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4.3.2.2 – Nossa proposta de descrição dos dois sistemas temporais do discurso a partir da temporalidade da linguagem

No documento O tempo e a linguagem (páginas 121-128)

Nessa subseção, discutiremos uma proposta de descrição semântica do tempo utilizando algumas considerações greimasianas sobre o assunto. Devemos admitir que uma discussão desse tipo necessitaria de um maior aprofundamento, porque as ideias de Greimas são bastante complexas e mereceriam um estudo só seu. Optamos por não desenvolver nosso trabalho dentro da perspectiva greimasiana, embora reconheçamos a importância de seus conceitos nos estudos da enunciação. Greimas e seus seguidores tem trazido reflexos interessantes sobre as categorias do tempo, espaço e pessoa, mas sobre uma outra abordagem, que não foi a que seguimos.

A linguagem se transforma em discurso oral ou escrito por meio da enunciação. Esta enunciação, sempre presente, pode produzir uma enunciação enunciada e um enunciado enunciado. Podemos ter, portanto, dois grandes grupos de momentos de referência temporal: o do mundo narrado e o do mundo comentado. Comparando-se esses dois mundos respectivamente com os tempos do então e do agora de Greimas, aplicamos a categoria topológica abaixo para casa um desses tempos, como dito na citação:

Considerando o tempo de então como tempo zero, e aplicando, a partir disso, a categoria topológica,

é possível construir um modelo simples do tempo enuncivo que, enquanto sistema de referência, permitirá localizar os diferentes programas narrativos do discurso.

Na medida em que a instância da enunciação, tomada no seu conjunto, é suscetível de ser enunciada e de constituir, à maneira de um simulacro, a estrutura enunciativa do discurso, o tempo de agora, tomado separadamente, pode ser debreado e inscrito no discurso como tempo enunciativo relatado. O tempo de agora, assim enunciado, articula-se por sua vez de acordo com a mesma categoria topológica e constitui, no interior do discurso, um segundo sistema de referência temporal. (GREIMAS; COURTÈS, 2008, p.113-114). Destas informações de Greimas e Courtès pudemos entender que a categoria topológica concomitância/não-concomitância (anterioridade vs posterioridade) deveria ser aplicada a dois pontos zero: o ponto zero do sistema do então e o ponto zero do sistema do

agora. Acreditamos que a marcação central “zero” da categoria topológica concomitância/não concomitância pertença, de um ponto de vista do órgão da linguagem, ao termo concomitância, pois é um caráter concomitante que adquire valor numérico igual a zero para

que, só então a partir dele, haja mobilidade e transferência livre de informações temporais concomitantes a ele (= 0), anteriores a ele (- 0), ou posteriores a ele (0 +). Assim, aplicando a concomitância a um ponto zero do então e a um ponto zero do agora, temos:

Quadro 7. Categoria topológica aplicada ao agora e ao então, separadamente

Acontece que essa forma de atribuir valores à topologia é de ordem lógica.Isso significa que, por exemplo, se consideramos o presente enuncivo como um subsistema do tempo, ele se torna, de um ponto de vista dos estudos do discurso, uma armadilha, pois o que permite a construção de um programa narrativo de referência “presente enuncivo”, por exemplo, será um programa narrativo pretérito subjacente a ele.

Quando se trata de temporalização do esquema narrativo (realmente simples), o tempo de então, que constitui o ponto de referência temporal,

identifica-se com a realização do programa narrativo de base (ou prova decisiva) e pode ser considerado o “presente da narrativa”: é a partir dessa posição que a narração que precede aparece como uma anterioridade [...]. (GREIMAIS; COURTES, 2008, p.297).

