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Após ter traçado a relação entre enunciado e gênero do discurso,observa-se a noção de texto dentro da teoria bakhtiniana. O texto, para Bakhtin, tanto o oral quanto o escrito, é visto como o dado primário (a realidade imediata) de todas as disciplinas das ciências humanas (e de qualquer pensamento filosófico-humanista), e o seu ponto de partida, quaisquer que sejam os objetivos do estudo, pois onde não há texto, também não há objeto de estudo para essas disciplinas e para o pensamento.

No estudo lingüístico, imanente do texto, até se pode abstrair completamente a autoria, por exemplo. Mas na noção de texto visto como enunciado, observa-se que esse possui um sujeito, um autor (falante-escritor) e diferentes formas de autoria que o autor pode assumir, segundo o gênero do discurso do enunciado. O texto visto como enunciado é determinado por dois fatores: seu projeto discursivo (intenção) e a execução desse projeto, que é a inter- relação dinâmica desses dois fatores; é a luta entre eles que imprime o caráter do texto. Considerando o texto como um enunciado, ele tem função ideológica particular, tem autor e destinatário. Ou seja, o texto pode ser visto como enunciado, se considera o seu horizonte extraverbal como constitutivo.

Segundo Bakhtin, existe uma bipolaridade do texto, em cujo primeiro pólo, o texto pressupõe um sistema compreensível para todos, uma língua comum, e convencional dentro de uma dada coletividade, pois, se por trás do texto não há uma língua, já não se trata mais de um texto, mas de um fenômeno natural. O segundo pólo pertence ao próprio texto, mas só se manifesta na cadeia dos textos e não se vincula aos elementos reprodutíveis do sistema da língua. Cada texto, na qualidade de enunciado, é individual, único e irreproduzível e, com isso, ele remete á verdade, ao verídico, ao bem, á beleza, á história. Bakhtin estabelece uma distinção entre discurso e língua (objeto da lingüística), que Rodrigues (2001) designou como

língua-discurso e língua-sistema, respectivamente.

A partir desta distinção entre língua-discurso e língua-sistema, a mesma autora faz uma analogia desta dupla orientação teórica para o texto, que, nessa perspectiva, pode ser analisado teoricamente de uma dupla perspectiva: do pólo da língua, do texto propriamente dito (pólo 1) e do pólo do discurso, do enunciado (pólo 2). O primeiro, abstraído da sua situação social, está relacionado com tudo aquilo que é e pode ser reproduzido e repetido no texto, ou seja, a língua como sistema de signos e o texto como sistema coerente de signos. O segundo é o do acontecimento irrepetível do enunciado, que pertence ao texto, mas só se manifesta na situação, na interação com outros textos (enunciados). Dessa forma, do ponto de vista do segundo pólo, e somente a partir dele, pode-se estabelecer que o texto é enunciado, que a língua é discurso.

Figura 1: Relação entre texto e enunciado, língua e discurso Pólo 1 TEXTO Pólo 2 texto língua (Plano da língua) (- situação social e interlocutores) (Plano do discurso)

1

- (+ situação social e interlocutores) enunciado discurso

Fonte: A constituição e o funcionamento do gênero jornalístico artigo: cronotopo e dialogismo

(RODRIGUES, 2001, p. 63).

É entre esses dois pólos que se situam todas as disciplinas das ciências humanas. Esses dois pólos são incontestáveis, quer se tratando da língua, quer se tratando do texto único e irreprodutível. No primeiro pólo podemos direcionar os estudos para a língua, isto é, para a língua de um autor, a língua de um gênero, de um movimento literário, de uma época; no segundo pólo, para o acontecimento irreprodutível do texto: o estudo do enunciado, das relações dialógicas, dos gêneros.

Vale destacar, ainda, que para Bakhtin as ciências humanas não se referem a um objeto mudo ou a um fenômeno natural, mas referem-se ao homem em sua especificidade, que pode expressar-se (falar), ou seja, criar textos. Quando o homem é estudado fora do texto, independente do texto, não se trata de ciências humanas, pois o ato humano é um texto potencial e não pode ser compreendido fora do contexto dialógico de seu tempo. O todo do enunciado se constitui devido aos elementos extralingüísticos, isto é, todo enunciado é inteiramente perpassado por esses elementos extralingüísticos e tudo o que é lingüístico são apenas recursos.

