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Nos tempos de Lord Auch por Michel Leiris

No documento BATAILLE, G. História do Olho.pdf (páginas 92-105)

Entre todas as coisas que podem ser contempladas sob a concavidade dos céus, não se vê nada que mais desperte o espirito humano , que mais arrebate os sentidos, que mais assuste, que provoque entre as criaturas uma admiração ou um terror maior que os monstros, os  prodígios e as abominações, nos quais se vêem as obras da natureza invertidas, mutiladas ou

truncadas.

Pierre Boaistuau, Histoires prodigieuses (Paris, 1561), citado por Georges Bataille, “Les Ecarts de la nature”, in Documents, ano 11, núm. 2, 1930

Uma praia qualquer, com suas villas  para famílias em férias e suas violentas tempestades de verão, uma Espanha em que não faltam os estrangeiros e as visitas a igrejas nem as tardes na  plaza de toros, são esses os cenários sucessivos em que se desenvolve a História do olho, icção que, como as mais notórias daquelas que Sade imaginou, participa tanto do gênero noir  como do gênero erótico e ilustra com traços de fogo uma ilosoia, explícita em Sade (que conia a várias de suas personagens o afã de expor suas ideias), mas ainda implícita neste primeiro dos livros de Georges Bataille.

Escrita em primeira pessoa, coisa de que a literatura erótica oferece precedentes, essa icção, além de seu caráter estranhamente idílico e ao mesmo tempo desvairado, apresenta uma singularidade: o suposto “eu” do narrador se duplica abertamente em um “eu” real, pois a icção é acompanhada de uma exegese autobiográica, relato de eventos da infância e da juventude que haviam impressionado o autor a ponto de ressurgir, transformados mas retrospectivamente identiicáveis, em uma narrativa que inicialmente se julgaria desvinculada deles. Na edição primitiva, datada de 1928, essa segunda parte, indicada como tal e na sequência da “Narrativa”, constitui um segundo painel, “Coincidências”, vinculando expressamente e sem solução de continuidade a icção a seus

alicerces psicológicos, e contribui para conferir o peso e o teor emocional do vivido a uma história de resto excessiva, como querem as normas do gênero. Porém, nas edições de “Sevilha, 1940” e de “Burgos, 1941”, nas quais, sob o nome de Reminiscências,  ela não é mais que um apêndice impresso em caracteres menores, essa exegese — agora situada em plano diferente do da narrativa e dada por mero comentário — parece um tanto podada e mesmo atenuada em alguns pontos, seja porque o autor preferiu apagar levemente as conidências íntimas demais sobre os sentimentos que seu pai e sua mãe inspiravam a ele, criança pequena e depois rapaz, seja porque julgou ter falseado certos fatos pelo ponto de vista que adotara, talvez abusivamente, do ângulo do complexo de Édipo. Suprimida nessa última versão — como se Bataille tivesse vindo a estimar falaciosa ou inoportuna a declaração em pauta —, uma passagem dá a entender que esse “relato em parte imaginário” foi composto à maneira de um romance em que o autor deixa seu espírito brincar, à revelia de qualquer visada especulativa ou didática: “comecei a escrever sem determinação precisa, incitado sobretudo pelo desejo de me esquecer, ao menos provisoriamente, daquilo que eu posso ser ou fazer pessoalmente”. De uma versão à outra, o fosso que se abriu entre as duas partes e, com isso, entre o “eu” real e o “eu” do narrador mostra que se exerceu uma autocrítica precisa: ora engajado a fundo na relexão propriamente ilosóica, Bataille parece, por um lado, julgar mais severamente seu ensaio de exegese e, por outro, recusar-se a admitir que sua empresa tenha tido um caráter essencialmente gratuito. Se pensasse diferentemente, qual razão teria, não apenas de encurtar e diminuir tipograficamente a exegese, mas ainda de amputá-la da frase em questão e, no âmbito de sua busca geral por uma redação mais cerrada, de expurgar a icção de alguns detalhes de escrita ou de invenção que justamente acusavam (por vezes com ironia) sua natureza romanesca? Assim emendada, a obra certamente ganha em rigor, sem nada perder de sua força corrosiva; mas, para quem a leu primeiro em sua forma original, é diícil — por ínima que seja a

diferença global — desligar-se da primeira versão, a mais espontânea e correlativamente a mais provocante.

