa espécie de formação continuada e em serviço.

Entendemos que os apontamentos lançam luzes sobre o direcionamento de práticas que

fabricam discursivamente o objeto de que falam. Ao descrever uma “realidade” social e

educacional do país, o MEC dá forma aos objetos, criando as condições para um tipo de política

social e educacional que deseja implantar, colocando os problemas apontados – de modo

específico, o livro didático – em um jogo de verdades que se apresenta como potência e produto

das relações saber-poder:

(...) lá onde existe poder, lá onde é preciso que exista poder, lá onde se quer mostrar que é efetivamente ali que reside o poder, e bem, é preciso que exista o verdadeiro; e lá onde não existe o verdadeiro, lá onde não existe manifestação do verdadeiro, então é porque ali o poder não está, ou é muito fraco ou é incapaz de ser poder (FOUCAULT, 2009, p. 16).

Deveras, ao enunciar as precariedades na formação docente, a superficialidade dos

currículos e o descaso do poder público com a educação do povo, a proposta ‘Todos pela

Educação’ impõe uma verdade contra a qual “não se pode insurgir” , haja vista o seu apelo a

uma suposta justiça social. Ao mesmo tempo que fortalece o movimento em prol de um

programa que atenda a esta demanda, o programa constitui as bases para o PNLD, o que

evidencia uma intrínseca relação entre a o poder e manifestação do verdadeiro como algo não

somente útil, mas indispensável ao bom governo.

Embora este documento apresente algumas condições de possibilidade de instauração

do PNLD, ele se consubstancia em “nós” numa rede onde transita o poder, que, certamente,

dependeriam ainda de outros “nós” que lhe dessem sustentação. Assim, após o PNLD assegurar

a escolha dos livros didáticos pelos professores, o fim da compra de livros descartáveis

(passando à compra de livros que seriam reutilizados por três anos) e a extensão da oferta

gratuita de livros a todos os alunos atendidos em escolas públicas de 1ª à 8ª séries (denominadas,

à época, escolas de primeiro grau), outros documentos reforçariam estas demandas e

ampliariam os focos de atenção de modo a expandir a representatividade do programa,

tornando-o ainda mais atrativo ao mercado editorial e, de modo mais significativo, à indústria

internacional do livro. A implementação de todo esse aparato no bojo PNLD ganha dimensão

com o Plano Decenal de Educação para Todos (PDET) – 1993-2003 – que, após apresentar o

livro como um dos principais insumos da escola e apontar a necessidade de reformular a política

nacional do livro didático, de modo a enfatizar seus aspectos qualitativos, questiona novamente

a capacidade do professor para a escolha do material, ao destacar que “[o] princípio da livre

escolha pelo professor esbarra em sua insuficiente habilitação para avaliar e selecionar.”

(BRASIL, 1993, p. 24).

Tais estratégias de desqualificação de um quadro, sistema ou sujeito evidenciam uma

prática constante de vontade de poder que pleiteia o controle mediante a disciplina,

normatização, coação ou sedução, entre outras estratégias. Trata-se de uma vigilância

“discreta”, que coloca a educação e as reformas desejáveis pelo governo em um sistema de

produção em série, em que cada resultado a ser obtido depende de uma linha discursiva de

montagem, cujos princípios, uma vez assimilados, são/serão colocados em prática no momento

oportuno.

É o que se denota do documento “Recomendações para uma Política Pública de Livros

Didáticos”, publicado pelo MEC em 2001, apoiado em estudos anteriores do próprio Ministério,

da Fundação Carlos Chagas e de pesquisadores da área de Educação Matemática, como o texto

“Características de professores(as) de primeiro grau no Brasil: perfil e expectativas”, produzido

pela pesquisadora Bernadete Gatti, em 1994. O documento critica enfaticamente a qualidade da

produção didática brasileira, citando sua desatualização, incorreção e insuficiência

metodológica dos conteúdos.

No documento UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO DO SUL (páginas 82-200)

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