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Todas as manifestações e atitudes concretas do Conselho Mundial de Igrejas com relação ao meio ambiente se dão sob a motivação espiritual da fé no Deus criador, que, no princípio, criou a vida. E Deus criou em diálogo em cooperação com as próprias criaturas e criou a vida em contínua evolução para um destino de plenitude. Esta plenitude, no entanto, não é algo pronto ou estático nem infinitamente longínquo, mas que está na criação, em sua raiz. Pois, desde o princípio, quando Deus criou a vida, a criou para a evolução, para a plenitude e não para degradação. É, pois um olhar e uma forma de sentir a criação, da qual somos parte, com este querer sua plenitude de justiça e paz.

Para o CMI, cuidar do bem estar de toda a criação, se tornou uma importante e significativa dimensão do discipulado cristão dos tempos atuais. São os imperativos bíblicos que abrem os olhos das igrejas para promover a convivência num relacionamento justo com todas as formas de vida. E este espírito de comprometimento com a criação, é animado pelo testemunho de pessoas que vivem próximas e em conexão com a Terra, de modo especial, os povos indígenas e mulheres. E “o desafio é encontrar formas em que as comunidades humanas possam viver em uma relação sustentável com a criação, com todas as pessoas desfrutando a plenitude da vida”. Isto é, desfrutar, preservando, a plenitude da criação.73

“Toda a humanidade é feita à imagem e semelhança de Deus e toda a natureza traz as marcas de Deus”.74

Por isso, devemos viver com disposição para a equidade, reconhecendo igualmente o direito de cada ser. Ao ler o Salmo 104, podemos perceber que tudo é obra da sabedoria de Deus. Não somente o ser humano, mas todas as criaturas, das quais a Terra está repleta, todas são obras da sabedoria de Deus, tudo é criado em seu espírito. “Quão numerosas são tuas obras, Iahweh, e todas fizestes com sabedoria! A Terra está repleta das tuas criaturas” (Salmo 104: 24). Como diz o teólogo ortodoxo Chryssavgis John, “o Espírito de Deus revela a imagem de Deus na criação e que não é, simplesmente, um reflexo, mas a perfeição dos

céus”. Do ponto de vista bíblico, a Terra e toda a sua biosfera, tudo o que nela contém, nos foi

73 Cf. WCC. Message on the occasion of “Earth Day”. (North American churches, 22 April 1999). Disponível em:

<http://www.oikoumene.org/en/resources/documents/wcc-commissions/international-affairs/environmental- justice/message-on-the-occasion-of-earth-day.html> Acesso em: 27 set. 2011. p. 3863.

74

WCC. A Justice Statement regarding Climate Change from The World Council of Churches (1/11/2000). Disponível em <http://www.oikoumene.org/en/resources/documents/wcc-programmes/justice-diakonia-and-responsibility-for-

creation/climate-change-water/the-atmosphere-as-global-commons-responsible-caring-and-equitable-sharing.html> Acesso em: 27 set. 2011. p. 6691.

concedida como um dom, uma herança de Deus, para ser o Reino de Deus. Mas esta herança dada por Deus, ela se efetiva na equidade, no momento em que seja respeitado o direito e a dignidade de todas as criaturas. Por isso, ecologia é uma questão de justiça, é o estado de paz entre todas as criaturas.75

Podemos nos basear na parábola em que Jesus compara o Reino de Deus a um pequeno grão de mostarda. A pequena semente, sendo cultivada na terra, cresce e se torna uma árvore imensa e em seus galhos acolhe a todos os pássaros e dá aos seres humanos a sombra fresca (cf. Marcos 4:30-32). Nesta herança que nos é dada por Deus, podemos saciar nossas necessidades, mas não cabe o luxo e a opulência. Por isso, o jovem rico (Marcos 10:17-22), rejeitou esta herança, não se sentia capaz de viver os princípios do Reino de Deus, como a equidade, que inclui as pessoas e toda a natureza, marca e sinal da imagem de Deus.

