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PARTE II – O PULSAR DE UMA CIDADE NO INTERIOR DO BRASIL:

CAPÍTULO 3 – (EN)CANTOS DA CIDADE DE FRUTAL

3.2 No acender das luzes: um sopro de modernidade no sertão baldio

A despeito das especificidades, das ênfases distintas e das variações de estilo, os escritos analisados apresentam importantes pontos de convergência, por exemplo: todos se dedicam a recontar e, ao fazê-lo, instituir, as origens de Frutal com preciosismo de detalhes. Além disso, transparece a semelhança das abordagens, pois se trata de um período da história da localidade narrado, em uníssono, como brilhante, luminoso. Interessante observar também que, quase sempre, os autores tomam 1835 como marco da chegada dos supostos pioneiros à região em que se formaria a cidade e apontam 1930 como o ano em que teria terminado a primeira fase da história local – seus fascinantes dias de esplendor135. Embora os limites temporais estabelecidos pelos memorialistas sejam relativamente extensos, considerou-se relevante investigar por quais representações o leitor contemporâneo foi convidado a transitar, ao ser conduzido aos primórdios da grande aventura da cidade. Como as obras foram publicadas quando Irene estava tomada pelo espírito de Tecla, procurou-se não perder de vista as promessas de futuro mobilizadas pelos cronistas. Deve-se ressaltar ainda que, ao se debruçar sobre tais representações, a intenção da pesquisa não foi recuperar a trajetória do município, mas, antes, problematizar e desnaturalizar as visões de cidade – todas elas ambicionando a verdade – que emanam das linhas memorialistas.

De modo geral, pode-se afirmar que as narrativas transformam o povoamento do território e a formação de Carmo do Fructal em atos a compor uma saga empreendida pelo patriarca da família Paula e Silva, nas margens mineiras do rio Grande. Ainda que certa versão comum e

convergente da história seja insistentemente reiterada, não deixa de ser instigante uma observação feita por Ernesto Plastino, nos originais de Apontamentos, em passagem suprimida da obra editada em 2003: “Sobre vários assuntos, datas e personagens da nossa história, constatamos existirem algumas divergências no registro dos fatos, das narrações e das notícias publicadas em fontes diversas. São senões que em nada alteram ou modificam a verdadeira história da fundação de Frutal” (1976, p. 9. Grifos meus).

Deixando as divergências e os senões de lado – após ter aguçado, intencionalmente ou não, a curiosidade do leitor –, Plastino apresenta a verdadeira história: o local em que surgiu a cidade de Frutal foi ocupado inicialmente por criadores de gado, destacando-se o bravo fazendeiro Antônio de Paula e Silva (1806–1886), que obteve a doação de terras de duas irmãs, residentes em Campo Florido, então chamado de Dores do Campo Formoso, para fundar um patrimônio:

Conseguida a doação, foi iniciada a construção de uma capela, ao lado dos ranchos de capim, dedicada a Nossa Senhora do Carmo. Erguida a capela, e inaugurada em 1835, iniciou-se em seu redor a formação do povoado, que ficou conhecido como Carmo do Fructal, tornando-se um ponto de passagem obrigatório para os que transitavam de São Paulo para Goiás e Mato Grosso (PLASTINO, 2003, p. 44).

Natural de Oliveira (MG), Paula e Silva transferira-se com a família para o município paulista de Franca.136 Por volta de 1835, após vender terras e gado, mudou-se, com a esposa, filhos e escravos, para a porção menos concorrida do Triângulo Mineiro, onde fundaria Carmo do Fructal.137 O estudo de Luís Augusto Bustamante Lourenço (2010a) sobre a produção do espaço no extremo oeste de Minas Gerais, entre 1750 e 1861, à época conhecido como Sertão da Farinha Podre, mostra que a diáspora dos geralistas levou o Estado colonial a estimular o povoamento da região, que antes se limitava a uma área de passagem, contando com a presença

136 Maísa Faleiros da Cunha, ao analisar o movimento dos chamados entrantes mineiros em direção ao Sertão do Rio

Pardo, registra: “o fluxo migratório de Minas Gerais garantiu o efetivo povoamento da região norte paulista na última década do século XVIII, acentuando-se, sobretudo, nas primeiras décadas do século XIX. Os migrantes mineiros que se dirigiram a Franca e áreas circunvizinhas (que deram origem a Batatais, Igarapava, Patrocínio Paulista, Ituverava, entre outras) vinham tanto de regiões do sul de Minas, especializadas no abastecimento interno, assim como de regiões de mineração decadente” (CUNHA, 2010, p. 4).