O tempo do então, entendido logicamente, se divide em passado, presente e futuro. Mas, o tempo do então entendido do ponto de vista do discurso, é considerado como uma anterioridade ou posterioridade, porque o tempo do então já é uma anterioridade estabelecida ao enunciador em relação às coisas que enuncia. Por exemplo:

Figura 51 – A supressão da concomitãncia do tempo do então para uma anterioridade Continuando a citação de Greimas e Courtès (2008, p.297):

Ao lado desse tipo de temporalização (em que o tempo então, enquanto presente narrativo, situa-se no “passado” do enunciador), existem evidentemente narrativas proféticas ou premonitórias que se referem ao “futuro” do enunciador. Entretanto, o futuro, longe de ser uma posição temporal, depende antes de tudo das modalidades do querer-ser ou do dever-

ser, pelas quais o enunciador modaliza seu discurso; nesse sentido, optamos

pela categoria topológica anterioridade/posterioridade, e não pela articulação passado/presente/futuro que conta com a preferência dos lógicos. As narrativas que cobririam o “presente” do enunciador evidentemente são apenas uma armadilha, já que esse presente, móvel, não pode servir de ponto de referência. São então os procedimentos de embreagem que servem para criar a ilusão de uma possível identificação do discurso com a instância da enunciação.

A localização temporal (GREIMAS; CORTÈS, 2008) consiste na inscrição dos programas narrativos no interior de unidades especiais ou temporais dadas, ou seja, na construção de um sistema de referências inscrito no discurso. De fato, pela enunciação, só podemos inscrever no discurso o que é concomitante, o que é anterior e o que é posterior a ele. O tempo do discurso é linear, e aquelas são as únicas formas possíveis de se falar do tempo. Entretanto, o mundo que resulta de uma criação da linguagem, o mundo possível, pode desenraizar-se de um enunciador, se vendo livre da exigência de um agente do discurso. A semântica do tempo comportaria uma bidirecionalidade.

Esse modo de experimentação do tempo é bastante intuitivo. Por isso, na articulação do mundo narrado, ou de um mundo orientado por um então, há referências tanto a um passado e futuro, quanto a um presente.

A temporalidade do discurso semiótico, entretanto, ficará presa ao eu enunciativo, porque, de fato, é ele quem produz o discurso. Assim, todos os tempos ficam intrinsecamente relacionados ao Momento da Enunciação, que é o momento central de uma temporalidade do discurso.

Ao mundo possível, orientado pelos sentidos que os falantes naturalmente atribuem ao produto de uma comunicação, interessa-nos aquilo que é transmitido, e o que é transmitido pode ter referência, por exemplo, a um ‘presente do passado’, como é o caso do subsistema do presente enuncivo criado pela aplicação do termo concomitância ao então. De um ponto de vista lógico, a referência a um presente do passado seria mais precisa na descrição do tempo, embora seja uma “armadilha” (GREIMAS; COURTES, 2008, p.297) do discurso.

Como vimos no quadro 6, Fiorin (2008) esquematiza a temporalidade do discurso com os seus construtos ME (momento da enunciação), MR (momento de referência) e MA (momento dos acontecimentos). Nós, por outro lado, buscamos uma temporalidade semântica e lógica da linguagem utilizando os construtos de Reichenbach, os MRs e os MEs e os MFs (respectivamente, os momentos de referência, os momentos dos eventos e os momentos da fala). Este trabalho considera que possa haver seis subsistemas, ou seja, seis MRs. (agora concomitante, agora posterior, agora anterior, então concomitante, então posterior e então anterior), ou seis eixos (MRs) que servem de suporte para os tempos dos eventos (MEs). Um discurso, oral ou escrito, pode ser construído escolhendo-se um desses eixos de MRs ou mais.

Cada um desses seis subsistemas representa, como veremos mais adiante, um lugar

temporal de referência, atualizado por um espaço mental, que vai servir de parâmetro para a

ordenação dos eventos em relação ao momento da fala (MF). A ideia de Momentos de Referência lembra a de Fiorin (2008), pois este linguista também trata essa questão como um Momento de Referência. Entretanto, Fiorin nos alerta que sua teoria não deve se confundir com a do lógico Reichenbach46.