Pode-se dizer que o texto, visto na sua integridade concreta e viva, e não o texto como objeto da lingüística, faz de si um enunciado.

Considerar o enunciado dentro da análise lingüística imanente é abstrair-se a sua natureza dialógica, é considerá-lo dentro do sistema da língua e não no grande diálogo da comunicação verbal. Para Bakhtin, o objeto da lingüística é somente o material e os recursos da comunicação verbal, e não a própria comunicação verbal, ou melhor, os enunciados em sua essência, a relação dialógica que estabelece entre eles, as formas da comunicação verbal e os gêneros do discurso.

Como se pode deduzir do argumento de Bakhtin, a lingüística (de sua época) estuda somente a relação existente entre os elementos dentro do sistema da língua e não a relação existente entre o enunciado e a realidade e entre o enunciado e o locutor. Assim, para o autor os lingüistas percebiam tudo num contexto fechado, dentro do sistema da língua ou do texto compreendido lingüisticamente, sem levar em conta a relação dialógica que se estabelece com outros textos (textos- enunciados) e que seus limites se entrecruzam por todo o campo do pensamento vivo do homem.

Vale já destacar, como veremos no terceiro capítulo, que esta visão de língua-sistema e de texto-sistema ainda persiste na prática escolar e que nem tudo gira em torno dos gêneros do discurso. Dentro da escola, mais especificamente nos LDs de língua portuguesa, a grande maioria das propostas de estudo dos textos ainda ocorre a partir de tipos (seqüências) textuais: narração, descrição e dissertação. Ora, as tipologias textuais formais centram-se na visão do texto como sistema fechado (texto-sistema) e não na visão do texto-enunciado, como um elo na cadeia da comunicação discursiva.

Como veremos nos capítulos de análise, existe grande diferença e oposição entre os gêneros do discurso e os tipos (seqüências) textuais, o que traz várias conseqüências para o ensino das práticas de leitura e de produção textual. É importante salientar que essa diferença não ocorre somente em nível terminológico (nomenclatura), mas em nível conceituai (definição), pois, neste último nível constata-se que os tipos (seqüências) textuais são formados a partir da organização (estrutura) textual e, assim, definem-se por um critério formal, sendo sistemáticos e homogêneos, bem ao contrário dos gêneros do discurso, que, como vimos, são apenas relativamente estáveis, são ágeis e plásticos e “refletem” mais rapidamente as mudanças sociais. Em resumo, os gêneros do discurso caracterizam-se mais e, principalmente, por suas funções sócio-comunicativas do que pelas características lingüístico-estruturais, ou seja, pelos aspectos formais.

Vale ressaltar que essa distinção entre os gêneros do discurso e os tipos (seqüência) textuais é fundamental para as atividades de práticas de produção textual. Marcuschi L. (2002a) destaca que enquanto os tipos textuais são, aproximadamente, apenas meia dúzia, os gêneros do discurso são inúmeros, porque os tipos (seqüências) textuais são construtos teóricos definidos por propriedades lingüísticas intrínsecas que constituem seqüências lingüísticas típicas, mas não são textos empíricos. Quanto á nomeação, os tipos textuais, que, como vimos, abrangem um conjunto limitado de categorias teóricas, determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal, de acordo com o autor, são: narração, argumentação, descrição, injunção e exposição.

Entretanto, como veremos nos próximos capítulos, conceitos como tipos (seqüências) textuais e gêneros do discurso passaram a fazer parte

“indiscriminadamente” das propostas de atividade de ensino-aprendizagem de língua materna, sem, no entanto, haver coincidência em relação a seus sentidos.

Delineada a noção de linguagem, língua, discurso, enunciado, gênero e texto assumida neste trabalho, o próximo capítulo discute tópicos sobre a história do

LIVRO DIDÁTICO: SUA HISTÓRIA

Este capítulo apresenta uma análise da história do livro didático que permite compreender sua atuação no contexto do sistema educacional brasileiro e a tentativa de redimensionamento do seu papel na sociedade, devido a novas exigências. Procura-se mostrar como a discussão em torno dele se insere nos problemas educacionais brasileiros. Segue-se com a descrição da noção de gênero do discurso encontrada nos documentos oficiais, os PCNs e o Guia do LD.