137 “O topônimo Frutal está ligado à abundância, no local, nas margens dos ribeirões, de uma fruta semelhante à

jabuticaba e que era conhecida simplesmente por fruta, daí a região ser conhecida, inicialmente, como Patrimônio das Frutas, posteriormente Carmo do Fructal, e hoje Município de Frutal” (PLASTINO, 2003, 45-46).

de poucos aldeamentos indígenas e de alguns ranchos destinados ao pousio de tropas, ao longo da Estrada do Anhanguera – caminho aberto por sertanistas para ligar a vila de São Paulo aos arraiais goianos. Dantas (2010), em análise esclarecedora sobre o processo de constituição de uma rede de cidades no Triângulo Mineiro, lembra que a região, ainda no século XIX, era boca de sertão, uma zona de fronteira, cuja ocupação pode ser dividida em fases:

A primeira delas é aquela que antecede a fixação do homem branco, quando os habitantes eram os indígenas e os quilombolas, fase que se encerrou por volta de 1746. A destruição dos quilombos e a expulsão dos caiapós marcariam as segunda e terceira fases com envio de homens para ‘domar’ os oponentes e instituir um povoamento fixo (DANTAS, 2010, p.7).

Lourenço denomina esse processo de povoamento das regiões vazias, e considera tardia a ocupação do vale do rio Grande, em relação a outras regiões do próprio Triângulo Mineiro – o que o levou, inclusive, a empregar a expressão sertão baldio em referência às terras nas quais se originou o Patrimônio das Frutas, mais tarde Patrimônio de Nossa Senhora do Carmo do Fructal. A apropriação do território pelos sertanistas dependia da ocorrência de solos mais férteis e de outros fatores, como proximidade de estradas e de núcleos de povoamento, havendo também a tendência das parentelas se afazendarem em áreas vizinhas. O autor não descarta uma possível explicação epidemiológica para esta ocupação tardia, dada a endemicidade da malária, ainda no século XIX, nas matas do vale do rio Grande (LOURENÇO, 2010a, p. 128-130). A imagem abaixo (Figura 05) retrata as datas em que houve a concessão de sesmarias no Sertão da Farinha Podre e destaca o local em que se formou Frutal, numa porção de terras do chamado sertão baldio:

Sesmarias concedidas pelo governo da Capitania de Minas Gerais no termo do Desemboque entre 1818 e 1822 (localização aproximada). Fonte: LOURENÇO, 2007, p. 103.

Adaptação: VEDUVOTO, 2016, p 72.

O nascimento das cidades no Brasil está ligado, de modo geral, ao relacionamento entre Estado e igreja.138 No Sertão da Farinha Podre as circunstâncias não foram diferentes, conforme esclarece Lourenço:

A fundação dos arraiais do Extremo Oeste Mineiro resultou, em todos os casos, de iniciativas das oligarquias rurais, pela formação de patrimônios religiosos. Um fazendeiro – ou um grupo de fazendeiros vizinhos – doava um trato de terra ao patrimônio de um santo. Sobre ele, esses vizinhos, organizados numa irmandade religiosa, erigiam uma capela, e tratavam de conseguir sobre ela a bênção do vigário da freguesia. A bênção da capela [...] significava o reconhecimento da existência do povoado pelas autoridades eclesiástico-estatais (LOURENÇO, 2010a, p. 281).

138 Sandra Dantas explica que a igreja “exercia um papel político e social, normativo e institucional. Geralmente, a

aglomeração humana se dava ao redor de um templo ou capela, que era a garantia de auxílio mais próximo, de serviços institucionais (registros de nascimento, batismo, casamento) e eclesiásticos. À medida que ocorria o reconhecimento das categorias eclesiásticas para uma construção, quais sejam capela, paróquia e matriz, o reconhecimento civil do povoamento era simultâneo, ou seja, a construção da capela sinalizava o povoado, a paróquia designava o arraial e, por fim, a matriz identificava a freguesia. [...] As sesmarias, ao serem conferidas a donatários que dispusessem de meios para desbravar, povoar e colonizar o interior do país, possibilitaram a formação do embrião do urbano. A construção da capela implicava o adensamento de população e a garantia de atenção do poder administrativo. Embora obtivessem o reconhecimento administrativo, os primeiros núcleos ‘urbanos’ do país padeciam com o descaso das autoridades, ausência de infraestrutura [...]” (DANTAS, 2010, p. 4-5).

