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HSFX – Bloco de Partos 03/06/2011 22h30-8.30h

Descrição da Situação Comentários do Observador

Mais uma noite em ensino clínico…

São 3 da manhã e estou a partejar, nasceu um lindo menino com 3820g, sem malformações aparentes e 9/10 de Apgar. Estou com uma colega que me vai demonstrar e ensinar a suturar a episiotomia com sutura intradérmica - já lhe tinha pedido há algum tempo mas não tinha havido oportunidade até ao momento.

De repente oiço gritos… gritos de dor e desespero…

Estranho, não tínhamos mais nenhuma mulher internada na Sala de Partos.

A assistente operacional chama-me para o quarto do lado. Sou substituída pela colega na realização da episiorrafia e dirijo-me para o outro quarto.

Deparo-me com uma grávida com um fácies de tristeza e desespero, associado a dor. A enfermeira especialista, que já estava na sala, apenas me transmite que é uma situação de Interrupção Médica da Gravidez e que a grávida tinha acabado de ser transferida do Serviço de Medicina Materno- Fetal, em período expulsivo.

Mal tive tempo de vestir o equipamento de protecção para prestar cuidados no 2º estádio de trabalho de parto…

Perguntei-lhe o nome e ela respondeu-me com o seu primeiro nome. Chamei-a pelo nome e referi-lhe que estávamos ali para a ajudar e apoiar neste momento difícil.

A dor provocada pela perda fetal está presente nas mulheres em processo de IMG, muitas vezes exacerbada pela sensação de culpa pelo papel activo na morte do filho.

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NOTA DE CAMPO

HSFX – Bloco de Partos 03/06/2011 22h30-8.30h

Descrição da Situação Comentários do Observador Questionei-a sobre a vontade em visualizar o feto e a

resposta rápida e brusca foi negativa: “- Não, não quero!”

A expulsão fetal ocorreu e o feto estava morto. Procurei embrulhá-lo e tapá-lo de forma a não forçar a visualização pela mãe.

A dequitadura demorou… aproveitei estes momentos para conversar com esta mãe em luto.

Questionámos sobre a vontade de chamar alguém e contactou-se o marido de forma a este vir acompanhá-la. Enquanto esperávamos o marido e também a dequitadura fomos falando… coloquei-me ao seu lado e segurei-lhe a mão… procurei confortá-la pela sua perda.

Fiquei em silêncio e escutei… escutei a sua dor, tristeza e frustração. Era o primeiro filho, desejado e programado. Uma concepção sem dificuldades e uma gravidez sem intercorrências até às 22 semanas…

“- Estava tudo tão bem. Foi uma gravidez desejada e planeada… fiquei grávida um mês depois de deixar de tomar a pílula. Estávamos tão contentes…”

Depois foi o desmoronar de um sonho… patologia cardíaca muito grave e complexa, com poucas hipóteses de sobrevivência e com qualidade de vida muito reduzida. Foi uma correria de segundas opiniões e de tomada de decisões rápida devido à proximidade das 24 semanas, limite legal para a IMG.

Existem diversos autores

que defendem a

visualização do feto morto, referindo que assim a mulher não fica com dúvidas sobre a morte do feto e não imagina malformações exageradas nem fica na dúvida se ocorreu a morte.

Por vezes o apoio a prestar é apenas a presença e escuta, podendo ser reconfortante um toque, demonstrando empatia.

Muitas vezes o diagnóstico de malformações fetais só ocorre próximo do limite legal para IMG, provocando alguma pressão temporal na decisão da mulher ou casal.

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NOTA DE CAMPO

HSFX – Bloco de Partos 03/06/2011 22h30-8.30h

Descrição da Situação Comentários do Observador “- De repente estava tudo mal… o nosso menino estava

muito doente. Os médicos disseram que mesmo que sobrevivesse seria sempre doente e teria de fazer muitos tratamentos. Quisemos mais opiniões e o Dr. M foi muito claro. Ajudou-nos a aceitar melhor a nossa decisão. Mas é tão difícil.”

A mãe desabafou a vivência desta situação numa outra maternidade de Lisboa… as médicas que os tinham atendido, como casal que tinha decidido interromper a gravidez pelo diagnóstico de malformação fetal, fizeram-nos sentir como más pessoas e maus pais.