Sendo um daqueles que a primeira versão perturbou (André Masson, então surrealista, ilustrou-a em estilo menos verista que lírico, como o fez para A Cona de Irene, publicado pelos mesmo editores), confesso que, salvo poucas exceções, preferiria que ela continuasse sem retoques, e de resto lamento que, na tradução inglesa, o título, A Tale of Satisfied Desire, que tem o mérito de indicar, preto no branco, o móvel da história — satisfazer o desejo não seja mais iluminado pela palavra “olho”, como por um mau- olhado fatal. Tomado assim meu partido, é óbvio que remeterei sempre à versão antiga, que talvez não seja a melhor (sendo certamente a mais descuidada), mas que, para mim, tem algo do ar de uma versão revelada.

Banalidade dos dois cenários ensolarados, um deles todo burguês, o outro idem, uma vez que seu pitoresco não vai além do nível turístico (turismo em grande estilo, está claro, e menos comum do que as viagens à Espanha se tornaram desde então). Esses dois cenários, confortavelmente anódinos, parecem escolhidos de modo a realçar de modo ainda mais equívoco os desvios, enim sanguinolentos depois de terem sido apenas obscenos ou escatológicos, aos quais se dedicam o narrador e sua amiga, adolescentes cujo frenesi sensual não exclui o desfrute, como a avidez angustiada não exclui uma espécie de desenvoltura divina. A esse casal se somam — personagens também pertencentes às classes bem-de-vida da sociedade — uma moça bem jovem, menos cúmplice que vítima fascinada — em tal desvario que essa loira, tão suave quanto a outra é veemente, icará louca e se enforcará —, e um inglês mais velho que, nos episódios francamente sádicos da história, desempenhará em certa medida o papel de mestre de cerimônias. Dois fantoches, dois representantes típicos dos

seres aos quais, de hábito, se deve muito respeito, serão cinicamente achincalhados: a mãe da heroína, que esta, encarapitada em uma viga, terá o prazer de banhar em mijo, e depois um padre sevilhano, incluído à força em uma orgia sacrílega, para ser morto em seguida, e cujo olho arrancado será introduzido pela heroína no próprio antro de sua feminilidade, cena que coroa o relato como uma apoteose em que se conjugam três maneiras de excesso: delírio sexual, frenesi blasfemo e furor homicida. No coração de tudo isso, uma história verdadeira, na qual um olho humano serve igualmente de pivô e que Bataille (como diz no primeiro estado da exegese) achou divertido integrar a um relato cujo resto é essencialmente icção: a morte do admirável matador   Manuel Granero, atingido no olho por uma chifrada em 7 de maio de 1922, na arena de Madri. A essa corrida memorável demais assistira, durante uma estada universitária na capital espanhola, o jovem paleógrafo que logo se tornaria o autor dessas páginas em que, depois de jogos libertinos mas quase inocentes com o leite de um gato e em seguida com ovos, depois do episódio da jovem louca cujo suicídio não a impedirá de continuar virtualmente presente (espécime moderno do romance de castelo mal-assombrado, aqui uma casa de saúde que uma moça de espírito frágil povoa com seus fantasmas e onde se vê um lençol molhado de urina tomar ares fantasmáticos), sobrevêm essa enucleação acidental, que precede de perto a atrocidade deliberada que brinca, não mais com o astro no interior pegajoso e amarelo que é um ovo, mas com um globo ocular, ainda sensível alguns minutos antes. Ápice a que chegarão, com seu sócio inglês, esse e essa de quem o narrador dizia ao inal: “não que o pudor nos faltasse, pelo contrário, mas uma espécie de mal-estar nos obrigava a desafiá-lo tão impudicamente quanto possível”.

Ovo, olho: sólidos não destituídos de alguma analogia formal e que, designados no plural por palavras quase idênticas, são vinculados por Bataille — como por sua heroína — a esse Sol que, em 1930, no título de sua contribuição a uma homenagem a Picasso (Documents, ano 11, núm.