Fonte: PLASTINO, 2003, p. 53.139

Nas linhas memorialistas, no entanto, Mata e Oliveira, ao abordarem o surgimento de Frutal, reiteram Plastino, exaltando o fundador: “a história de Frutal começa com a chegada de um bravo homem chamado Antônio de Paula e Silva [...] de vida íntegra, patriótico, político e possuidor de bons sentimentos cristãos e morais” (1982, p. 2). No poema Fio da meada, Elísio Martins também registrara: “peão, escravo, negociante de mercadoria/certamente muita gente por aqui passou/mas só um deles, em 1835, fama deixaria/Antônio de Paula e Silva, nosso fundador” (2001, p. 17). Terezinha Ferreira descreve o episódio nos seguintes termos: “Já habituado à vida em Franca, mas impulsionado por um incontrolável sonho, de realizações, partiu para uma aventura” (2003, p. 27). Nas palavras de Jeová Ferreira, seu “espírito empreendedor [...] exigia a realização dessa odisseia que somente os idealistas ousam enfrentar” (2002, p. 41).

Para além da monotonia das narrativas, interessa perceber que são atribuídas ao fundador da cidade mais do que as providências legais para a demarcação das terras do Patrimônio de Carmo do Fructal. Aos olhos dos cronistas, o esmerado cidadão, “consciente de seu dever

139 Substituindo a capela original, a construção desta igreja teve início por volta de 1854, sendo concluída em 1872.

Entre 1911 e 1912, a obra, quase toda de adobe, passou por reformas. Sua demolição ocorreu em 1939, quando o prédio estava novamente em péssimo estado de conservação. Acredita-se que a imagem em destaque tenha sido feita na década de 1920.

histórico” (FERREIRA, J. 2002, p.41), partira de Franca imbuído de um sonho, de um desejo de realização, que se consubstanciaria por intermédio da criação de uma cidade.

Em O sertanista, Freitas se dedica a narrar, especificamente, a odisseia e saudável ousadia deste bandeirante mineiro. Para isso, convida o leitor a dar voltas inversas no planeta Terra, rodando o ponteiro do relógio para trás. Por meio de um retorno ao passado, o memorialista constrói a narrativa, como se estivesse em pleno século XVIII, no calor dos acontecimentos, ou mesmo se antecipando a eles, mergulhado nas expectativas de um futuro que, a seus olhos, se enunciava como promissor. Possivelmente tocado pelo impulso utópico presente, enuncia um destino grandioso em formação, que parecia se revelar antes mesmo da cidade existir. Em um primeiro momento, Freitas conduz o leitor à região em que Frutal viria a se formar:

Convido-o a acompanhar-me, leitor. O objetivo é o de retornar ao passado – ver nosso país, há 212 anos atrás (sic), e, nele, a região do Sertão da Farinha Podre. Mais precisamente, divisaremos o local em que, anos depois, foi lançada a semente de Fructal. Veremos que é uma densa e verde mata virgem, à beira do rio Grande, conhecida, apenas, por poucos passageiros que demandavam, por um picadão, às longínquas paragens de Goiás e Mato Grosso (FREITAS, 2004, p. 15).

Na mesopotâmia triangulina140, a natureza se mostrava pródiga não somente pela densa e verde mata virgem, mas também pela abundância em águas, frutas e terras férteis. O componente ufanista da narrativa é evidente, pois além de enaltecer a exuberância da natureza, o cronista destaca a localização estratégica do cenário paradisíaco, que se constituía numa importante rota de passagem para terras mais distantes: “o caminho certo de quem vinha de São Paulo e demandava as terras de Goiás” (FREITAS, 2004, p.32). Por isso mesmo o local fora alvo de intensa disputa política: “ora como Triângulo Goiano, ora como Triângulo Mineiro!” (FREITAS, 2004, p. 185).141

Para referendar seus argumentos, Freitas recorre aos relatos de viajantes, como Auguste de Saint Hilaire, porém não se limita a reproduzir suas descrições. Ele mesmo viaja no tempo e

140 A expressão mesopotâmia, recorrentemente usada por Freitas, se deve à localização das terras do Triângulo

Mineiro entre os rios Grande e Paranaíba.

