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Em Clarice Lispector, a percepção do mundo como mundo vivo é frequentemente mediada por percepção que devemos chamar “neutra” porque toma o objeto fora dos sinais e valores gregários e também fora dos sinais e valores egóticos. Toma o objeto fora da perspectiva demais organizada pelas instituições sociais ou pela personalidade excessivamente orientada e que presume já tudo conhecer. O primeiro tempo das narrativas é frequentemente dedicado a uma operação de neutralização: o desprendimento de todo sentido previamente fixado para o objeto por injunções coletivas ou individuais.

Que é neutralizar, o que é pôr sob perspectiva neutra? Nossa resposta vai se guiar pela atitude reconhecível na escritora, atitude a que ela convida também os leitores. Trata-se de uma atitude que o texto mesmo e a leitura ajudam a formar. Almejamos assinalar alguns traços dessa atitude e que possam valer como notas psicológicas.

Atitude, em psicologia social, é uma inclinação de sentimento e pensamento que os outros humanos ajudam a formar ou desmanchar. A atitude neutra exigida do leitor de Clarice Lispector é precedida pela atitude que a escritora parece muito conscientemente ter testemunhado como uma atitude exigida pela alteridade dos objetos. Não é possível apreender o que nos supera, só tocar. E isso exige desprendimento de todos os modos muito armados de sentir e pensar já disponíveis no terreno da vida comum ou da vida privada.

A atitude completamente neutra é impraticável, pois talvez ninguém possa perfeitamente sacrificar sentir como sente e pensar como pensa. E talvez ninguém possa absolutamente desligar-se do que nossos semelhantes e vizinhos sentiram e pensaram. Contudo, a tarefa fica factível graças a duas operações reconhecíveis na escritora:

b) sentir e pensar como quem se imagina em lugares alheios de sentimento e pensamento, prosseguindo na variação de ângulos agora pelo expediente de sentir e pensar imaginando como o fariam aqueles que não sou eu e que já vi ou presumi sentindo e pensando.

A variação de ângulos como tarefa da pessoa sozinha e da pessoa vicariante é o que põe o sentimento e o pensamento sob uma perspectiva que nunca seria minha se eu não a tivesse alcançado por variações vividas comigo mesmo e com os outros. O resultado difere de qualquer coisa que eu alcançaria pensar sem os outros e só de um ângulo, geralmente aquele que não desafia minha tolerância ou a tolerância social e me mantém disposto a sentir e pensar só o que não parecer intolerável.

Em Clarice Lispector, o desafio à intolerância tanto de pessoas quanto de instituições parece mesmo um objetivo ativamente perseguido: propor-se a sentir tudo, especialmente o que for quase intolerável. A massa branca da barata? Atingi-la com a língua que toca e com a língua que fala do toque!

Uma outra dupla de princípios derivou então da primeira: pensar com o corpo para, movendo-se por linguagem, também pensar além dele. Pensar como um pensador encarnado, para quem a linguagem é sempre uma operação mais ou menos casada com o corpo. E a linguagem supera a informação corporal, mas apoiando-se nela como numa alavanca. Pensar nunca sem sentir; sentir para pensar.

A ordem rotineira, a pesada ordem dominante, parece não querer encontrar o mundo. As coisas, as plantas, os bichos e as pessoas ficam sem o seu potencial de despertar e de tirar os despertados da banalidade cotidiana ou do controle gregário. Predominam as pequenas e grandes repugnâncias que os seres nos levantam.

A transição da repugnância social e pessoal, o nojo e a náusea, para a desinibição, a passagem do toque aversivo para depois só o toque, isto parece corresponder ao que o texto clariciano busca incessantemente. Se o asco não é vencido, que seja ao menos exposto sem desculpas. Que a pessoa sozinha não

vença definitivamente o asco não será pretexto para que os outros sejam acusados, a pessoa vitimizada e o asco justificado. A condição subjetiva e intersubjetiva da capacidade de sermos neutros é razão para sermos delicados mas também exigentes uns com os outros e com nossas maneiras de nos associarmos no medo.

