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Nota de campo em Serviço de Urgência Geral DEZEMBRO 2015

Esta nota de campo surge na sequência do estágio realizado em contexto de cuidados de urgência e as situações que pretendemos descrever, e sobre as quais desejamos refletir, dizem respeito a dois casos de alegada violência que nos foram comunicados pela equipa de enfermagem e os quais tivemos oportunidade de acompanhar. A necessidade de reflexão sobre estas situações emerge da indesejável frequência com que acontecem no SUG e do modo como atuamos, como profissionais, perante as mesmas. Considerámos apenas dois casos, que se verificaram durante este período de estágio, mas tivemos conhecimento de muitos outros no âmbito da violência interpessoal contra a pessoa idosa.

Em outubro de 2015 foi trazida ao SUG a Sra. D.ª M., de 82 anos. Vinha acompanhada pelas entidades policiais e pela neta, por suspeita de alegados “maus tratos” (como descrito em Alert). Até há 2 meses atrás residia com uma bisneta que terá saído de casa, tendo a Sra. D.ª M ficado sozinha, com apoio da filha que morava no mesmo prédio. De acordo com a informação da neta, até há 2 meses deambulava e fazia a sua própria higiene, mas não preparava as suas refeições e tinha períodos de confusão mental. Há cerca de uma semana dirigiu-se a casa da avó e terá notado que esta estava mais confusa que o habitual, emagrecida e em más condições de higiene. No dia em que resolveu trazê-la ao serviço de urgência esta estava deitada em cima da cama, fria, com apenas uma peça de roupa (camisa) vestida. Encontrava-se vígil, mas não colaborante, e não verbalizava. Apresentava-se urinada e com fezes na cama, em muito mau estado de higiene, assim como a sua casa também estava em más condições. Além deste quadro, apresentava hematoma periorbital à direita, que impossibilitava a abertura ocular. Perante isto, terá resolvido contactar a polícia e trazer a avó ao SUG.

Na admissão, a Sra. D.ª M., colaborava de uma forma lentificada, conseguia verbalizar o nome completo, mas estava desorientada no tempo e espaço. O seu discurso não era coerente relativamente ao que tinha acontecido nos últimos dias. Queixava-se de dor à mobilização do membro inferior esquerdo. Em relação à evidente lesão periorbital, e através de exames complementares de diagnóstico

realizados posteriormente, verificou-se uma lesão expansiva, com aparente ponto de partida no seio maxilar direito, com extensão à fossa nasal e à orbita direitas.

O caso descrito foi um dos muitos que nos chegam ao serviço de urgência. Tirar conclusões do que terá acontecido não foi nosso objetivo nesta descrição. Sabemos que a situação da Sra. D.ª M. foi sinalizada à assistente social e as razões que motivaram o seu internamento prendem-se com a lesão expansiva verificada (com invasão de várias estruturas) e com a situação social complexa. As notas em diários fazem alusão à alegada violência por parte da filha e esta ficou impedida de visitar a mãe. Caso isso acontecesse, a equipa teria indicação para comunicar à polícia.

Em dezembro de 2015, deu entrada na reanimação a Sra. D.ª F., de 90 anos. Foi trazida da própria casa, pelos bombeiros, por um quadro de prostração. À chegada encontrava-se com gemido constante e verificavam-se maus cuidados de higiene, com fezes e urina misturados com penso repassado na região sagrada, onde apresentava úlcera por pressão. Encontrava-se vestida mas sem fralda. Apresentava também pensos nos membros inferiores sujos com fezes. Emagrecida, caquética, desidratada. Sem critérios para cuidados em sala de reanimação foi encaminhada para outra sala de observação, onde a prioridade da equipa foi a prestação de cuidados de higiene e conforto e a avaliação das feridas com a realização dos vários pensos (região sagrada, trocanter direito, calcâneos, região plantar pé esquerdo, terço distal membro inferior esquerdo, mão direita e ainda ferida a nível genital, compatível com a existência de candidíase).

A filha (e única prestadora informal dos cuidados) chegou algum tempo depois e terá sido a própria a chamar os bombeiros porque a mãe se encontrava menos reativa. Na altura foi confrontada no sentido de se perceber o porquê da Sra. D.ª F. se encontrar neste estado. Foi questionada sobre se tinha conhecimento de que poderia dispor de apoio nos cuidados a prestar a uma pessoa idosa nestas condições. Mostrou-se revoltada com esta abordagem e abandonou o serviço.

A situação da Sra. D.ª F. exigiu que ficasse internada, e assim permaneceu várias semanas num corredor, numa maca onde foi colocado colchão anti-escaras. Encontrámos descritos, durante o internamento, períodos de agitação e desorientação (no tempo e no espaço), assim como períodos de agressividade e de

labilidade emocional, mostrando-se muitas vezes assustada quando era abordada pelos profissionais.

Este caso também estava a ser acompanhado pela assistente social que presta apoio à urgência mas nunca, durante o período de visitas, se verificou a presença de quaisquer familiares.

