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Nicholas Ray: Bigger Than Life

No documento Melodrama no cinema norte-americano (páginas 54-56)

fatalista da sociedade americana e na subversão à unidade e estabilidade típicas do classicismo de

2.6. Nicholas Ray: Bigger Than Life

A carreira cinematográfica de Ray é marcada por uma trajetória atípica, porque seus filmes não se encaixam em um determinado gênero específico. Nota-se no diretor norte- americano, ao analisarmos sua filmografia, que ele não fica preso a certa ideia de cinema ou estilo, apesar da maioria de seus filmes seguir uma estrutura narrativa clássica (como era de costume para quem trabalhava no sistema de estúdios dos anos 1950). Seus filmes obedecem a “leis gravitacionais próprias”, enfatizou Elsaesser (2011, p. 131).

Esta “rebeldia” cinematográfica possibilitou ao cineasta brincar e subverter as convenções de gênero: Party Girl (1958) é um film noir que utiliza sequências musicais (Cyd Charisse, a musa-dançarina de Vincente Minnelli, não está lá por acaso); Bigger Than Life (1956) é um melodrama com elementos de horror em que, numa cena, o filho do professor Ed Avery (James Mason) assiste na televisão um western. A necessidade de transgressão no cinema de Ray é visível num dos seus filmes mais famosos, Johnny Guitar (1954), que pode ser considerado um antiwestern, na medida em que o cineasta coloca a personagem de Joan Crawford como a protagonista-heroína, em meio a um gênero predominantemente masculino. O cinema de Ray está no poder de transformar o cotidiano banal de uma personagem numa estrutura psicológica complexa. A aparente harmonia do mundo se desmorona por meio dos

conflitos/consciência internos, utilizando a sugestão da decoração, da direção de arte e da cor, além da condensação de uma ideia em um gesto, um olhar ou uma ação expressiva, para alcançar efeito emocional e traçar o destino de seus personagens, ao mesmo tempo em que desestrutura o mundo a volta deles. Deste modo, Ray coloca seus personagens (muitas vezes violentos, narcisistas e instáveis) em constante flexibilização, mas isto, devido à crítica persistente do sistema vigente, relativizando, inclusive, um maniqueísmo (bem versus mal) predominante no cinema clássico hollywoodiano. Se os personagens agem de maneira controversa é porque eles entram em choque com as convenções sociais, morais e religiosas impostas, levando-os a viverem de acordo com seus próprios princípios éticos. A construção da denúncia à sociedade americana dos anos 1950 e 1960 é notória a partir da visualização de seus filmes, mas esta só é possível pelo trabalho consciente de sua mise-en-scène, ou seja, por vias estritamente cinematográficas: “A mise-en-scène de Ray se distancia da subordinação ao roteiro-mecanismo sem nunca destruir totalmente a forma sobre a qual tal distanciamento é aplicado. Em última instância, talvez seja essa habilidade de articular, em termos especiais para o cinema, um ponto de vista ao mesmo tempo dentro (o sistema) e fora (seus limites numa expressão pessoal) que faz com que o cinema de Ray seja tão amado e tão vitalmente importante” (ELSAESSER, 2011, p. 135).

Ray acreditava que o roteiro era apenas uma fonte de improvisação41. A reflexão de

Elsaesser levanta um questionamento sobre em que lugar o cinema de Nicholas Ray se encontra: Cinema Clássico? Moderno? No artigo O Estranho Mundo de Nick, Hernani Heffner também se pergunta e discorre sobre a questão.

“Nicholas Ray sempre soube onde estava entrando, tanto em termos artísticos, quanto sociais. Não houve ilusões, nem mesmo no início. Se ele se dedicou a fustigar os elementos de composição do velho classicismo, percebendo sua desagregação e contribuindo para ela, isso não significa uma rejeição pura e simples dessa premissa e um ingresso decidido na aventura de criação do chamado cinema moderno. Se elementos nesse sentido aparecem em seu cinema, e isto ocorre de forma muito pronunciada, não significa uma adesão cabal a novos paradigmas. Ray examinou as potencialidades do classicismo, consciente de que este não se fundara no aparecimento do cinema, mas que desenvolvia neste novo meio potencialidades há muito insinuadas, mas nunca de fato testadas. Se sua aventura pessoal guarda paralelos quixotescos e sofrimentos atrozes, pauta-se também pela experimentação artística no melhor sentido da palavra. Para além do mito do artista incompreendido e

41 “Eu odeio o roteiro. Eu detesto o roteiro. É inegável que eu vá lutar contra o roteiro, não importa como eu o escolha. O roteiro representa autoridade, e eu renego autoridade, é uma falha em meu caráter” (RAY, 2011, 388).

vilipendiado, cumpre conhecer melhor a tensão entre esse classicismo e essa experimentação, ele que foi artista de dois mundos, pagando um preço por isto” (HEFFNER, 2011, p. 344).

Em Bigger Than Life (1956), Ed Avery (James Mason) - também produtor do filme - é um professor ginasial que, nas horas vagas, também trabalha em uma companhia de táxi. O esforço, a sobrecarga e a necessidade de se ter dois empregos para sustentar sua família faz com que ele seja diagnosticado com uma grave doença nas artérias. O médico (Robert F. Simon) lhe dá menos de um ano de vida, a menos que ele se medique com uma nova droga: a cortisona. Ed aceita o tratamento, mas é alertado de que o remédio deve ser controlado, porque a superdose pode lhe causar efeitos colaterais devastadores. Quando sai do hospital e retorna para casa, o professor sente-se eufórico e enérgico, mas com o passar dos dias a dependência química da cortisona causa-lhe abstinências, crises e depressões, ao ponto de inicialmente ser arrogante e violento com a esposa Lou (Barbara Rush) e o filho Richie (Christopher Olsen), e posteriormente com todos à sua volta. No retorno ao trabalho na escola, depois da alta hospitalar, Ed diz a Lou que se sente com três metros de altura42. A

câmera de Ray está posicionada abaixo do professor (plano contra-plongée), o que reforça o pensamento extravagante de Ed, mas à medida que ele caminha em direção ao prédio, percebe-se que a arquitetura escolar é muito maior que sua consciência.

O professor abusa da droga porque lhe dá uma sensação de poder e liberdade (inclusive financeira – Ed compra vestidos caros para a esposa para tentar se enquadrar numa classe social a que não pertence). Contudo, Ray, nas entrelinhas, realiza uma crítica aos valores e atitudes da classe média americana daquele período43. Para o cineasta, antes da

droga química há a droga social. À maneira que a trama se desenrola, aumentam as reflexões de Ed contra o sistema educacional, moral e religioso.

Elsaesser (2011, p. 130) diz que a mise-en-scène de Ray é arquitetural (utilização dos espaços de forma dramática) e de desordem (organização consciente, porém, assimétrica dos elementos visuais). Para caracterizar os Avery como uma típica família de classe média, o realizador faz questão de mostrar (em sua imensa variação de planos) a televisão, os cômodos e móveis relativamente pequenos da casa, além de pôsteres de lugares europeus (Bologna, Roma, Florença, França) pendurados nas paredes - lugares estes que, provavelmente, a família sempre teve vontade de ir, mas nunca foi de fato. Na estrutura de sua encenação, a iluminação e a cor têm papel fundamental. Em uma cena, Ed fica sozinho com seu filho na sala de estar aplicando um teste matemático. O menino é proibido de jantar enquanto não acertar a resposta do enigma proposto pelo pai (dopado pela cortisona). Como no

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