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No princípio era a elegia: algumas especulações.

As origens e a história antiga da elegia

1. No princípio era a elegia: algumas especulações.

Desde que o homem é homem, consciente de si mesmo mediante o pensamento simbólico e a linguagem capaz de traduzi-lo, desde que tem consciência dos efeitos da passagem do tempo sobre si e sobre os outros, e do carácter transitório da espécie a que pertence, que há meditação sobre a morte e, logo, representação da morte. O problema também se pode colocar ao contrário. A primeira evidência de uma consciência de si, isto é, de que cada homem se considera um indivíduo separado e distinto de outros indivíduos, poderá terá sido a experiência da morte do outro. Não é por acaso que a maioria dos nomes cimeiros da paleantropologia estabelece um elo directo entre o nascimento e afirmação da autoconsciência e as primeiras evidências do sepultamento sistemático dos mortos pelo Homem no Plistoceno Superior1. As provas mais antigas até hoje descobertas datam de há cerca de 100.000 anos e encontram-se nos esqueletos fossilizados de vinte e oito indivíduos da espécie Homo heidelbergensis – conjectura-se que o antepassado directo do Homo neanderthalensis – inumados na cova sepulcral de Sima de los Huessos, situada na Serra de Atapuerca, em Espanha, província de Burgos. Ao evidenciar um depósito intencional de restos mortais em alternativa ao simples abandono dos cadáveres, o culto das ossadas praticado pelo Homem de Heidelberg e pelo seu descendente Homem de Neandertal constitui o primeiro testemunho de preocupações metafísicas por parte do género Homo. Como escreve Henry de Lumley, assim que começaram a celebrar os seus defuntos, “les hommes de la Sima de los Huessos par exemple ont déjà accédé à ce qui fait le propre de l’homme: la conscience de son humanité”2. Assim se inaugura, para André Leroi-Ghouran, um “mundo novo”: o do pensamento simbólico, cuja emergência coincide com o momento em que para a ciência paleontológica o cérebro atinge o nível actual3. Preocupações metafísicas indissociáveis, é certo, do medo inspirado pelos mortos e da consequente necessidade

1 Plistoceno Superior que equivale, grosso modo, ao Paleolítico Médio dos paleoantropólogos. Cf.

CLARK, Grahame – A Pré-História. 2.ª ed. rev. e aumentada. Trad. de Edmond Jorge. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p. 44. Uma das primeiras e mais sólidas evidências surge em 1939 com a descoberta por Carlo Alberto Blanc, na caverna Guattari, situada no Monte Circeu, de um crânio neanderthalense que “jazia no solo, aparentemente cercado de pedras e onde era ainda possível notar, junto às paredes, ossadas de animais cujo agrupamento parecia intencional” (cf. LEROI-GOURHAN, André – O gesto e a palavra: técnica e linguagem. Trad. Vítor Gonçalves. Lisboa, Edições 70, 1980, p. 112).

2 LUMLEY, Henri de – La grande histoire des premiers hommes européens. Paris, Éditions Odile Jacob,

2007, p. 239.

3 LEROI-GOURHAN, André – Op. cit., p. 114. Cf. também LÉVÊQUE, Pierre – Introduction aux

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de domesticá-los, mantendo-os a uma distância capaz de assegurar um compromisso entre a sua ausência e a sua presença, num ponto de equilíbrio entre as suas qualidades nefastas e benfazejas. Parece indiscutível que, em poesia, é na elegia que as representações e antevisões da morte se sentem em casa. O que nos leva a especular se a elegia, neste ponto entendida como produto de um complexo de representações simbólicas respeitantes à morte, não será tão antiga quanto o conhecimento da morte, queremos dizer, se o seu embrião não remontará à Pré-História.