A Terra e todas as suas formas de vida, “os povos e suas culturas, a terra, a água e a

semente... tudo que se move é sagrado”. Tudo revela Deus. Por isso, nenhum sistema

econômico que gera injustiça por suas atividades desonestas pode ser “abençoado, legitimado ou tolerado em nome de Deus”. Pela fé no Deus criador, somos impelidos a promover a

justiça e a paz com todas as criaturas. Todo o mundo é habitado por Deus criador e defensor da vida. Por isso, a luta pelo direito e a justiça são obras da criação de Deus. É, pois, através das diversas formas de militância ecológica, política e social que as pessoas de fé podem afirmar que Deus habita o mundo. A Bíblia descreve a criação mostrando que quando Deus vê

que tudo é bom, tudo realmente é bom. Deus disse “viva” e tudo viveu. “Deus disse..., que

exista, que se ajuntem, que produza, que existam, que fiquem cheias de vida, façamos”. “E

assim se fez”. Tudo, portanto, criado em comunicação com o criador, que criou todas as

criaturas, dando a todas e a tudo, a plenitude de vida. Tudo vive, porque Deus disse “viva”.76 Através do documento ÁGAPE, pela equipe de Justiça, Paz e Criação, o CMI declara que “o mundo é um ícone de Deus. Cada clamor da Terra e do seu povo a sofrer desafia as

igrejas a buscar a transfiguração que Deus, em amor, realiza na humanidade e na criação”. E

somos colaboradores de Deus na criação, na medida em que atuamos em defesa da vida, testemunhando o amor justo e generoso de Deus. E na sua graça,

75

Cf. Idem

76

Cf. CMI. Sessões plenária: Justiça econômica. Império e Religião: evangelho, ecumenismo e profecia para o século XXI.

Anotações apresentadas na IX Assembléia - por Nancy Cardoso (16/02/2006) Disponível em: <http://www.oikoumene.org/po/resources/documents/assembleia-do-cmi/porto-alegre-2006/2-plenary-

Somos encorajados a não perder nossas esperanças e não desistir de confrontar a realidade ao nosso redor com nossa visão de uma economia da vida. O sagrado presente da vida que é dádiva da graça de Deus, não nos será tirado. Ao invés, ela é a própria base e poder para criar e viver alternativas contra as forças da morte e da destruição. Ela deriva seu poder do ágape, do amor do Deus triúno que permeia toda a Criação. Este foco sobre ágape salienta que a Terra e toda a vida têm suas origens em Deus e pertencem a Deus. Elas não são propriedades da humanidade, de modo que pudessem ser transformadas em commodities (Lv 25:23; Sl 24:1). A Criação não pertence aos seres humanos, mas os seres humanos pertencem à Criação, e a Criação é de Deus. Relações de ágape refletem que toda a vida tem sua raiz comum na graça gratuita de Deus e no amor vivificador de Deus. Graça é o poder que Deus tem de sustentar e renovar a Criação e de nos reconduzir da morte para a vida. A discriminação, exclusão e distribuição desigual da riqueza e do poder negam os valores da comunidade de ágape e violam o mandamento de amar a Deus e ao próximo.77

O texto bíblico que trata da criação, o Livro do Gênesis, não é nenhum livro científico, mas um texto poético que confirma o universo como criação de Deus. Descreve o princípio explicitando a plenitude da vida gerada por Deus. Em Gênesis encontramos duas narrativas sobre a criação. A primeira, Gn 1:1-2,4a, uma narrativa atribuída à fonte sacerdotal, é mais abstrata e mais teológica que a segunda, que se encontra em Gn 2:4b-25. A primeira segue um esquema de sete dias e conclui com o repouso sabático.78 Praticamente todos os povos e culturas possuem narrativas para explicar o sentido da vida. E, certamente, não encontraremos concordâncias lógicas da ciência dessas narrativas com as ciências de hoje. São relatos que trazem a marca de sua época, mas os ensinamentos que revelam têm um valor perene.79

Desde o princípio, a criação tem a energia cósmica (de cosmos) e a força criadora do Espírito de Deus, que continua presente e atuante na criação. Pois, na reflexão teológica cristã, a criação começa com o ato do Espírito de Deus pairando sobre as águas, na imagem de um vento que soprava sobre elas (cf. Gênesis 1:2). A presença do espírito criador sobre o caos marca o início da criação.80 O Espírito é o respiro, a inspiração e a vitalidade da criação, que

77

CMI. Globalização Alternativa Comprometida com a Humanidade e o Planeta Terra (AGAPE). JPIC, Genebra 2005. Disponível em: <http://www.oikoumene.org/fileadmin/files/wccassembly/documents/portuguese/agape_portuguese.pdf> Acesso em: 11 jul. 2011. p. 10.

