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1 TRANSTORNO MENTAL E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA

1.3 INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE PROTEÇÃO

1.3.1 Normatização internacional

Existem duas espécies de categorias gerais em que se enquadram os documentos internacionais de direitos humanos. A primeira delas tem força obrigatória e vinculam legalmente os Estados que a ratificam ou a ela aderem, como é o caso do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP, 1966) e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC, 1966), ambos com respectiva aplicação imediata e mediata. A segunda espécie, por sua vez, engloba diretrizes emitidas por organismos internacionais que se referem a “padrões” internacionais de direitos humanos, os quais podem e devem influenciar a legislação nos países, como é o caso das Resoluções da ONU e da OMS.

As pessoas portadoras de transtornos mentais têm o direito de exercer todos os direitos civis, políticos, sociais e culturais, conforme reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), no Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966) – ambos ratificados pelo Brasil em 1992 -, além, no âmbito do sistema regional interamericano, da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985) e da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999) – esta última aderida pelo Brasil em 2001-, entre outros instrumentos mais recentes.

Diante de alguma violação de direitos, é imprescindível examinar, portanto, os principais instrumentos adotados em nível global, regional e nacional, atentando para a necessidade de sua aplicação também às pessoas com transtornos mentais autoras de delitos.

No âmbito do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), destaca-se a previsão do direito à vida, do direito de não ser submetido à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, dos direitos à liberdade e à segurança pessoal e o de não ser sujeito a prisão ou detenção arbitrárias, do direito a um julgamento justo, do direito à igualdade perante a lei e da proteção contra interferência arbitrária na vida privada.

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), por sua vez, amplia o elenco dos direitos sociais, econômicos e culturais previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cabendo assinalar a previsão do direito ao

trabalho, do direito a nível de vida adequado (alimentação, vestimenta e moradia adequadas), do direito ao mais elevado nível em saúde física e mental e do direito à educação.

Outro instrumento internacional que deveria ser considerado como o mais relevante para a questão do portador de transtorno mental foi: a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental (Resolução da ONU n° 2856, de 20 de dezembro de 1971)33, que, para além da atenção médica e do tratamento físico dos doentes, assegurava, ainda, o direito à instrução, à formação, à readaptação, à orientação, à segurança econômica, a um nível de vida decente, o direito à proteção contra a exploração, abuso e tratamento degradante, dentre outros direitos; e, subsidiariamente, a Declaração de Direitos das Pessoas Deficientes (Resolução da ONU n° 3.447, de 09 de dezembro de 1975), tendo esta última sido atualizada pela ONU, em 2006, com a aprovação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Resolução n° 61/106, de 13 de dezembro de 2006) – como será visto adiante. Cabe salientar que estes instrumentos da ONU falam de deficiência mental, e, de modo implícito, extrai-se a questão da doença mental.

Importa mencionar, ainda, no âmbito do sistema global, a Resolução n° 46/119 da ONU, aprovada em 17 de dezembro de 1991, que adotou os Princípios das Nações Unidas para a Proteção de Pessoas com Enfermidade Mental e para Melhoria da Assistência à Saúde Mental (Princípios ASM), estabelecendo padrões mínimos de direitos humanos para a prática no campo da saúde mental. (FUNK; DREW e SARACENO, 2005, p.197).

A referida Resolução contém 25 princípios e foi aprovada buscando a humanização dos serviços de saúde mental, com o estabelecimento de padrões mínimos para assegurar os direitos das pessoas com transtorno mental, além de declarar o direito à informação acerca do tratamento, o direito do doente a ser tratado com consentimento informado, o direito à privacidade, a interdição e a integração social. Cumpre ressaltar que o Princípio 20 dispõe, expressamente, que todos os direitos nela previstos estendem-se às pessoas presas e às internas em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP):

Princípio 20

Infratores criminosos

1. Este Princípio se aplica a pessoas que cumprem sentenças de prisão por infrações criminosas, ou que sejam de outro modo detidos no

curso de procedimento ou investigações criminais contra eles e sobre os quais se determinou possuírem uma doença mental ou se suponha terem uma doença mental ou se acredite que possam ter tal doença. 2.Todas estas pessoas deverão receber a melhor atenção à saúde mental disponível conforme o disposto no Princípio 1. Estes Princípios deverão ser aplicados a elas na maior extensão possível, apenas com as limitadas modificações e exceções que se fizerem necessárias nas circunstâncias. Nenhuma de tais modificações e exceções deverá prejudicar os direitos das pessoas nos termos dos instrumentos citados no parágrafo 5 do Princípio 1. 3. A lei nacional poderá autorizar um tribunal ou outra autoridade competente, atuando na base de parecer médico competente e independente, a ordenar que tais pessoas sejam admitidas a um estabelecimento de saúde mental. 4.O tratamento de pessoas nas quais se constatou uma doença mental deverá, em todas as circunstâncias, ser condizente com o Princípio 11. (FUNK; DREW; SARACENO, 2005, p. 206).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu, em 1996, a “Legislação de Atenção à Saúde Mental: Dez Princípios Básicos” e as “Diretrizes para Promoção dos Direitos Humanos de Pessoas com Transtornos Mentais”, ambas para auxiliar a compreensão e interpretação dos Princípios trazidos pela Resolução n° 46/119 da ONU, e servir de guia para que os países desenvolvessem legislações de saúde mental.