Escreve Michel Barbaza que “la sépulture intentionelle, lorsqu’elle est attestée, peut traduire la manifestation d’une attitude particulière face à la mort et donc face à la vie et sa finalité”4. As oferendas acomodadas nas fossas funerárias testemunham a crença num futuro após a cessação da existência física e denunciam por isso uma angústia metafísica face ao vazio e ao nada, que, de forma a não tornar-se insuportável, conduz ao enfrentamento da morte, à recusa do seu nada e ao imaginar-se um outro mundo, um além que garanta uma continuidade aos mortos. Tal seria impossível sem atribuir uma função consolatória aos rituais fúnebres, visando-se um apaziguamento da angústia quer perante o destino do próximo quer perante o destino individual. Como dissemos, tal atitude configura-se ainda antes do reinado do Homo sapiens dadas as inúmeras descobertas que permitem atribuir ao Homem de Neandertal, homo sapiens

neanderthalensis, as primeiras práticas sepulcrais5. Tal como acontece hoje em dia, os indivíduos pré-históricos do género Homo depositavam flores junto dos seus mortos. Numa sepultura exumada na gruta de Shanidar, no Iraque, “le corps d’un des neufs Néandertaliens découverts avait été déposé au sein d’un fosse tapissée de rameaux de pin puis recouvert de fleurs”6. Eis um gesto que, em consequência, nos envolve ou torna cúmplices de indivíduos aos quais “ganhámos” a corrida há cerca de 30.000 anos (altura em que se extinguiram), e nos solidariza num fluxo imemorial e continuado de humanidade em que participaram e participam todos os indivíduos que já existiram,

4 BARBAZA, Michel – Le culte des morts et l’essor de la pensée symbolique. In GUILAINE, Jean (dir.)

La Préhistoire: d’un continent à l’autre. Paris, Larousse, 1989, pp. 85-87.

5 Para Henry de Lumley, “la grand invention des Néandertaliens est la sépulture. Pour la première fois, il

y a 100 000 mil ou 80 000 ans, avec les plus anciens Néandertaliens d’Europe occidentale, les Hommes enterrent leurs morts” (LUMLEY, Henry de – L’homme premier: préhistoire, évolution, culture. Paris, Éditions Odile Jacob, 1998, p. 143). É em 1908 na gruta de La Chapelle-aux-Saints, próxima de Brive-la- Gaillarde, a meio caminho entre Toulouse e Clermond-Ferrand, que, de acordo com Michel Barbaza, os abades Bouyssonie e Bardon descobrem o esqueleto de um homem de Neandertal que fora intencionalmente inumado em conexão anatómica com os ossos de uma pata de bovídeo, evidenciando um ritual fúnebre (cf. BARBAZA, Michel – Le culte des morts et l’essor de la pensée symbolique, op. cit., p. 86).

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extravasando as fronteiras da espécie sapiens e que tem por base o fenómeno da perda dos entes queridos. Não só os mortos eram envolvidos ou deitados em flores, como, em muitos casos, inumados em posição de decúbito lateral forçado, sugerindo a posição fetal e o possível gérmen de uma reencenação das origens através do regresso ao seio da Mãe Terra, tema tão caro à elegia. Em La Ferrassie, na Dordonha, uma das onze sepulturas descobertas albergando os restos de um homem, uma mulher e várias crianças – verdadeira necrópole – foi encontrada com uma enorme pedra a cobri-la, no que prefigurava um túmulo ou jazigo. Para não falar do achado de fossas escavadas na gruta de Wadi el Mughara, na Palestina, nas quais os corpos foram depositados juntamente com alimentos e artefactos de sílex, o que prenuncia, na etapa do Homem de Neandertal, os preparativos dos egípcios com vista ao mantimento dos faraós e altos dignitários na viagem para o outro mundo. Seja como for, tudo isto é evidência de uma preocupação face ao corpo do próximo, que segundo alguns paleontólogos, no meio de muita controvérsia, mas com base em vestígios achados em Chou-Kou-Tien, perto de Pequim, remontaria mesmo aos tempos longínquos do Sinantropo, também conhecido pelo nome de Homem de Pequim. Esqueletos fósseis do Homem de Cro-Magnon descobertos no complexo de cavernas de Balzi Rossi, na Ligúria, apareceram salpicados de ocre vermelho, “a cor do sangue, símbolo da vida”7, apontando o caminho a uma visão estético-religiosa. Tal cuidado dedicado ao cadáver do próximo implica uma crença, por mais rudimentar, na persistência de um élan vital. O culto dos mortos vai de par com o fortalecimento do sentimento de comunidade e reforça-se à medida que aumenta a coesão dos grupos de homens primitivos. No seio do grupo, o indivíduo, como ensina Lévêque, “apreende-se como descendente de antepassados que, de uma certa forma, continuam vivos”8. Sobrevivência dos mortos nos vivos que é um dos traços por excelência da elegia. Os mortos passam então de mortos a antepassados, é- lhes atribuído um novo argumento e um novo papel. Ao serem “incorporados no mundo das potestades”, passam a ser antepassados protectores, promovidos a génios tutelares, fenómeno a que não é decerto estranho o facto de serem sepultados no interior das cavernas que serviam de habitação, quando podiam ser simplesmente inumados longe dos vivos (sê-lo-iam a partir do momento em que começaram a inspirar temor supersticioso e a ameaçar com malefícios)9. Os espíritos dos defuntos (porque uma vez

