• Nenhum resultado encontrado

No corpo a corpo com o texto: a leitura performática

CAPÍTULO II – RECEPÇÃO, VOCALIDADE E PERFORMANCE NA FORMAÇÃO

2.3 No corpo a corpo com o texto: a leitura performática

A leitura literária de uma forma geral e, especificamente, a leitura de poesia, possui relação com a voz, com a leitura em voz alta. A vocalidade possibilita a descoberta de ritmos e de jogos de palavras que se tornam mais perceptíveis ao ouvir. Contudo, além da voz, existe um corpo que se debruça, muitas vezes, inconsciente e involuntário, diante de uma performance. Há sempre um relato de pessoas que fecharam os olhos e dançaram ou caminharam livremente como se estivessem levitando ao som de uma canção ou de um verso declamado. Há ainda aqueles que choraram, que sorriram e se emocionaram diante de uma peça teatral ou de um show popular. Essas emoções, gestos e sensações são performances e permitem observar a recepção a partir delas.

Como destacamos no primeiro capítulo, ao longo do tempo – numa época em que não existia o material impresso – o conhecimento se expandiu através da interação e do compartilhamento de experiências e vivências sociais por meio da voz. Nos contextos mais populares a oralidade teve papel fundamental no apego à leitura. As grandes narrativas eram/são aprendidas fora dos muros da escola. Em todas as civilizações a leitura na prática cotidiana sempre esteve ligada à voz.

Vimos que na arte das poéticas orais a relação leitor/texto se estabelece de forma vocalizada. Os poetas nas performances são tomados pelos vários corpos que conseguem desenvolver a partir de um único texto, dos quais podem ser narradores, dançarinos, atores e cantores em um único espetáculo com o auxílio do corpo e da voz. O canto, principalmente no jogo do improviso, nos desafios rimados, através das performances vocais, é algo característico de manifestações como a cantoria de viola, a embolada, o aboio e o coco de roda.

Nos eventos os declamadores se “apropriam” dos textos e apresentam especialidades de acordo com a sua experiência. Um mesmo texto pode ser lido e apresentado com tonalidades diferentes e influenciar na recepção do público que assiste à leitura performática.

Um bom declamador traz aspectos teatrais, o uso da voz, do corpo e das expressões faciais. Alguns grupos ainda utilizam a dança para expressar o que a poesia sugere. Outro aspecto é ambientação do espaço para a experiência, vestir-se de acordo com o tema, calçar uma alpercata, colocar um chapéu de couro, um gibão e um bornal de caçador. Nos festivais de cantoria de viola, os apologistas, antes de declamarem uma glosa, para apresentar a dupla de cantadores, sempre trazem uma pequena descrição de cada poema recitado.

No entanto, mesmo o leitor que lê sozinho no quarto, em alguns momentos a experiência poderá ocasionar no corpo algum efeito diante do lido. A performance vocal e corporal pode estimular sentidos e instigar nos leitores/ouvintes percepções sensoriais na recepção. Para Zumthor (1993, p. 24), a “performance constituiria uma leitura pública feita por um intérprete sentado, ou mesmo de pé, na frente de seu facistol”. Zumthor (2014, p. 51) destaca que,

Performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata. Nesse sentido, não é falso dizer que a performance existe fora da duração. Ela atualiza virtualidades mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor clareza.

Nessa perspectiva, a leitura performática se constitui da incorporação do texto, de tomá-lo para si, de dar ênfase aos efeitos vocais e utilizar todos os recursos expressivos da linguagem. A performance pode ser individual, porém, sugere um ato coletivo, no qual os participantes estimulam sentidos por meio da experiência e a relação com a voz dinamiza a vivência. Ao realizar uma leitura, preocupado apenas com informações, estamos deixando de vivenciar um longo processo de experimentação, de descoberta, da existência de outras formas de ver as coisas. Ao vivenciar uma performance, mesmo que não façamos parte dela na apresentação, estamos participando da experiência, pois, como defende Zumthor (2014, p. 52),

A performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido. Quando do enunciado de um discurso utilitário corrente, a recepção se reduz à performance: você pergunta o seu caminho, e lhe respondem que é a primeira rua à direita. Uma das marcas do discurso poético (do “literário”) é, seguramente, por oposição a todos os outros, o forte confronto que ele instaura entre recepção e performance. Oposição tanto significativa que a recepção contempla uma duração mais longa.

Do ponto de vista da recepção, a performance oferece dinamismo à leitura e a voz tem um poderoso efeito sobre quem assiste, escuta e executa, basta observarmos os vários relatos de pessoas que aprenderam de cor os poemas cantados ou declamados pelos seus mestres. Essa relação se concretiza em dois modos possíveis de recepção – dizer e ouvir, ler e escutar ler, dizer ou escrever, ouvir ou ler – numa ação vocal que inclui produção, recepção e comunicação em um único momento ou espaço de recitação, no qual o leitor está em plena ação a partir da adaptação da obra à leitura vocalizada e performática dos portadores da voz.

É importante apontar que não devemos valorizar a leitura em voz alta em detrimento da leitura silenciosa, cada momento pode ser condicionado pelo texto de forma a chegar a uma determinada experiência. A leitura performática e vocalizada não impõe nenhuma fórmula específica, mas aponta caminhos para que o leitor descubra seus próprios e o professor segue como um guia que sugere ritmo, expressões e formas de experimentar a palavra poética em vocalidade e performatividade. Segundo Oliveira (2018, p. 252),

Experimentar o texto do ponto de vista da performance é lê-lo em voz alta (e em movimento) de forma inventiva, traçando diferentes percursos com o texto na sua vocalização, de modo a ir tateando, por meio do corpo e da voz, possibilidades interpretativas, as quais podem se revelar como descobertas inéditas que, talvez, não apareceriam se se tivesse acessado o texto somente pela via analítica.

A partir dessa perspectiva, a autora sugere dois modos de leitura em voz alta, uma em que a vocalização é previamente planejada e outra em que a vocalização surge como jogos de improvisação. Na leitura planejada, o professor monta estratégias de ler o texto em voz alta, dando ênfase a determinados aspectos do texto, decidindo antecipadamente as modulações das vozes, enfocando modos de leitura, planejando pausas, sussurros e outras maneiras que o texto provoca e, para isso, indica que o mediador elabore um “mapa sonoro”. No mapa sonoro o mediador poderá sugerir um texto para ser vocalizado, escolher um poema e criar estratégias para que os alunos leiam na frequência dos aspectos indicados.

No modo de leitura com jogos de improvisação, o professor deixa que os leitores descubram, nas suas experiências, as próprias formas de ler em voz alta. O aluno pode enfatizar determinados aspectos como: sílabas fortes, velocidade da leitura, o ritmo, a tonicidade da fala, o canto, entre outras possibilidades. Contudo, o acompanhamento do professor é necessário para que não fuja totalmente do que oferece o texto.As duas propostas de leitura poderão ser utilizadas numa mesma experimentação. Quando o leitor já possui uma experiência efetiva com o texto, a segunda proposta é uma ótima possibilidade; já aos leitores

menos experientes, a leitura planejada é mais interessante. O importante é o acompanhamento de um mediador, nesse caso, o professor. Para isso, é fundamental que esse professor/mediador seja um leitor com um repertório variado e conheça os recursos que podem auxiliar nas estratégias de leitura em performance.