Os fatores de risco para a violência interpessoal contra a pessoa idosa que verificámos nos casos que descrevemos são coerentes com os descritos na literatura. Temos duas vítimas do sexo feminino, com idade superior a 74 anos e com aparente elevado grau de incapacidade física e intelectual. Não conseguimos apurar, no entanto, se existia história de demência ou depressão nas situações descritas. Relativamente aos indicadores, há um aparente atraso na procura dos cuidados, por parte dos familiares, uma vez que as vítimas teriam necessitado de avaliação e intervenção precoce para evitar chegar ao estado em que as encontrámos. Na primeira situação há evidência de um hematoma numa região suspeita (face), não se conhecendo história de queda. Na segunda situação temos uma idosa com atitudes de irritabilidade e tristeza, assim como uma filha com uma atitude hostil com os profissionais de saúde.

Estes casos de violência perpetrados no domicílio enquadram-se na violência interpessoal a nível familiar, sendo que a natureza da mesma é sugestiva de negligência/privação. Os dados que nos conduzem a esta hipótese relacionam-se com o facto das vítima se encontrarem emagrecidas, provavelmente desnutridas e desidratadas, e ambas terem sido encontradas em muito más condições de higiene.

Enquanto profissionais de saúde poderemos não entender as razões que levam a pessoa idosa a arrastar a situação de violência durante longos períodos de tempo. No entanto estes comportamentos poderão não ser reconhecidos como violência e poderão ser encarados pela pessoa com algo normalizado, dentro do seu contexto cultural ou familiar. Nesta perspetiva, para aqueles que vivem em casa, muitas vezes a violência é perpetrada por um familiar e há um vínculo emocional que impede a divulgação (Naughton et al., 2010). Sabe-se que a violência contra as pessoas idosas é ainda hoje encarada como um assunto estritamente familiar, diluído na esfera doméstica, tornando-se, por isso, díficil de conhecer e provar. A dificuldade da pessoa idosa em denunciar o ato de violência de que é alvo, pelos

próprios familiares, faz com que se silencie e isole, levando a que o problema seja ocultado (Gil, 2010). Nas situações descritas, um contributo para que a situação não fosse denunciada relacionava-se com o facto das pessoas idosas não terem conexões sociais obrigatórias, como trabalho, escola, entre outros, nem apoio no âmbito de cuidados continuados, além de uma aparente rede social reduzida (Shugarman et al., 2003). As idosas em questão eram também aparentemente muito dependentes, sem possível capacidade para reconhecer ou denunciar a situação a terceiros.

Para os casos apresentados, o serviço de urgência foi o primeiro ponto de contacto da pessoa idosa, alegada vítima de violência interpessoal, com um serviço de saúde. Nesta perspetiva, foi essencial reconhecer e identificar estas situações que representavam evidente perigo, para que estas pessoas idosas não fossem devolvidas a um ambiente inseguro (Phelan, 2012). A consciencialização das equipas foi uma questão que tivemos oportunidade de trabalhar durante o estágio e é indiscutível a importância que os enfermeiros do serviço de urgência possuem na deteção desta realidade. Os casos que analisámos referiam-se a situações extremas. Muitas outras encontram-se mascaradas e aliadas a comorbilidades e problemas atípicos que a pessoa idosa apresenta, daí a dificuldade na sua identificação. Nesse sentido, e na nossa opinião, trabalhar neste campo de intervenção é uma tarefa exigente para muitos enfemeiros. Requer saberes e conhecimentos técnicos que devem ser utilizados no domínio da violência contra a pessoa idosa, para o benefício da mesma e dos próprios profissionas. Nestas situações os enfermeiros identificaram como prioridade a promoção do conforto e a segurança das pessoas idosas, aproximando-se de um modelo de enfermagem centrado na pessoa e não na doença. Com a formação da equipa hospitalar de prevenção da violência no adulto, esta problemática exigirá cada vez mais atenção e serão mobilizados mais recursos no sentido de resolver e denunciar estes casos. Muito ainda se poderá fazer neste âmbito, ainda há um longo caminho a percorrer, mas importa saber que a população idosa, cada vez mais numerosa, encontrará neste serviço, uma equipa com princípios de responsabilidade, que se compromete a cuidar com profissionalismo e dedicação, qualquer que seja a sua situação.

Referências Bibliográficas

Gil A.P. (2010). . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a i cia e a ec ologia.

Naughto , ., Dre a , J., reacy, M.P., Lafferty, A., Lyo s, I., Phela , A., O’Loughli , A. & Delaney, L. (2010). Abuse and Neglect of Older People in Ireland: Report on the National Study of Elder Abuse and Neglect. National Centre for the Protection of Older People, Dublin.

Phelan, A. (2012). Elder abuse in the emergency department. International Emergency Nursing, 20, 214-220.

http://dx.doi.org/10.1016/j.ienj.2012.03.009

Shugarman, L.R., Fries, B.E., Wolf, R.S. & Morris, J.N., 2003. Identifying older people at risk of abuse during routine screening practices. Journal of the American Geriatrics Society, 51 (1), 24–31.

APÊNDICE VI