Além dos vários sistemas internacionais de monitoração dos direitos humanos, há também uma série de convenções regionais de proteção dos direitos humanos.

O Pacto de San José da Costa Rica e as Convenções Interamericanas para Prevenir e Punir a Tortura e para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, por sua vez, como assinalado anteriormente, são instrumentos fundamentais no combate à tortura e às demais violações perpetradas contra pessoas portadoras de transtornos mentais, como ocorreu no “caso Damião Ximenes”, marcado como o primeiro caso brasileiro julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o qual resultou na condenação do Brasil ante o reconhecimento parcial de sua responsabilidade internacional por violação aos direitos humanos.

Registre-se, também, no sistema regional, a Declaração de Caracas, aprovada em 14 de novembro de 1990, na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde, e também assinada pelo Brasil. Esta Declaração visa promover serviços de saúde mental de base comunitária, sugerindo a reestruturação da assistência psiquiátrica existente, com a superação do modelo hospitalocêntrico, sendo considerado o mais importante acordo internacional

sobre a reforma psiquiátrica na América Latina. (FUNK; DREW e SARACENO, 2005, p. 19).

Recentemente, em 2006, a ONU aprovou nova Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Resolução n° 61/106, de 13 de dezembro de 2006), sendo a primeira na temática dos direitos humanos a ser lançada no século XXI. Esta nova Convenção substituiu a antiga Resolução n° 3.447, de 09 de dezembro de 1975, sobre a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes e tem o objetivo de promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.

Em 2008, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julho de 2008 (promulgado através do Decreto n° 6949, de 25 de agosto de 2009) aderiu à mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas. Esta Convenção inclui, como deficientes, aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros.

Vê-se, como já assinalado, que não há referência específica nestes instrumentos à doença mental ou ao transtorno mental, mas tão somente à deficiência mental, tendo este conceito sido erroneamente utilizado, em alguns aspectos, como sinônimo de doença. Na verdade, pelo que se percebe, conforme Piovesan assinala, a Convenção inovou na medida em que reconhece ser a deficiência um conceito em construção, ou seja, não se trata de um conceito matemático objetivo de certo e errado (ser ou não ser), devendo ser vista muito mais como o resultado da interação entre indivíduos e seu meio ambiente, do que apenas como algo que apenas reside intrínseca e isoladamente no indivíduo. (PIOVESAN, 2010, p. 225).

Este novo instrumento da ONU ratifica todos os direitos das pessoas com deficiência, proibindo a discriminação contra elas em todos os aspectos da vida, incluindo os direitos civis, políticos, econômicos e sociais, como o direito à educação e aos serviços de saúde, assegurando, ainda, o reconhecimento da igualdade perante a lei, a proibição da discriminação, a proteção à integridade física, o acesso à justiça, bem como à liberdade e à segurança da pessoa, além de garantir direito à liberdade de expressão e respeito à privacidade e à família.

Ressalta-se que o artigo 14 desta Convenção determina que os Estados Membros assegurem que pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidade com

as demais, “[...] não sejam privadas ilegal ou arbitrariamente de sua liberdade e que toda privação de liberdade esteja em conformidade com a lei, e que a existência de deficiência não justifique a privação de liberdade”. Observa-se, portanto, a necessidade de ser legalmente justo com pessoas que cometeram crime, aparentemente devido a transtorno mental, e de prevenir o abuso em relação a pessoas com transtornos mentais que se envolveram no sistema da justiça criminal.

Assim, embora não haja um instrumento específico voltado ao portador de transtorno mental autor de injusto penal, é certo que a maioria dos estatutos admite que as pessoas que não tinham controle sobre suas ações, devido a um transtorno mental no momento do crime, ou que eram incapazes de compreender e participar de procedimentos judiciários devido a doença mental, necessitam de salvaguardas processuais na época do julgamento e sentenciamento. O grande problema é que o modo como esses indivíduos são detidos e tratados não é, em geral, considerado na legislação ou, quando isso é feito, o é de maneira omissa, resultando em abuso aos direitos humanos. (FUNK; DREW; SARACENO, 2005).