Os MEs (nosso Momento do Evento) podem ser concomitantes, anteriores ou posteriores a cada um dos Momentos de Referência, o que significa que, para cada um desses momentos, há um presente, um passado e um futuro. Há, portanto, uma noção de presente,

46 Fiorin (2008) esclarece que sua proposta, apesar de lembrar a proposta de Reichenbach (1966), não se

confunde com ela, porque este estudioso ancora seus “momentos” numa teoria lógica e não numa teoria da enunciação.

passado e futuro de um presente dêitico e de um presente não-dêitico; uma de presente, passado e futuro de um passado dêitico e de um passado não-dêitico; e uma noção de presente, passado e futuro de um futuro dêitico e de um futuro não-dêitico. O tempo gramatical poderia ser definido como uma categoria que permite situar os acontecimentos como presentes, passados ou futuros, em relação a um marco referencial presente, passado ou futuro.

Cada subsistema (MR) comporta um eixo gerador de Momentos de Fala. Esse eixo, por sua vez, orienta os momentos dos eventos indicados principalmente por formas verbais, advérbios temporais e marcadores cronológicos de tempo. Por exemplo, o sistema enunciativo regido pelo MR presente, comporta as formas verbais do ‘presente’, do ‘pretérito perfeito 1’ e do ‘futuro do presente’47. Vejamos um exemplo de um texto enunciativo presente:

(45) Agora irei apresentar uma comunicação sobre os últimos resultados da empresa.

Vocês estão vendo este gráfico nitidamente? Hoje vocês perceberam como a tecnologia pode ajudar nas palestras!

Esse texto (45) apresenta verbos do sistema enunciativo presente. O eixo do sistema enunciativo presente possui um ponto lógico referencial zero que é o momento da fala (MF) norteador dos eventos (MEs). Ele representa cognitivamente um centro gerador e axial que se deslocaria, funcionando como um AGORA É QUE implícito, imaginado a cada tempo gramatical novo do enunciado.

(46) AGORA É QUE... Agora irei apresentar uma comunicação sobre os últimos

resultados da empresa. AGORA É QUE... Vocês estão vendo este gráfico nitidamente?

AGORA É QUE... Hoje vocês perceberam como a tecnologia pode ajudar nas palestras!

Figura 52 – O deslocamento cognitivo do Momento da Fala

47 Estamos nos baseando na classificação que Fiorin (2008) fez dos tempos verbais em língua portuguesa nos três

sistemas referenciais. O pretérito perfeito recebe uma classificação “1” porque também podemos encontrar essa forma temporal no subsistema enuncivo pretérito. Neste caso, o tempo verbal é classificado como pretérito

perfeito 2 (FIORIN, 2008, p.148).

Como o construto MF não é o momento da enunciação (que é sempre presente), ele pode se “transformar” em vários “agoras” enunciativos, graças aos mundos possíveis criados pela linguagem – no nosso caso, seis MFs (três agora e três então), uma vez que possuímos seis eixos enunciativos para que esses MFs marquem seu ponto central:

Figura 53 – Um texto pode gerar seis tipos de MF

O MF representa o centro lógico de um MR. Vejamos descritos, de outra forma, os seis eixos de MRs, três para o sistema do mundo comentado e três para o sistema do mundo

narrado. Indicaremos, ao lado do nome de cada subsistema, como possivelmente poderia se

comportar cognitivamente o seu centro MF. Quadro 8. Os seis MRs

1- mundo comentado:

1.1 subsistema passado (MF = “agora foi/era que”) 1.2 subsistema presente (MF = “agora é que”) 1.3 subsistema futuro (MF = “agora será que”) 2- mundo narrado:

2.1 subsistema passado (MF = “então foi/era que”) 2.2 subsistema presente (MF = “então é que”) 2.3 subsistema futuro (MF = “então será que”)

Embora, como dissemos, um MF possa funcionar como um tempo de valor diferente do presente gramatical, ele se identifica, na atualização do discurso, com o presente pressuposto do ato da enunciação.