141 “O Triângulo nasceu paulista, em 1725, quando então era, para aquela província, apenas uma área de passagem

rumo às minas goianas. Tornou-se parte da então recém-criada capitania de Goiás, em 1736, permanecendo como corredor para o tráfego de tropas para São Paulo por quase um século, quando finalmente se integrou a Minas Gerais, em 1816” (LOURENÇO, 2010a, p. 21).

no espaço, com o propósito de delinear um mito de origem para a cidade: “aquela região – viu ele [Paula e Silva] – lembrava o Éden que abrigou Adão e Eva” (FREITAS, 2004, p. 60). Mas de nada valeriam as riquezas naturais e a localização privilegiada, sem a coragem e a determinação de Paula e Silva: “O que vemos, agora, de próspero, importante e de bonito, de criativo e de incentivo teve um começo em 1835. Foi aí que o fundador partiu do nada, tendo que dar começo em tudo, com coragem, com determinação, em plena mata que abeira o caudaloso rio Grande” (FREITAS, 2004, p. 10-11). A decisão de recuperar a aventura de Paula e Silva decorreria, conforme mencionado anteriormente, da intenção do memorialista de

[...] evidenciar, tanto aos mais moços e aos que aqui chegam, vindos de outras plagas, o quanto já foi feito e o que ainda resta realizar [...] um convite para que todos compartilhem seus esforços, na tarefa de manter as tradições da cidade, alavancando, cada vez mais, dia após dia, os meios financeiros, e, mais que isso, os intelectuais, sociais, políticos e econômicos, de sorte a que Frutal aporte, cada vez mais intensamente, ao seu histórico destino (FREITAS, 2004, p. 11. Grifos meus).

Não se pode perder de vista que Freitas escreve desde a primeira década do século XXI. Ou seja, no período em que o impulso utópico mobilizava grupos políticos e econômicos dominantes, o cronista revisita o passado com a intenção de estabelecer um continuum e de reafirmar o destino grandioso da cidade, que necessita ser completado: o quanto já foi feito e o que ainda resta realizar. Para que Frutal aporte ao seu histórico destino, todos devem se empenhar: este é o chamado do tempo presente.

Apesar da expressão contundente empregada pelo cronista, ao exaltar os feitos do fundador – partiu do nada –, José de Freitas não ignora presenças anteriores à de Paula e Silva nas terras em que surgiria a cidade de Frutal. O quinto capítulo de sua obra, inclusive, é dedicado ao estudo dos indígenas no Sertão da Farinha Podre.142 Mas outras pessoas também teriam se estabelecido anteriormente no território:

142 Sobre a presença indígena na região, Lourenço esclarece: “Os caiapós meridionais, nome que designava grupos

do Tronco Macro-Jê, linguisticamente aparentados, habitavam o Triângulo Mineiro e mais uma vasta área correspondente aos estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, à época da chegada dos primeiros colonizadores luso-brasileiros [...]. No Triângulo Mineiro, houve tanto o extermínio das populações caiapós, quanto sua caboclização [aculturação]. A região [...] passou, todavia, por uma experiência histórica pouco comum. Aqui, foram assentadas populações indígenas vindas de outras regiões, como de Goiás [...] e do Mato Grosso [...] em aldeamentos criados pelo colonizador. Estes consistiram, na verdade, na primeira forma de ocupação colonial da região, que começou em 1730” (LOURENÇO, 2010a, p. 43-48).

O sertanista não foi, certamente, o primeiro homem branco a conhecer as terras virgens que ladeiam o rio Grande. [...] antes de Paula e Silva chegar às margens do rio Grande, lado mineiro, já havia moradores na região: seu conhecido Antônio Vieira Velho, filhos, noras e genros e seu concunhado, José Machado da Silveira e família, já se achavam arranchados ali, desde 1825 (FREITAS, 2004, p. 55).

Em Desbravadores, Álvaro de Paula também assinalara: “Com toda a certeza, posso afirmar que, pelo menos, as famílias de Antônio Vieira Velho e José Machado fazem parte dos primeiros povoadores do município de Frutal, as quais se estabeleceram nas fazendas conhecidas por São Bento e Ressaca, por volta de 1825” (2004, p. 50). Na perspectiva de Freitas, contudo, a intencionalidade seria o diferencial de Paula e Silva, a quem o memorialista – como o faz Jeová Ferreira: “tão consciente de seu dever [...], que fundou uma cidade neste sertão triangulino” (2002, p. 40) – atribui consciência de uma missão histórica:

Com toda certeza, contudo, foi o primeiro que ali chegou com a intenção de construir seu rancho de pau-a-pique, coberto de indaiá, fincar raízes, começando as lides agrícolas, fazendo a capela, atraindo outros moradores, alavancando o soerguimento do povoado, arraial, distrito, vila e que, depois, chegaria à cidade: Frutal. [...] Consciente de sua missão [...] Antônio de Paula e Silva arregaçou as mangas e começou seu trabalho, dia a dia [...]. Era preciso [...] dar começo ao povoado que, há algum tempo, vem intencionando instalar (FREITAS, 2004, p.55-61).