3), ele qualiicará de “podre”, notando no corpo de seu texto que o “horrível grito [do galo], particularmente solar, está sempre à beira de um grito de estrangulado” e recordando que o mito de Ícaro faz ver como “o máximo da elevação se confunde na prática com uma queda súbita, de uma violência inaudita”, o mesmo Sol que, em 1931 — no anúncio de O ânus solar, cosmologia exposta em tom ao mesmo tempo profético e cômico —, ele declarará “nauseabundo e róseo como uma bolota de carvalho, esgarçado e urinante como um oriício peniano”, ao menos para quem o observe sem temer seu brilho “em pleno verão e com o rosto todo banhado de suor”, isto é, nas mesmas condições que os protagonistas de História do olho,  em que a luz da Espanha, tão intensa que parece liquefeita, toma o lugar da claridade estival de uma estação balneária, de noites rasgadas pelos relâmpagos.

Ovo: cândido produto do granjeiro campônio, luxo das Páscoas da infância e objeto altamente simbólico, associado à geração como às origens do mundo. Para o “eu” da exegese, lembrança do olhar que fazia o pai cego e enfermo quando urinava. Para o narrador e sua amiga, coisa que eles gastarão (comendo-a) e malgastarão com tanto despudor que, logo, a mera visão de um ovo bastará para enrubescê-los, e cujo nome, por acordo tácito, eles deixarão de pronunciar.

Olho: parte do corpo cuja extrema ambiguidade Bataille realçará em setembro de 1929 (no verbete “olho” do dicionário de Documents, núm.14). Ao mesmo tempo que é uma igura da consciência moral (o olho da consciência, lugar-comum amplamente explorado) e uma imagem da repressão (não se publicou por muito tempo um periódico consagrado a casos criminosos, sob o título de O olho da polícia,  tendo por exergo um olho que, emblema dessa publicação essencialmente sádica, talvez fosse apenas “a expressão da sede cega de sangue”?), esse órgão é, para os ocidentais, um objeto atraente mas inquietante e, em suas formas animais, tão repulsivo que “não o morderemos jamais”. Ora, outros povos têm para

com ele uma atitude tão diferente que Robert Louis Stevenson, com sua experiência sobre a vida dos ilhéus dos Mares do Sul, qualiica-o de “guloseima canibal”. Constatando que “a sedução extrema é provavelmente contígua ao horror”, Bataille observa que, sob esse aspecto, “o olho poderia ser aproximado do cortante, cuja aparência provoca igualmente reações agudas e contraditórias”, e acrescenta que isso decerto foi intuído obscuramente por Luis Buñuel e Salvador Dali, autores então quase desconhecidos de Um cão andaluz , esse “ilme extraordinário”, em que uma das primeiras sequências mostra como um “navalha corta a seco o olho resplandecente de uma mulher jovem e encantadora”. Reproduz-se, ainda, um desenho de Grandville, ilustrando um pesadelo do artista: história de um assassino perseguido até o fundo do mar por um olho transformado em peixe e cujos avatares sucessivamente representados fazem da imagem uma outra “história do olho”, na qual, como no romance de Bataille, cabe ao órgão da visão ser o io condutor. Por im, relata-se um

ait-divers  tão macabro quanto burlesco: a ponto de ser guilhotinado, o condenado Crampon arranca um dos olhos e o presenteia ao capelão que queria assisti-lo, farsa de muito gosto, já que o padre ignorava tratar-se de um olho de vidro.