78

Cf. BÍBLIA SAGRADA. A Bíblia de Jerusalém. Comentários de rodapé (Gn 1,3)

79Olhando para as narrativas do Gênesis, percebemos, entre outros elementos importantes, que, “pela fé na criação boa

afirma-se a certeza de que o cosmos é mais forte do que o caos, porque Deus, seu Criador tem o senhorio sobre o absurdo e

a morte”. Ao lermos o Gênesis, percebemos que “cada coisa, desde as estrelas, as plantas, os animais, até os seres

humanos, vem carregada de excelência e de sentido, porque guarda em si a marca registrada de Deus”, que caminha e vive intimidade com as criaturas. As duas narrativas bíblicas da criação, no livro do Gênises, apesar de apresentarem certa

diferença, no fundo querem fazer a mesma afirmação. Em ambas, “o propósito originário é fazer a profissão de fé sobre a bondade do universo”. Por ter sido criado por Deus, o mundo e todas as suas formas de vida estão protegidos contra todo o

tipo de ameaças. (cf. BOFF, 2004. p. 57-60).

80

Cf. WCC. Water as a Gift and Right. Disponível em: <http://www.oikoumene.org/fileadmin/files/wcc- main/documents/p3/water_as_gift_and_right.pdf> Acesso em: 28 set. 2011. p. 3-4.

continua permanentemente viva, unida ao criador. O Espírito é a sabedoria de Deus que guia a sua criação no caminho da justiça e da paz, na luta em defesa da vida criada por Deus. A criação não é algo que só aconteceu apenas no princípio (creatio prima), como argumenta o diretor do programa de Mudanças Climáticas do Conselho Mundial de Igrejas, Guillermo Kerber, mas é algo que está acontecendo agora (creatio continua). “Por isso, ser cristão hoje

implica em reconhecer a injustiça ecológica como parte da injustiça estrutural”.

“Afirmar um universo em expansão e em evolução e que a criação está em Deus e que Deus está na criação significa reconhecer a presença do Espírito Santo que constantemente recria a Criação. Ela é um processo permanente, não algo que ocorreu simplesmente no passado, mas sim algo que está ocorrendo no presente e irá ocorrer no futuro (...). Em um diálogo com a nova cosmologia e a ecologia, o horizonte libertador da teologia, característico da teologia latino-americano deve se ampliar, reconhecendo que toda a criação deve ser libertada, começando pelas comunidades mais vulneráveis, os pobres, os indígenas, levando-se em conta também as culturas e as espécies que estão desaparecendo”.81

O Gênesis apresenta a criação num audacioso otimismo, expresso na repetição da afirmação de que a obra é boa. E esta bondade da obra criada por Deus precisa ser recuperada, tanto no sentido prático, de se recuperar a vida degradada, como na maneira de ver e conceber o mundo. É preciso apostar na capacidade de regeneração da vida.

Em sua obra “Religiões e Ecologia”, Marcial Maçaneiro, comenta sobre o caminho da ecoteologia do CMI. Diante de uma trajetória marcada por comportamento devastador da humanidade, estreitamente afinada com o cristianismo no preceito bíblico “dominai e

multiplicai”, o CMI passou a buscar uma releitura da Bíblia. Percorrendo o caminho do olhar

ecológico, o CMI busca compreender o sentido original e verdadeiro do termo “Bereshit” (que se refere ao princípio, o início, a gênese da criação de Deus). E assim, o CMI vai muito além da compreensão sobre o princípio, “Bereshit”, firmando sua reflexão em “Shalom”, isto

é, “a plenitude de justiça e paz com a criação”.82

O autor citado acima e que volta em futuras citações neste texto, foi referência nas leituras preparatórias para a nossa pesquisa, visto que ele faz uma síntese da ecoteologia do CMI. E foi a partir desta que traçamos o objetivo do nosso trabalho no método Ver-Julgar-Agir. E assim proseguimos na reflexão teológica dos documentos do CMI, passando para o conceito de que os recursos naturais são dons de Deus, que devem ser compartilhados de forma justa e sustentável.

81

KERBER, Guillermo. Ecologia e nova cosmologia: implicações teológicas. Em: IHU Online (5/4/2010). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=29&task=detalhe&id=31160> Acesso em: 28 set. 2011.

82