É a atitude neutra diante do mundo que libera aos poucos o sentimento do mundo vivo. A figura amarrada do mundo, passando pelo acolhimento neutro, libera a figura viva e solta do mundo como uma correnteza e traz a intuição da vida mesma.

O deslumbramento com um mundo sublimado - sem ratos - e o horror paralisante com o mundo - onde encontramos ratos mortos - são maneiras de não soltá-lo, de querê-lo segundo meu prazer ou meu desprazer. É substituir a influência centrífuga do mundo por uma contenção centrípeta praticada por mim ou por nós.

Oh, não se assuste tanto! (...) repeti como se pudesse alcançá-la antes que, desistindo de servir ao verdadeiro, ela fosse (...) servir ao nada. Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo. (Lispector, 1971/1999, ALE, p.79-80)

Um mundo que só pode existir segundo o limite do meu medo, um mundo que não pode assustar nem espantar, deixa de existir. O que é necessário não é que não se tenha medo, tampouco que o medo regule o que posso saber do mundo e o que não posso saber. Este seria o caso em que eu diria a mim mesmo: só posso saber o que não me dá medo; e não quero saber nada do que me dá medo.

Existe certa convicção de que a verdade e o medo sejam incompatíveis, nunca simultâneos: quem tem medo não vive a verdade; quem vive a verdade não tem medo. Eu diria a mim mesmo: se algo traz medo, não é verdadeiro e precisa ser eliminado como superstição; se algo não traz medo, então é verdadeiro e pode ser conquistado.

Em contrapartida, o meu medo não precisa ser eliminado para que eu pudesse viver a verdade. Clarice Lispector parece conviver com o medo, vivendo ora com medo e ora sem medo. Viver o medo não é ser arrastado por ele e nem eliminá-lo, bastaria que algumas ou várias vezes eu pudesse viver o que me dá medo sem me limitar a viver só o medo que me dá, tendo a dizer só que me dá medo e mais nada. O mundo que assusta Clarice Lispector faz mais do que só assustá-la e dá sempre mais do que apenas o medo. A escritora parece viver o medo. E também parece não vivê-lo demais, servindo-o como um escravo serve ao seu senhor. O medo não seja meu dono e eu não seja o dono dele. Isso pode bastar para que vivamos o mundo. Dominar o mundo não é condição para fazê-lo existir pra mim. E deixar de dominá-lo não faz o mundo deixar de existir. Seria necessário que o mundo pudesse existir sem precisar todo tempo existir para mim ou para a minha tranquilidade. O mundo assusta porque existe e não sou eu. E inversamente: só permitindo que não seja eu é que o mundo pode existir, assustar e fazer mais por mim do que só assustar.

A neutralização desarma a compreensão funcional, aquela forma de inteligência que se satisfaz com decisões sobre os entes restringidas à correspondência de todos e cada com nosso apetite ou nossas necessidades utilitárias: valendo todos e cada um por sua capacidade nutritiva ou serventia, ficam fixados como coisas de consumir e usar. Nada que neles adivinhasse mistério, enigma ou outros sentidos.

Enquanto permanecemos no meio de objetos que existem segundo nossa fome e interesse, nosso comportamento adquire o automatismo e a previsibilidade de qualquer consumidor ou usuário. E aplicaremos sobre pessoas a mesma regra aplicada sobre coisas. Então tudo e todos perdem aquela independência e beleza que só atenção neutra, desinteressada, pode outra vez sentir. É como enxergar pela primeira vez: visão virgem, selvagem. E então é aí que recomeça o mundo, o movimento do mundo, a vida do mundo, tudo muito maior do que eu e do que nós. É bom estar preparado para a vertigem, porque a vida do mundo vai ficar solta como as tempestades ou os ventos, livre de tudo que a abafava: o vivo aparece, começa a agir e a gente

agora sente.

A neutralização nem sempre é agradável. Dá um mundo que pede passagem e entra. Se não lhe abrimos a porta, pode arrombar, machucando ou triturando a subjetividade. Há horas, na escritora ou em personagens, que a subjetividade parece quase abandonada e parece que só passa o mundo, mais poderoso que nunca. A neutralização pode revelar um mundo aterrador, intempestivo, capaz de derrubar tudo que estivesse imobilizado.