7 Cf. BARBAZA, Michel – Op. cit., p. 87. 8 LEVÊQUE, Pierre – Op. cit., p.13. 9

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dispensados do corpo físico é de espíritos que se trata) passam a aguardar a reincarnação no seio da mãe natureza, “reincarnação que faz também parte da perpétua renovação do totem”10. Quer isto dizer que a perda individual é transformada num ganho comunitário. O totem é a primeira versão da “pathetic fallacy” cunhada por John Ruskin em 1856 na obra Modern painters. No Neolítico, quando as comunidades humanas se sedentarizam, anunciando a vitória sobre os modos de vida nómadas, a estabilidade dos locais de enterramento e o surgimento de “linhagens” domésticas abre caminho a um culto dos mortos organizado. As comunidade sedentárias, porque “libertas das angústias inerentes à vida de caçadores” exclusivamente preocupados com sobreviver à escassez de presas, ao frio e à exaustão implicados nas longas distâncias a percorrer no encalço das migrações animais ou aos perigos da própria caça, tornam-se “mais abertas aos problemas do destino individual e recusam durante mais tempo a morte”11. A morte deixa de ser apenas culpada para passar a ser suspeita. Os seres humanos passam a experimentar reservas face à morte. Ao fazê-lo, desautomatizam-na e libertam-na para o espaço do simbólico, do mágico e do religioso, fazem dela um objecto de cognição e reflexão cada vez mais complexo. Começam a ponderar se os seus estragos não poderão ser de alguma forma atenuados. Talvez algum consolo e algum conforto sejam possíveis em alternativa à resignada constatação da rotina da morte e da sua presença asfixiante no quotidiano. Talvez afinal se possa opor alguma coisa à morte, à sua “falta de critério” na “escolha” daqueles que têm de morrer, ao seu despropósito e injustiça (porquê as crianças, porquê primeiro o jovem e saudável, porquê o mais generoso ou o mais sábio, porquê o mais próximo, porquê este e não outro, porquê eu e não outro?). Os seres humanos vão-lhe opor a única coisa que há para opor: a vida, e a ideia de que a dura luta pela sobrevivência há-de ter alguma finalidade e algum sentido.

Estas hipóteses são, apesar de inspiradas em achados arqueológicos concretos e nas leituras que a partir deles os paleontólogos e antropólogos produziram, do domínio da especulação, e destinam-se a delimitar uma parcela no perímetro da aventura humana onde caiba a perda e a necessidade de a dizer e simbolizar (por forma a antevê-la e prepará-la), tentando mostrar que tal necessidade é intrínseca à nossa natureza e condição. Necessidade que continua a fazer sentir-se no nosso tempo, e que responsabiliza a elegia e os poetas que escrevem elegias. Quisemos deixar um elo de união entre o homem da Pré-História e o homem da e na História (ou da Pós-

10 Idem, p. 27. 11

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História...). Ao cabo de cem mil anos o homem moderno continua a ter de confrontar-se inelutavelmente com a experiência da morte e da perda. Corremos o risco de esticar esse elo para além do limite da sua flexibilidade no âmbito de um estudo sobre poesia. Regressemos ao laboratório do literário.

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2.

As origens da elegia.

