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A sociedade medieval conheceu a coexistência de poderes que partilhavam a jurisdição sobre territórios e pessoas. Embora no plano teórico a articulação desses poderes devesse ser harmoniosa, a verdade é que as tensões e os conflitos afloravam em muitas situações, tornando esses poderes concorrentes entre si. A existência de uma rígida hierarquia social acentuava a tendência para os choques entre indivíduos e grupos, não obstante as representações sociais valorizarem uma ordem em que deveria prevalecer o equilíbrio e a complementaridade entre os diferentes estratos sociais. Se na representação da ideologia monárquica que se foi impondo progressivamente, sobretudo a partir do século XII com a recuperação do Direito Romano, a realeza e a figura do soberano ocupavam o cume da hierarquia social, com um poder que se deveria sobrepor a todos os outros, nem por isso deixava de haver um espaço e um conjunto de funções atribuído e reconhecido à nobreza. Á luz dessa ideologia monárquica, vertida para as crónicas régias, os nobres deveriam servir o rei como seus fiéis vassalos. E uma das áreas em que esse serviço mais directamente se manifestava era precisamente na ação guerreira.

Dos três estados que compunham a representação idealizada da sociedade (os

oratores, os bellatores e os laboratores), ao segundo, identificado com a nobreza, era atribuído a função guerreira, de defensora da comunidade e de combatente contra os inimigos externos. Estes combatentes, para quem se exigia dedicação, honestidade, honra, poderio e principalmente lealdade ao seu rei, eram também identificados como cavaleiros de boa linhagem, suficientemente abastados e não ocupados com qualquer tipo de trabalho manual.256 No dizer de Marc Bloch,“a própria vocação do nobre lhe proibia qualquer atividade económica direta. Ele pertencia de corpo e alma à sua função própria: a de guerreiro.”257

A nobreza participa e comanda esta cavalaria, tantas vezes descrita na cronística e nas canções de gesta do Ocidente europeu. Empresta-lhe a sua ideologia a ponto de, a partir do século XII, a instituição da cavalaria aparecer como expressão militar da nobreza. Desde então, um cavaleiro não é somente um guerreiro a cavalo mas sim um membro reconhedido da aristrocracia. No Ocidente medieval, cavaleiro torna-se título

256 MARQUES, Antonio H. de Oliveira - História de Portugal. Edições Ágora, Lisboa, 1972. Pág. 237. 257 BLOCH, Marc – A sociedade Feudal. Edições 70, Lisboa, 1998 Pág. 342

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nobilitário.258 E “a cavalaria deveria estar a serviço da fé cristã, para se impor perante o Isloã. Para isso, o cavaleiro deveria estar imbuído dos mais nobres ideais, pois esta era uma missão divina, e só os puros de coração deveriam ter acesso a ela. Assim, para que a cavalaria tivesse a elite dos homens, de onde ela deveria tirar seus combatentes? Ramón Llul é bastante claro: entre os nobres.”259

Na perspectiva Lluliana, no topo da pirâmide estaria o Imperador, e este título povoou o imaginário nobiliárquico ibérico nos anos 1256 -1275, quando Afonso X, o Sábio, se bateu, embora sem sucesso, por que lhe fosse reconhecido tal título, respeitante ao Sacro Império Romano Germânico. Numa concepção tipicamente feudal de divisão administrativa-governamental, os reis-cavaleiros e todo o corpo da nobreza deveriam auxiliar o imperador a manter as diversas ordens de cavalaria, a base do seu poder, e em alguns casos evitar até mesmo a ascensão das camadas não nobres da população ibérica aos postos da cavalaria (no contexto da Península, os chamados cavaleiros vilãos).260 Ramón Llul afirma que em tais situações, se necessário, dever-se- ia converter esses vilãos em senhores de gentes (ou seja em nobres), sustentados pelos

laboratori, que deveriam trabalhar a terra para que o cavaleiro tivesse tempo para guardar os seus caminhos, defendê-los e “reger as gentes”261.