Nessa época, o tema do olho é tão importante para Bataille que o verbete de dicionário consagrado ao termo compreende dois outros textos redigidos por iniciativa sua: um, ilológico, de Robert Desnos, comentando, sob o título de “Imagem do olho”, algumas expressões correntes em que intervém ora a palavra, ora a noção de olho, por vezes com um subentendido maroto; o outro, etnográico, de Marcel Griaule, tratando da crença no mau-olhado, sem contar uma nota inal, assinalando que a locução “faire l’oeil”,   tida por tão familiar, ainda não foi admitida no dicionário da Academia. Se não me engano, foi na mesma época, a época de História do olho  e de Documents, que Bataille, atento às curiosidades provenientes das ciências naturais, começou a se interessar pela questão

da glândula pineal, corpúsculo de funções mal deinidas que o cérebro humano hospeda. Segundo o Grand Larousse encyclopédique, Descartes considerava esse corpúsculo como um “centro que recebe e transmite para a alma as impressões exteriores”; mas Bataille — se é que os mais de quarenta anos transcorridos não me fazem deformar suas opiniões — preferia ver nele um embrião do olho, destinado a se voltar para o alto, isto é, para o Sol, destino que a evolução não teria levado a cabo, de modo que a glândula pineal seria, em suma, um olho malogrado.

Ovo, olho: a esses dois elementos em colisão acrescentam-se os genitais do touro morto há pouco, espécie de ovos ou olhos róseos que, em seu assento do lado do sol (que ela prefere ao lado da sombra, em geral mais apreciado), a amiga do narrador recebe pelas mãos do outro companheiro, não para comê-los imediatamente, à maneira de certos aicionados de outrora, mas a im de colocá-los sob seu traseiro nu: “— São colhões crus - disse Sir  Edmond a Simone com um leve sotaque inglês”. Após morder um dos globos, Simone introduz o segundo no mais íntimo de si mesma, gesto que se consuma no momento preciso em que Granero recebe do “monstro solar” a chifrada que faz saltar seu olho direito, como se os dois eventos se suscitassem mutuamente em virtude de alguma correlação obscura e como se (caso se possa pensá-lo) fosse essa a oferenda que Simone esperava, nova Salomé apaixonada por um sucedâneo de cabeça cortada, mas que só obterá o brinquedo extravagante que ela almeja após o assassinato sórdido de que uma igreja de Sevilha será o palco.

Urina, sangue: líquido cor-de-sol cujo jato Simone compara a um “disparo visto como uma luz” e que sua jovem amiga loira não deixa de emitir em abundância cada vez que o prazer a convulsiona; licor mais sombrio que derramarão Granero, esse Ícaro, e o padre caolho, esse mártir medíocre. Além do leite (branco demais para não ser profanado), além do esperma a que o narrador compara a Via Láctea, “estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cavado na abóbada craniana das

constelações”, não há outras libações possíveis - uma ignóbil, trágica a outra — à força equívoca que trazem em si um herói e sobretudo uma heroína cujo gosto pela “farsa sinistra e cruel” — somado ao modo insolentemente feliz com que, sem jamais atingir um humor plácido, ela chafurda no pior desregramento — aproxima daqueles deuses astecas, “trocistas de gosto sinistro, cheios de humor pérido”, aos quais Bataille, em um texto motivado por uma grande exposição de arte pré-colombiana e que ele assinava em sua condição de bibliotecário da Biblioteca Nacional, rendia homenagem no mesmo ano em que publicava a História do olho sob o pseudônimo caricato de Lord   Auch. “O México”, observava ele, após ter descrito o horror dos cultos e a estranheza bufa de certos mitos astecas, “era também uma cidade rica, verdadeira Veneza, com canais e passarelas, templos decorados e sobretudo belíssimos jardins floridos.”

Tanto nessa cidade tão louvada por Bataille como na História do olho e no verbete “olho” do dicionário de Documents —  no qual se acham reunidos os elementos que completam a exegese em outro plano —, termos habitualmente concebidos como opostos aparecem em conjunção: o terrível e o risível, o resplandecente e o repulsivo, o pesado e o leve, o venturoso e o nefasto. Coincidência de contrários, uma das linhas de força do pensamento de Bataille e para a qual o narrador de História do olho será lançado, vertiginosamente: “sendo a morte a única saída para minha ereção, uma vez mortos Simone e eu, o universo da nossa visão pessoal seria substituído por estrelas puras, realizando a frio o que me parecia ser o im da minha devassidão, uma incandescência geométrica (coincidência, entre outras, da vida e da morte, do ser e do nada) e perfeitamente fulgurante”. Mas tudo isso só se articulará mais tarde, quando Bataille tiver lançado mão da ideia de ambiguidade do sagrado (ou do sagrado de duas faces, direita e esquerda, opostas mas complementares), ideia que encontrou em Marcel Mauss e que será para ele um ativo fermento de especulação, assim como a ideia, também de origem maussiana, da

