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A noção de grandeza intensiva em Kant

No documento Bergson, liberdade e aprendizagem (páginas 32-35)

2 CRÍTICA DA PRECISÃO

2.1 Crítica ao determinismo psíquico das psicologias experimentais

2.1.1 A noção de grandeza intensiva em Kant

Kant inaugurou um tipo de problemática nova na história da filosofia, a investigação dos juízos sintéticos a priori, condição da experiência possível. Mais do que uma nova doutrina, a filosofia transcendental é a reconfiguração do problema do conhecimento, designada por ele de revolução copernicana do pensamento. O que seria isso? Que a Crítica da Razão Pura se inicia pela estética transcendental, reflexão acerca das formas a priori da sensibilidade, e não pelo Absoluto, o Cosmo ou Deus, exprime essa reorientação que definirá o pensamento moderno. Agora, “não há dúvida que todo o nosso conhecimento começa com a experiência” (KANT, 2012, p. 45). Tenha-se em vista a efervescência científica da época, que germinava os brotos da modernidade: a publicação de As revoluções das órbitas celestes (1543) de Copérnico; o Principia mathematica (1687) de Newton, e Princípios da filosofia (1644), de Descartes, e da publicação das teses de Galileu (1632), ou seja, “uma revolução científica sem precedentes na história da humanidade” (FERRY, 2010, p. 19).

A Estética transcendental, primeira seção da Crítica da Razão Pura, altera significativamente o pensamento ocidental, definindo que apenas o fenômeno, apreensível pela experiência, pode ser conhecido. O tempo e o espaço são vistos como formas a priori da sensibilidade do sujeito, às quais a matéria fornecida pela sensação preencheria, compondo assim os fenômenos. Todo conhecimento legítimo só concerne aos fenômenos. Se é assim, a percepção sensorial já não é como em Descartes, possibilidade do erro, “o que não nos mostra o que verdadeiramente existe nas coisas” (COTTINGHAM, 1986, p. 115). Em Kant, o intelecto não pode atingir imediatamente as formas geométricas da res extensio, ele só se relaciona com os objetos mediante a intuição empírica, sob a condição das formas a priori da sensibilidade ou intuições puras, o tempo e o espaço.

Nesse momento, o que nos interessa é fornecer o suficiente de um ponto muito específico da filosofia de Kant: o sentido da noção de grandeza intensiva. Essa noção aparece na seção da Crítica da Razão Pura destinada aos princípios do entendimento puro (KANT,

25 Sobre a continuidade lógica entre o criticismo kantiano e as psicologias: “Assim como a psicofisiologia é, de

algum modo, a ‘verdade’ e a culminação do senso comum, o criticismo é a ‘verdade’ e a culminação da psicofisiologia” (PRADO Jr., 1988, p. 89). E “se podemos pensar os fenômenos da consciência como pontos que se justapõem é porque os apreendemos desdobrados num meio homogêneo ou numa forma vazia tal como o tempo da Estética Transcendental” (MORATO, 2005, p. 70).

2012, p. 189), isto é, as regras universais determinadas a priori às quais se subordinam todos os casos da experiência. Desses princípios do entendimento puro, apenas os denominados princípios matemáticos nos interessam. Por princípios matemáticos entende-se “aqueles em que se fundam a priori a possibilidade e a validade” de todos os princípios matemáticos; “os princípios dos princípios” (KANT, 2012, p. 189). São eles, 1) Axiomas da intuição e 2) Antecipações da percepção. Convém expor minimamente esses princípios pelas seguintes razões: a) evidenciar o vínculo entre a filosofia de Kant e as psicologias experimentais (psicofísica e psicofisiologia) e b) ressaltar os efeitos críticos das operações de Bergson sobre a filosofia de Kant, especificamente sobre a legislação dos princípios do entendimento sobre experiência. Esses dois esclarecimentos serão úteis no capítulo seguinte.

O primeiro princípio, axiomas da intuição, afirma que toda intuição é uma grandeza extensiva, ou seja, procede sempre das partes, por meio de ligações, em direção a um todo. “Não posso representar-me nenhuma linha, por menor que seja, sem traça-la no pensamento, isto é, engendrar todas as partes a partir de um ponto, uma após a outra, e assim esboçar pela primeira vez essa intuição” (KANT, 2012, p. 189). A síntese que procede por sucessão de ligações, e assim compõe a unidade de um agregado de partes homogêneas, é designada grandeza extensiva. Isso é, a estrutura da percepção do sujeito, ou a atividade sintética a priori, apreende o fenômeno por uma síntese do diverso que procede das partes ao todo, por ligações sucessivas de partes homogêneas. Logo, todos os fenômenos são grandezas extensivas. São sínteses realizadas pelo sujeito, agregados de partes que compõem um todo. “Eu denomino quantidade extensiva àquela em que a representação das partes torna possível a representação do todo, (e, portanto, antecede necessariamente a esta)” (KANT, 2012, p. 189, grifo nosso).