Só, incessante, um som de flauta trila, viúva, grácil, na escuridão tranquila

Camilo Pessanha

Os verdes anos da elegia estão marcados acima de tudo pela heterogeneidade, para não utilizar palavras como caos e desordem. Abbie Findlay Potts escreve que após uma infância pastoral na Jónia, “the elegiac Muse went on to share the heroic enterprises of men with Calliope and originally led them into battle; with Erato it partook of their banquets and amorous adventures. She could poke fun like Thalia and clarify sorrow like Melpomene”12. O périplo da musa elegíaca pelos palcos da poesia ocidental não nos deve fazer esquecer, no entanto, que uma civilização longínqua e durante milénios estranha à Europa como foi a China – porventura até à notícia dada por Ptolomeu em 151 d. C. e à embaixada enviada por Marco Aurélio a Cantão quinze anos mais tarde – contava com poetas que entre os séculos XI e VI antes da Era Cristã já versavam os temas elegíacos que nos habituámos a considerar património da literatura ocidental e cuja génese identificamos com o aparecimento do dístico elegíaco na poesia Grega arcaica. A verdade é que no Shijing, recolha de poemas chineses arcaicos cujas datas de composição admitem um intervalo temporal tão extenso quanto os primeiros quinhentos anos da dinastia Zhou, deparamo-nos já com o símile dos homens partilhando o destino das folhas arrancadas pelo vento13, com as dores do exílio e o adeus ao país natal (vários séculos antes das Elegias do Ponto) vertidos, por exemplo, na “Lamentação sobre a capital” passível de ser atribuída ao cortesão K’iu Yuan, talvez o primeiro poeta chinês do qual conhecemos o nome, o qual inspecciona já o horizonte do alto de um promontório porventura lançando as fundações de um dos mais bem-sucedidos locus da lírica universal14, ou com o desconcerto do mundo em Song Yu, que se queixa de ter nascido fora de tempo, não tendo encontrado senão desordem na sua época15.

12 POTTS, Abbie Findlay – Op. cit., pp. 10-11.

13 “Folhas secas, folhas secas,/ O vento é que nos levanta/ Ah irmãos, meus irmãos,/ Cantai vós, eu de

seguida.// Folhas secas, folhas secas,/ O vento sopra-as pr’a longe/ Ah irmãos, meus irmãos,/ Cantai vós, depois sou eu” (Uma antologia de poesia chinesa: do Shijing a Nalan Xingde: cerca de 1000 a. C. –

Século XVII. Ant. de Gil de Carvalho. Lisboa, Assírio & Alvim, 1989, p. 32).

14 Cf. DEMIÉVILLE, Paul (dir.) – Anthologie de la poésie chinoise classique. Paris, Gallimard, 1992, p.

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Maurice Bowra, tendo em conta a desconcertante adaptabilidade da elegia na poesia grega arcaica, entendeu dispensar a concepção da elegia como pranto pelos mortos definindo-a simplesmente como uma canção acompanhada à flauta16. A identificação da elegia com uma “flute song” ou um canto acompanhado pela flauta é também aquela a que aderem alguns dicionários. No Dicionário de termos literários de Massaud Moisés lemos que a palavra deriva do grego elegeía, “vocábulo de obscura etimologia”, sendo mais verosímil, para Moisés, a “hipótese segundo a qual teríamos de remontar a um étimo arménio (elegn, elegneay), que significava ‘bambu’, ‘flauta de bambu’. A forma

élegos, raiz de elegía, consistiria na transcrição helénica daquele vocábulo e designaria

a flauta que acompanhava os cantos de luto e tristeza”17. A hipótese do étimo arménio

elegn foi levantada e defendida por Bowra em 1938. Acreditava o investigador que a

palavra “elegia” está etimologicamente relacionada com um antigo nome para flauta, “nome esse que sobrevive na palavra arménia para flauta, elegn-”18. De acordo com Peter Sacks, Bowra favorece esta proposta de derivação àquela que “relaciona a palavra com a frase Grega e e legoi, ‘falar bem de’”. Uma outra teoria etimológica, próxima à do e e legoi, envolve a frase ai ai legoi, ligando a elegia ao grito de dor de Apolo por Jacinto (“AI AI”, deixa Febo gravado nas pétala da flor do jacinto, nascida do sangue do filho de Amiclas19) ou ao pranto de Hércules por Lino, o filho da musa Calíope. Ao referir-se às origens misteriosas e obscuras da elegia, Dan Latimer diz-nos que essas origens parecem estar relacionadas com “um notável antigo chamado Lino” que teria sido “o mais notável músico da sua época ou de qualquer outra época anterior” e “cuja morte teria devastado de tal forma os povos da sua época que durante muito tempo se teriam ouvido todos os idosos, e até os bárbaros, lamentando ‘Lino, Lino!’, normalmente no tempo das colheitas”20; o nome Lino, “de acordo com J. M. Frazer, significaria originalmente algo como ‘alas’, e estava relacionado com o Fenício ai lanu, ‘woe to us’”21. Referências a este enigmático Lino encontram-se, indica Latimer, em

16 Cf. BOWRA, M. C. – Early greek elegists. London, Oxford University Press, 1938, p.5. 17 MOISÉS, Massaud – Op. cit., p. 167.