“- Quando saímos do consultório do médico fomos à maternidade… nunca me senti tão mal na minha vida… as médicas que nos atenderam fizeram-nos sentir uns monstros e como os piores pais do mundo pela nossa decisão de interromper a gravidez. Mas o bebé estava e ia sofrer muito.” Afirmei-lhe que essa opção é dos pais, que era uma decisão difícil e triste e que de certeza não tinha sido tomada de forma precipitada…e que as médicas com quem tinham contactado antes não deveriam tê-los feito sentir assim. Referi-lhe a existência de estudos que referem que a visualização do filho morto poderá ser facilitador na elaboração do processo de luto. Expliquei-lhe que seria sempre uma opção sua, mas que a qualquer momento poderia ver o seu filho e que era uma situação que poderia e deveria conversar com o marido quando este chegasse.

O apoio e postura empática dos profissionais de saúde são essenciais para proporcionar uma vivência menos penosa numa situação de perda fetal.

A sensação de culpa está muitas vezes presente. A mulher ou casal culpam-se pelas malformações e também pela opção de não prosseguir com a gravidez. Podem mesmo referir sentirem que estão a ser castigados.

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NOTA DE CAMPO

HSFX – Bloco de Partos 03/06/2011 22h30-8.30h

Descrição da Situação Comentários do Observador Entretanto chegou o marido. Saí do quarto para lhes

proporcionar alguma privacidade, referindo que voltaria dentro de momento Cerca de dez minutos mais tarde voltei ao quarto. O casal estava muito próximo e de mãos dadas, numa postura de conforto mútuo. Perguntei se precisavam de alguma coisa ou se tinham alguma questão.

“- Como referiu que ajuda no luto e agora que estamos os dois gostaríamos de ver o nosso filho.” – afirmou o pai.

Fui buscar o feto à mesa que estava numa zona mais distante do quarto, embrulhei-o cuidadosamente num campo cirúrgico (de forma semelhante como numa mantinha), segurei-o nos meus braços de forma envolvente e aproximei- me do casal, avisando que o fácies estava um pouco escurecido/azulado por estar morto.

Os pais olharam enternecidos para o filho…

“- É lindo. Tão perfeitinho… só o coração é que estava mal.” – disse o pai.

Abri o campo carinhosamente, mostrando todo o corpo. “ – Olha os pés e as mãos – compridas e bonitas. Sai ao pai. São iguais às tuas.” – afirmou a mãe.

Olhavam enternecidos para o seu filho, parecendo esquecer, por momentos, que estava morto.

“- Tão bonito…”

A seguir fez-se silêncio. Seguraram nas mãos um do outro e despediram-se do filho.

É importante que o profissional de saúde manuseie o corpo fetal demonstrando cuidado e respeito pela perda de uma vida humana e previna os pais sobre algum aspecto visual que os possa chocar

É importante a visualização do bebé de forma a criar memórias e a reforçar os laços de amor.

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NOTA DE CAMPO

HSFX – Bloco de Partos 03/06/2011 22h30-8.30h

Descrição da Situação Comentários do Observador “- Temos tanta pena de nos separar de ti… mas fizemos o

que achámos melhor para ti. Gostamos muito de ti.” – disse a mãe. “- Adeus Rodrigo. Serás sempre o nosso primeiro filho…” – disse o pai.

Voltei a embrulhar o feto no campo, cuidadosamente, e segurando-o no colo, levei-o do quarto, explicando que iríamos proceder aos trâmites legais que já lhes tinham sido explicados.

Sorriam e agradeceram a atenção. Pareceram-me serenos e satisfeitos com a sua opção de verem o filho e despedirem- se dele – tinham um fácies tranquilo e até feliz.

Deixei-os sozinhos por momentos de forma a conversarem e para ir cuidar do corpo fetal… custou-me colocar aquele pequeno ser, sem vida, em cima de uma superfície fria e cobri-lo com um plástico preto para a realização de radiografia para o estudo anatomo-patológico.

Voltei ao quarto para a prestação dos cuidados de vigilância de bem-estar materno no puerpério imediato, aproveitando para alertar sobre sinais e sintomas de alerta no puerpério, numa perspectiva de Educação para a Saúde… após verificar o bem-estar físico da puérpera, proporcionei momentos de privacidade ao casal para se despedirem e posteriormente transferi a puérpera novamente para o Serviço de Medicina Materno Fetal.

Pode ser penoso para o profissional de saúde prestar cuidados ao corpo fetal, pois confronta-o com a perda e com a impotência por não ter conseguido cuidar para a vida e saúde

Permanecer em

proximidade com outras mães com filhos vivos pode agravar a dor

No documento Relatório Estágio Mónica Rodrigues (páginas 131-137)