Cada um desses subsistemas pode ser entendido como um MR. Um discurso pode ser construído com um ou mais MRs. A intenção particular de cada falante é que decidirá qual ou quais MRs usará na sua enunciação. Estamos entendendo, portanto, um MR como uma

parcela cognitiva de espaço-tempo, onde localizaremos as ações de um discurso. Segundo Reichenbach, o momento de referência pode ser definido como algo ocupando uma parte contínua e limitada de espaço e tempo.48

Depois de estabelecido, algumas vezes trocamos um tempo verbal que seria comum a um MR estabelecido, por um outro elemento temporal comum a um outro MR. Essa possibilidade de “troca”, devida a uma neutralização, pode ser entendida como correspondendo às “[...] microembreagens (utilização de um tempo com valor de outro) [...]” (FIORIN, 2008, p.238), que serão vistas na subseção 4.3.5. Outras vezes, estabelecemos mais de um tipo de MR para a construção de um texto, o que nos faz pensar no conceito de embreagem entendida como “[...] um processo composicional que rege a relação global entre tempo da enunciação e tempo do enunciado.” (FIORIN, 2008, p.238), e no conceito de espaços mentais, que veremos na subseção 4.3.9.

A cada Momento de Fala (MF), os tempos dos eventos (ME) deslizam-se pelo eixo de referência à enunciação. O MF é a referência lógica para que os MEs se organizem. Cada eixo tem um centro de concomitância com o centro (MF) de enovelamento dos eventos. No caso do eixo do MR presente enunciativo, mais do que uma relação de concomitância, ele sempre corresponderá, de forma simulada, referencialmente com o momento da enunciação. Nestes casos, pode-se afirmar que o MF pode ser indicado pela data da produção do enunciado, por exemplo, a data de um jornal.

Os eventos – estados e transformações – dar-se-ão em relação ao MR escolhido e, mais especificadamente, em relação ao centro gerador e axial desse MR, que é o MF. Se um evento (Momento do Evento - ME) ocorre, por exemplo, anterior ao centro (MF) do momento em que se enovelam os estados e os acontecimentos, diz-se que esse evento ocorre num momento anterior: ME anterior. Portanto, os MEs são ordenados em relação aos diferentes MFs dentro de cada MR.

O exemplo (46) visto anteriormente exemplifica um dos seis eixos que aparecem descritos na figura 53 e no quadro 8: o MF de um MR presente enunciativo. É como se, a cada ponto zero deslocado, o enunciado instituísse um novo Momento da Fala.

Nos textos em que o foco está sobre os eventos em si (mundo narrado) possuímos um eixo zero de ordenação, entendido como um então. Da instância presente da enunciação pode- se abstrair um então. Ele se desloca ao longo do fio do discurso permanecendo sempre então (MF = 0 = então) e, de um ponto de vista lógico resultante da localização temporal dos

48 No original: We may define it (individual) as something occupying a continuous and limited part of space and

time. (REICHENBACH, 1948, p.266 apud CORÔA, 1998, p.9).

eventos, podemos ter um MR enuncivo presente, passado e futuro. Um exemplo de um texto enuncivo temporalmente seria:

(47) ENTÃO FOI QUE... eu teria apresentado uma comunicação sobre os últimos

resultados da empresa aos meus colegas, mas ENTÃO FOI QUE... eles não viram os gráficos nitidamente. Certamente ENTÃO FOI QUE... eles tinham percebido como a tecnologia pode fazer falta.

O subsistema escolhido para exemplificar um sistema enuncivo em (47) foi o subsistema enuncivo passado.

No documento O tempo e a linguagem (páginas 121-128)