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CAPÍTULO 3: O LUGAR PERFEITO

3.4. O MITO DO ESTADO ISLÂMICO

3.4.1. Notas Introdutórias e Quadro de Análise

Tendo em consideração a exposição previamente feita, poder-se-á dizer que o “Estado” criado pelo Estado Islâmico é um mito. Através das páginas da Dabiq, o grupo dá a conhecer ao mundo a ordem edificada; no entanto, não num relato fiel da realidade, mas sim criando uma forma ideal da mesma. O Estado Islâmico criou uma narrativa que explica o passado – um passado de escuridão, devassidão e corrupção –, o presente – de redenção e prosperidade -, e um futuro – de vitória e triunfo absolutos. Identificou o “bem” e o “mal” e prescreveu a melhor forma de viver para atingir o estatuto de cidadão exemplar. Desenhou, assim, e à luz da ideologia que segue, a imagem daquilo que será o “estado perfeito”, ou seja, uma utopia.

Pretende-se, através da análise de dez números da revista oficial do IS, inferir quais os elementos ideológicos presentes na criação do mito do “Estado”, identificando as categorias narrativas que o compõem, as influências ideológicas do Salafismo-

Jihadismo que estão presentes e, ainda, os elementos inovadores introduzidos pelo grupo

através do seu discurso.

Para tal, adaptar-se-á o quadro metodológico criado por Goetze. Para desconstruir o mito dos Estados europeus, a autora inspirou-se nos instrumentos de análise definidos por Lévi-Strauss, que advogava que os mitos são construídos através de um encadeamento de sequências de ação, protagonizadas por atores que desempenham uma determinada função – positiva ou negativa - na narrativa.324 Goetze divide o mito em seis

fases ou sequências e atribui protagonistas com uma determinada função a cada uma delas, como pode ser consultado no quadro abaixo.

Tabela 1 – “State Myth”

Functions Sequences

Initial situation: Competing authorities (e.g. European middle ages)

Initial Situation: Competitive Authorities (e.g. European middle ages)

324 Apud. GOETZE, Catherine - Warlords and States: A Contemporary Myth of the International System.

Em GUEVARA, Berit Blisemann (Ed.) - Myth and Narrative in International Politics: Interpretative

Function A: Kings (institutions) Sequence a: Depersonalized institutions and law emerge.

Function B: Armies Sequence b: State monopolizes legitimate use

of violence.

Function C: Merchants Sequence c: Trade, commerce, innovation, modernity and prosperity develop under rule of law.

Function D: Bureaucrats Sequence d: Bureaucracy, tax collection and rule of law span entire territory.

Function E: Statesmen Sequence e: State supported by population and accountable (democracy).

Function F: Representatives

Fonte: GOETZE, Catherine - Functions and sequences of the state myth. Em GUEVARA, Berit Blisemann (Ed.) - Myth

and Narrative in International Politics: Interpretative Approaches to the Study of IR, 2016. p. 140.

O mito do Estado Islâmico não poderia, contudo, ser desconstruído com base neste quadro; as categorias não seriam adequadas para estudar a forma como o grupo se vê porque se referem, desde logo, à criação de um Estado convencional325, não à formação de uma entidade por uma organização terrorista orientada por uma ideologia fundamentalista e crenças apocalípticas. Para além disso, a metodologia utilizada por Goetze recorre a conceitos que são rejeitados pelo próprio Estado Islâmico e que se esgotam no contexto da formação dos Estados europeus, por serem estes os casos estudados pela autora. Assim sendo, para se descrever o mito, terão de ser criadas categorias adequadas às ideias expressas pelo grupo.