Mas nem todas as classes podiam constituir uma nobreza. Para merecer tal estatuto devia-se, antes de mais nada, reunir duas condições: primeiro a posse de um estatuto jurídico próprio que confirmasse e materializasse a superioridade a que se aspirava e, em segundo lugar, era preciso que esse estatuto se perpetuasse pelo sangue. As excepções relativas a algumas novas famílias ou indivíduos que ascendiam a esse estatuto, mas sempre em número restrito e conforme normas regularmente estabelecidas.262 O autor chega a propor uma hierarquia idealizada para a cristandade conforme o esquema abaixo:

258FLORI, Jean, “Cavalaria” LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude - Dicionário temático do

Ocidente Medieval (1999) Coordenador de tradução de Hilário Franco Júnior. Volume I – Bauru SP. EDUSC. 2002 Pág. 192.

259 COSTA, Ricardo da – A Guerra na Idade Média, Um Estudo da Mentalidade de Cruzada na

Península Ibérica. Edições Paratodos, Rio de Janeiro, 1998. Pág. 144.

260 Idem Pág. 145.

261 LULIO, Raimundo. Libro del Ordem de Caballeria – Príncipes y Juglares. Buenos Aires. Espasa- Calpe, Argentina, 1949. Pág. 24.

75 IMPERADOR | REIS-CAVALEIROS | NOBRES ___________________|___________________ | | |

CONDES COMODOROS “VARVESORES”

|___________________|___________________| |

CAVALEIROS DE UM ESCUDO (ORDEM)

No entanto, na aurora dos descobrimentos, não havia uma cultura nem uma ideologia únicas, variando estas de acordo com os grupos sociais existentes; e a sua projeção e o seu desenvolvimento moldavam-se em formas culturais diversificadas. Podemos afirmar que na corte régia a cronística aí elaborada possuía um enfoque centrado nos reis e nos seus antepassados. Mas, para além destes, procurava-se enaltecer também uma cultura nobiliárquica, sobretudo voltada para a nobreza da corte, recuperando ideáis e os valores cavaleirescos, em que “a cavalaria representa um ornamento honorífico que se acrescenta a nobreza e que herda conotações ideológicas adiquiridas ao longo do tempo.”263

Distinguindo-se assim pelo seu poder, pela sua própria moral, pelo seu gênero de fortuna e de vida, a nobreza foi-se consolidando como grupo social privilegiado, dotado de um estatuto jurídico e cuja condição se transmitia por via hereditária. O uso cada vez mais freqüente, que a partir do século XIV se fará, em Portugal, da palavra “fidalgo” –

filho d’algo, ou seja filho de alguém com uma condição e um estatuto superiores –

indica a importância crescente atribuída às qualidades do sangue, que estavam vinculadas a esta classe que preencherá uma boa parcela dos relatos cronísticos coetâneos.264

Como tal, dentro do contexto histórico português, a Crônica exaltava as qualidades e os votos de fidelidade dos nobres para com o rei, com particular destaque para a participação e a ação na guerra e, especialmente, nos combates contra o infiel.265 Ainda no século XV, era útil e eficaz apresentar um ideário que atendesse às

263 FLORI, Jean, “Cavalaria” LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude - Dicionário temático do

Ocidente Medieval (1999) Coordenador de tradução de Hilário Franco Júnior. Volume I – Bauru SP. EDUSC. 2002. Pág. 190

264 BLOCH, Marc – A sociedade Feudal. Edições 70, Lisboa, 1998. Pág. 367.

265 Vejam-se sobre este assunto as considerações de: SARAIVA, António José – História da Cultura em

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transformações em curso na sociedade, exaltando a centralização política da monarquia e o passado do reino, fazendo a promoção dos deveres dos súditos e da lealdade da nobreza, representados principalmente pela necessidade da disciplina militar.

O capítulo que agora se inicia pretende estudar a representação da nobreza na Crônica de 1419, focando a sua participação nas guerras e nas batalhas nas quais estão inseridas, bem como no seu relacionamento com o clero e com a realeza. De início falaremos sobre como esta nobreza e toda a ideologia que lhe é inerente inerente é vista na perspectiva cronística, principalmente nas ações militares contra os muçulmanos e contra Castela, deixando os conflitos com a realeza para o último capítulo deste trabalho.

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