Como se pode verificar, mesmo que a presença de outras pessoas seja reconhecida, predomina no memorialismo a concepção de que a cidade de Frutal é decorrência do ideal de um sujeito dominante, resulta da ação de uma personalidade política ou mesmo se confunde com ela: “Antônio de Paula e Silva, que era homem de certa cultura, pois sabia ler e escrever [...] desenvolveu em Frutal o papel [...] de grande líder” (PAULA, 2004, p.52), contando com o “apoio de Dona Jacinta, de seus [...] filhos e muitos escravos” (FREITAS, 2004, p. 56). Liderança e cultura são os atributos que o fazem reconhecido como aquele que concebe e delineia a cidade. Carmo do Fructal emerge, então, como uma espécie de utopia de Paula e Silva, aclamado como indivíduo empreendedor, “idealista e cheio de anseios políticos [...]. Arrebatado pela inspiração, acreditou que o lugar seria próprio para se fundar um povoado” (FERREIRA, T. 2003, p. 27). Os demais personagens compõem a cena histórica na condição de auxiliares ou são reduzidos a meros espectadores.

um ou outro nome novo em contextos distintos, mas a representação permanece a mesma: a rigor, a cidade somente existe como expressão de uma ou algumas figuras dominantes. Esta imagem é percebida e reiterada pelo idealizador da Cidade das Águas. Em A biógrafa do bem, prefácio do primeiro volume de Respingos de História, de Terezinha Ferreira, ele escreve:

Ao final do livro [...] chega-se à conclusão absolutamente essencial: quem faz a história não são fatos, mas pessoas. E essa constatação quase óbvia faz ampliar ainda mais o sentimento de amor e até o orgulho que temos pela nossa terra, ao percebermos que quem a fez e quem a construiu foram pessoas de bem, comprometidas, no passado, com o nosso futuro [...]. Não é apenas um livro de registros históricos, mas uma obra essencial para entender as especificidades que formam o caráter frutalense (e até como forma de provar que este caráter próprio existe). [...] O resgate de cada um para o primeiro plano da história serve para mostrar que as raízes e o passado de Frutal são sólidos, forjados em personalidades fortes, construídos em biografias invejáveis (SILVEIRA, 2003, p. 3-6. Grifos do autor).

O reconhecimento de que pessoas – no plural – fazem a história da cidade pode soar, para além da obviedade, como algo louvável. Mas é preciso lembrar que a afirmação não intenciona incluir todas as pessoas, mas as de bem, reforçando a ideia de que a cidade resulta de biografias invejáveis. Tal compreensão da realidade naturaliza a visão de que os sujeitos não participam da história ou não tomam parte da cidade de forma assemelhada, não lhes cabendo, por conseguinte, papéis políticos iguais e intercambiáveis. Na medida em que se afirmam relações de domínio e submissão, o jogo político delineado se instaura na contramão da pólis, cujo diferencial, segundo Vernant (1986), residia na corporificação de um espaço social vivo, no qual os assuntos de interesse comum eram debatidos abertamente por sujeitos assemelhados que estabeleciam entre si relações de reciprocidade.

Em sentido oposto, a cidade, conforme representação dos cronistas, não resulta da totalidade dos grupos humanos que a constituem, mas emerge de um gesto utópico, como ato de um criador, um personagem iluminado – Paula e Silva –, e se inscreve na história, a partir de 1886, graças à transferência de um benemérito cidadão de Uberaba para Frutal, mais uma biografia invejável, uma personalidade forte que irá contribuir para formar o caráter do frutalense: Joaquim Antônio Gomes da Silva.

Natural de Pitangui (MG), Gomes da Silva (1838–1915), depois de uma temporada no Rio de Janeiro, residiu, por muitos anos, em Uberaba, atuando como jornalista, advogado

provisionado, escritor e como professor de latim, francês e música, no Collégio Piedade, do qual fora proprietário.143 Ainda em Pitangui, envolvera-se em certames políticos, fundando a Sociedade Amor da Pátria (1863), com o objetivo de apoiar o governo brasileiro na polêmica Questão Christie144. Durante a Guerra do Paraguai (1865–1870), arregimentou soldados por meio da mesma sociedade. As iniciativas foram reconhecidas pelo imperador, que lhe concedeu a