Começa-se por assumir que, no caso do Estado Islâmico, a situação inicial – ou seja, aquela que suscita a necessidade de criação estatal e, portanto, é o ponto de partida para o mito - é caraterizada por um conflito entre dois grupos: os infiéis e os fiéis. O

325 Não se pretende, de forma alguma, alegar que todos Estados europeus nasceram de forma legítima,

decorrente de processos democráticos; reconhece-se que muitos surgiram da violência e da sobreposição de uma maioria às várias minorias existentes. Pretende-se, no entanto, estabelecer uma distinção entre Estados “convencionais” – o caso do Estados europeus – e de entidades como o Estado Islâmico, que surgem a partir de grupos terroristas. Mais do que isso, é importante considerar, para este capítulo, que os dois tipos de Estados se diferenciam pelos seus mitos, ou seja, pela forma como a sua fundação e caraterísticas são apresentadas.

objetivo último, ou seja, a última sequência deste mito, não será o estabelecimento de uma democracia, mas sim a ocorrência de uma batalha final que conduzirá ao triunfo das forças do bem sobre as forças do mal – e, por isso, nesta análise, receberá o nome de “Apocalipse.” Tendo em conta que o Estado Islâmico se retrata como exemplar, como uma espécie de paraíso na Terra, as categorias intermédias receberão os títulos de “Estado Superior” – categoria na qual serão incluídos os relatos do Estado Islâmico como a melhor alternativa a todos os outros sistemas -, “Estado Funcional” – onde constarão todas as histórias sobre o bom e próspero funcionamento do aparelho estatal -, “Cidadão Perfeito” – composta pelas ideias quanto à imagem de um indivíduo virtuoso - e “Caminho Ideal” – dizendo respeito aos passos que os muçulmanos devem tomar para ajudarem à consolidação do Estado. A inspiração para o delineamento destas categorias em específico provém do trabalho desenvolvido por Delemarre, no qual o autor argumenta que o Estado Islâmico se constitui como uma utopia através da sua representação como i) um estado transcendental; ii) parte de uma narrativa escatológica; iii) um estado ideal e perfeito; e iv) lar de muçulmanos perfeitos.326

Importa também notar que, ao contrário de Goetze, não se fará uso do termo “sequência”, uma vez que este sugere uma ordem cronológica; mas sim de “categoria narrativa”. Tal justifica-se pelo facto de o mito ser uma narrativa e de todas as categorias de seguida apresentadas se encaixarem para constituir a imagem geral do “Estado” islâmico. A primeira e última categorias ocupam uma função introdutória e concludente no mito; as intermédias apresentam os elementos que caraterizam o Estado Islâmico. Tal como um Estado soberano se define por possuir quatro elementos (população, território, governo e soberania), aqui se defende que o Estado Islâmico se revela como o lugar perfeito através de quatro categorias narrativas próprias, a consultar no quadro abaixo.

Tabela 2 – O Mito do “Estado” Islâmico

Categoria Inicial: Grupos rivais – de um lado, os infiéis; do outro, os fiéis.

Categoria i: Estado Superior – o Estado Islâmico surge como a única alternativa legítima a todos os outros sistemas e, mais do que isso, como a encarnação do próprio Islão.

326 Cf. DELEMARRE, Jeu – Dabiq: Framing the Islamic State. A Utopian Roadmap to the New Caliphate.

Dissertação de mestrado. Universidade Radboud. julho de 2017. Disponível em:

https://theses.ubn.ru.nl/bitstream/handle/123456789/4718/Delemarre%2C_J.F.M._1.pdf?sequence=1. Consultado a: 25 de junho de 2018.

Categoria ii: Estado Funcional – o Estado cumpre com eficácia todas as funções que lhe competem.

Categoria iii: Cidadão Perfeito – o Estado Islâmico é composto pelos mais perfeitos indivíduos, que cumprem determinadas condições para o serem.

Categoria iv: Caminho Ideal – os passos a cumprir até atingir o objetivo final.

Categoria Final: Apocalipse – O Estado é apenas uma passagem, e parte de algo muito maior: a preparação para a batalha final que dará início a uma nova era.

Categorias narrativas do mito do “Estado Islâmico.” Elaboração própria, baseada no quadro de Goetze. (ver Tabela 1)