Vivo estava tudo. Tudo é vivo, primário, lento, tudo é primariamente imortal. (...) havíamos endurecido a geléia viva em parede, havíamos endurecido a geléia viva em teto; havíamos matado tudo o que se podia matar, tentando restaurar a paz da morte em torno de nós, fugindo ao que era pior que a morte: a vida pura, a geléia viva. (Lispector, 1972/1999, AGVP, p. 402- 403)

O vivo unifica as criaturas vivas, liga tudo o que foi vivificado:

Eu sabia que nós somos aquilo quem tem de acontecer. Eu só podia servil-lhe a ela de silêncio. E, deslumbrada de desentendimento, ouvia bater dentro de mim um coração que não era o meu. Diante de meus olhos fascinados, diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se transformando em criança. (Lispector, 1971/1999, p. 74)

“O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo – espantada de pé, fertilizada”. (Lispector, 1971/1999, AAM, p. 145)

“[...] vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver”. (Lispector, 1978/1999, M, p. 124)

O vivo passa pela natureza das coisas e das plantas e dos bichos, passa pela natureza humana. Vibrante, é a pulsação do mundo. Tudo pode estar vivo, bastando um olhar neutro para que a vida escorra e manifeste-se como

suprema realidade: uma realidade maior, anterior e posterior a tudo, por dentro e por fora de tudo, a matéria, o ectoplasma, o Deus.

O vivo toma um caráter ígneo, pneumático, sonoro, um caráter líquido infinitamente abrangente. Como fogo, ar, som ou água, inflama, sopra, sussurra ou flui. Pode ganhar ondas furiosas e incendiar, tombar, ensurdecer ou encharcar. O leitor atingido vai aparecer, desaparecer, salvar-se, danar-se, viver, morrer, receber, perder, desadormecer, sonhar, curar, adoecer. Renascer ou sucumbir vai depender do impacto sofrido, vai depender de estarmos duros ou flexíveis e vai depender dos lugares e de outros humanos que acompanhem ou contrariem nossa alteração.

A literatura de Clarice Lispector vive de reencontrar e conviver com o mole, a lama, a geleia, a placenta. A coisa é mais viva quando é úmida; e quando se torna ostra deixa de ser coisa. A experiência dessa umidade nós relacionamos a Winnicott e aos estados de “não-integração”, condição que é diferente de estados desintegrados, cindidos. Estados não integrados são aqueles estados relaxados do corpo, da alma, da consciência e que se abrem, recebem o mundo, acolhem: são, segundo o psicanalista, condição e fundamento de nossa criatividade. A criatividade decorre da capacidade do “eu” em viver sem horror o “não-eu”, balançando entre não-integração e alguma gradual integração.

As pedras, as árvores, as feras, a cidade, os cidadãos, tudo amolece sob o olhar clariciano, pode às vezes dissolver. Os seres todos parecem interagir e trocar energia. Somos nós também, as pessoas, incluídos no círculo das interações. O vivente une-se aos viventes, como que fazendo uma só voz com eles. Mas também recua, faz silêncio perto deles ou conversa: a sensibilidade para os perfis e a atenção para a pluralidade das vozes estão presentes na obra da escritora. A separação dos viventes difere de um divórcio e, mais precisamente, difere de uma dissociação. Separação pode permitir comunicação. Contudo, separação é sobretudo solidão, silêncio, contato silencioso, grandes temáticas claricianas. Uma solidão que, diferente do isolamento, persiste nas horas em que cada ser, por si mesmo e de modo bem

próprio, aproxima-se dos outros. Um silêncio que tanto liga quanto desliga os silenciosos, a ligação não sendo mais nem menos valorosa que o desligamento.

No artigo “Clarice Lispector e o espírito das línguas”, Claire Varin (2004) notou que tanto os escritos quanto a escritora tinham uma mesma “necessidade de confronto com as palavras dos outros, as línguas dos outros”.(p. 204) Clarice falava português, inglês, francês, espanhol e parece que um pouco de italiano. Filha de judeus ucranianos, cresceu brasileira e querendo pertencer ao mundo mais que ao Brasil.

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