Atentemos para a ideia de que a atividade intuitiva procede por “sínteses sucessivas” de partes, de maneira que “os fenômenos já são intuídos como agregados, (uma variedade de partes previamente dadas),” logo, “apreendidos de maneira extensiva”. É esse princípio que “torna a matemática pura, em toda a sua precisão, aplicável aos objetos da experiência” (KANT, 2012, p. 190). Fica então validada a subordinação de todos os casos da experiência à matemática. E “todas as objeções a isso são meras chicanas de uma razão falsamente ilustrada que, por caminhos tortuosos, acredita libertar os objetos dos sentidos das condições formais de nossa sensibilidade, e, embora sejam meros fenômenos, representa-os como objetos em si mesmos” (KANT, 2012, p. 190, grifo nosso). Ora, certamente é em outro sentido que Bergson, trilhando “por caminhos tortuosos”, pretende essa “libertação dos objetos dos sentidos”! É essa matemática universal validada sobre todos os casos da

experiência, fundada nas estruturas a priori da percepção de um sujeito teórico, que ele verá como problemática. Para o autor, “a principal tarefa da Crítica consistia em fundar essa matemática, isto, é, em determinar o que a inteligência precisa ser e o que o objeto precisa ser para que uma matemática ininterrupta possa conectá-los” (PM, p. 230). Veremos mais adiante que a reformulação bergsoniana da estética transcendental kantiana terá por efeito limitar essa matematização da experiência, restringindo-a ao seu fundamento real, ao âmbito da experiência que lhe concerne.

O segundo princípio, antecipações da percepção, afirma que “em todos os fenômenos o real, que é um objeto da sensação, tem quantidade intensiva, isto é, um grau(KANT, 2012, p. 191). Agora, trata-se do preenchimento das formas extensas do tempo e do espaço, compostas a priori no sujeito. A sensação é a matéria fornecida pela experiência, preenchendo as intuições puras, as formas a priori da sensibilidade. Esse preenchimento não se dá por uma sucessão de sínteses, como no princípio anterior, mas como a apreensão de um grau de realidade, em um instante. A sensação de um grau de calor ou de frio não se faz por sínteses sucessivas, mas de imediato, naquele momento. Afinal, um grau de temperatura não é jamais adicionável a outro grau de temperatura e, por conseguinte, não compõe uma extensão. Segue-se então que esse grau de realidade da sensação só pode ser uma grandeza intensiva.

Entre a pura intuição = 0 e a existência de uma sensação há uma multiplicidade de sensações menores. Isto é, entre a ausência ou a negação da sensação e determinado grau de realidade de uma sensação há certo número de sensações menores, um conjunto de modificações que são “influências sobre o sentido” (KANT, 2012, p. 192), cada uma delas comportando um grau intensivo.

Toda sensação, por conseguinte, portanto também toda realidade no fenômeno, por menor que seja, possui um grau, isto é, uma quantidade intensiva que pode ser sempre diminuída; e entre a realidade e a negação há uma concatenação contínua de realidades e possíveis percepções menores (KANT, 2012, pp. 193, 194).

Atentemos a esse ponto específico da filosofia kantiana: a concepção da sensação inteligível como grau intensivo, e vejamos nisso a inspiração da psicologia experimental. A psicologia experimental seguirá na direção de mensurar a gradação intensiva da sensação. É precisamente esse modo de inquirir a sensação que Bergson verá como indício de uma “confusão prévia entre a duração e a extensão, a sucessão e a simultaneidade, a qualidade e a quantidade” (DI, p. 9)26. Se a intensidade da sensação é objetivada como uma unidade simples

26 O aspecto confuso das antecipações da percepção não passou despercebido dos próprios estudiosos de Kant.

Jorge Filho (2012, p. 58), na nota de rodapé de seu artigo dedicado às complexidades das Antecipações da

justaposta a outras unidades simples, ela aparece então esvaziada de sua heterogeneidade qualitativa. Há na própria definição de grandeza intensiva uma “confusão” que é preciso desfazer.

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