dilapidação como instrumento de soberania — e sobretudo quando, em outro nível que não o da sociologia, ele se imbuirá de ensinamentos de Nietzsche. Por enquanto, ilósofo em estado selvagem, ele procede alegremente, mais que a uma tabula rasa imposta por razões de método, a um saque dos imperativos morais e dos caminhos traçados por uma lógica prudente, e parece atulhar no papel todos os motivos sensíveis que servem de suporte ou relexo de suas obsessões, estoque de temas retomados ulteriormente e reinados ou enriquecidos, mas aqui tão mais comoventes por mal se desgarrarem do caos.

Barafunda espantosa, esse relato rápido em que, rompidos todos os anteparos entre coisas baixas e coisas elevadas, entrelaçam-se o mais imundamente corporal (excrementos, vômitos) e o mais majestosamente cósmico (mar, tempestade, vulcões, Sol e Lua, noites estreladas), o mais trivial (Simone não parece disposta a tratar certos objetos de aura sagrada, ovos, genitais do touro, olho, como se sentasse em cima deles?) e o mais paradoxalmente romântico (a jovem demente cujo cadáver a heroína conspurcará, por senti-lo distante, e cujo olho lacrimejante e esbugalhado, visão de “tristeza desastrosa” e horror extremo, o herói julgará reencontrar em Sevilha, quando o olho eclesiástico, meio deglutido por Simone, lhe parecerá não ser outro que o de Marcela internada, que pedia que ele a salvasse de um mítico cardeal, “padre da guilhotina”, ou seja, dele mesmo, tal qual ela o vira no curso da festa tumultuosa durante a qual se desencadeia seu delírio, tão assustador que ela se mata ao descobrir que ele e o cardeal eram uma única pessoa). Humanos ou não, os elementos envolvidos se imbricam, em função menos de um simbolismo geral do que de associações pessoais, apresentadas simplesmente como tais pelo narrador (no caso, intervenção direta do autor) e segundo uma curiosa dialética da natureza, que reduziria o universo a um ciclo de termos, cada um dos quais não seria mais que a reverberação de um outro ou sua transposição para um outro registro, universo transformado em

dicionário no qual se esvai o sentido das palavras, pois todas se deinem umas pelas outras. Airma-se, no começo de O ânus solar, que “o mundo é puramente paródico, isto é, cada coisa que se vê é a paródia de uma outra ou ainda a mesma coisa sob uma forma enganadora”. E essa espécie de aterrador Triunfo do Olho que, tomando lugar diante de um altar de “adereços retorcidos e complicados”, que evocam a Índia e incitam ao amor, constitui o último e o mais sufocante dos quadros vivos (ora imaginados, ora realizados pelos protagonistas) que pontuam a História do olho - não será a materialização de um tipo de colagem surrealista ou de montagem permitida pela câmara, imagem de carne e osso em que, tão inquietantes como os jogos de palavras sobre os quais repousam os trocadilhos poéticos, interviriam jogos de coisas e, mais ainda, jogos de partes do corpo?

Provavelmente foi necessário que Bataille escrevesse sem “determinação precisa, incitado sobretudo pelo desejo de me esquecer”, ou seja, com toda liberdade (simplesmente deixando-se “sonhar obscenidades”), para que surgisse nele essa combinação fantástica, fruto de algumas das inumeráveis permutações possíveis em um universo tão pouco hierarquizado que tudo nele se torna intercambiável: engastado no íntimo de uma carne feminina, não longe de uma construção barroca cuja exuberância faz pensar em horizontes misteriosos e no ato amoroso, o olho do assassinado, ao qual uma reminiscência terna sobrepõe o da amiga

No documento BATAILLE, G. História do Olho.pdf (páginas 92-105)