18 BOWRA, M. C. – Op. cit., p. 331. 19

Numa das mais memoráveis “metamorfoses” de Ovídio (X, v. 162-219), ferido mortalmente Jacinto, por quem Febo Apolo se enamorara, “eis que o sangue, que, derramado no chão, tingira as ervas,/ deixa de ser sangue e desponta uma flor mais esplendorosa/ que a púrpura de Tiro [...]./ Tal não bastou a Febo (foi, de resto, ele desta honra o autor):/ ele próprio inscreveu os seus lamentos nas pétalas. E ‘AI AI’/ passou a flor a ter inscrito, traçadas tais letras de lamentação” (OVÍDIO – Metamorfoses. Trad. de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa, Cotovia, 2007, p. 251).

20 LATIMER, Dan – The elegiac mode in Milton and Rilke: reflections on death. Bern: Herbert Lang;

Frankfurt: Peter Lang. 1977, pp. 6-7. Tradução nossa.

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obras tão diversas como a Cidade de Deus (XVIII, 14), no passo em que Santo Agostinho fala dos três poetas “teológicos”, Orfeu, Museu e Lino – o qual teria escrito poemas sobre os deuses; no Limbo dos não baptizados de Dante, onde também aparece ao lado de Orfeu e de Séneca, entre outros pagãos (Inferno – Canto IV); nos Amores (III, 9) de Ovídio, também emparelhado com a desdita de Orfeu, a quem nem valeu o dom de “dominar e paralisar com seu canto as feras” nem valeu o “pai” Apolo, esse mesmo, “diz-se, que cantava Lino no fundo dos bosques,/ que cantava ‘Ai, Lino!’, com a Lira a contragosto”22. Quer Pausânias quer Heródoto mencionam o lamento egípcio por Maneros, homólogo de Lino e reza a lenda filho único do primeiro rei do Egipto. A canção de Maneros é descrita por Heródoto como um pranto destinado a honrar e conservar a memória do infeliz príncipe, morto na flor da idade, e como a origem da “primeira e única” melodia dos Egípcios (II, 79)23. No célebre episódio da descrição do Escudo de Aquiles na Ilíada de Homero, um jovem vindimador entoa “o canto dedicado a Lino” (XVIII, 11)24. Já em pleno século XX o filho de Calíope faz uma aparição no final da “Primeira elegia” de Duíno:

Será vã a lenda de que outrora, ao chorar Linos, música primordial ousada repassou o torpor árido?,

de tal forma que só no espaço assustado, de que de repente partiu um jovem quase divino, é que o vácuo entrou nessa vibração que agora nos arrasta e consola e ajuda.25

22 OVÍDIO – Amores. Tradução, introdução e notas de Carlos Ascenso André. Lisboa, Cotovia, 2006,

p.119.

23 “Entre outros costumes dignos de menção eles têm apenas um canto – o de Linos – entoado na Fenícia,

em Chipre e em outros lugares; cada povo tem o seu nome para esse canto, mas trata-se do mesmo canto entoado pelos helenos sob o nome de Linos; por isso, uma das coisas estranhas do Egipto é saber de onde os egípcios tiraram o nome do canto de Linos; evidentemente eles sempre o cantaram. O nome de Linos no Egipto é Maneros” (HERÓDOTO – História. Intr. e trad. de Mário da Gama Kury. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985, pp. 112-113). Talvez se possam perceber no Livro do Génesis reminiscências deste pranto por Maneros. Tendo Jacob morrido no Egipto, o seu corpo foi trasladado para Canã acompanhado por um séquito constituído pela fina flor da realeza egípcia. Chegados ao lugar do sepulcro, por sete dias os egípcios verteram lágrimas por Jacob – “ubi celebrantes exequias planctu magnu” – e os cananeus, impressionados, deram àquele sítio o nome de Planctus Aegypti, “o Pranto do Egipto” (Gen 50,10).

24HOMERO – Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Cotovia, 2005, 565-572. Curioso que

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