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Notas Introdutórias Sobre Trabalho e Alienação

4 Movimento das Relações de Trabalho no Capitalismo: do Mestre-artesão à “Acumulação Flexível”

4.1 Notas Introdutórias Sobre Trabalho e Alienação

Como afirma Tumolo (2003a), a história da metamorfose dos processos de trabalho no capitalismo é a história da progressiva alienação da atividade produtiva. Por isso é necessário compreender o significado do trabalho humano enquanto elemento ontológico e fundante do ser social, como também de seu estado alienado no capitalismo.

A subsunção do trabalho ao capital pressupõe a universalização da relação assalariada entre os produtores reais e o capital. Como se sabe, trabalho não é sinônimo de emprego, embora na sociedade capitalista haja essa identidade em diversos momentos. O trabalho não é, portanto, necessariamente subordinado ao capital. Apesar disso, quando pensamos em “trabalho” na administração, logo nos vem à mente a idéia de “trabalho assalariado” (SOLÈ, 2004).

A história apresenta hoje uma contradição curiosa: por um lado, mostra-nos que tudo em nossa sociedade é efêmero: “o que ontem era moderno está hoje ultrapassado; o que era referência segura revela-se, em pouco tempo, arcaico; as tendências históricas que julgávamos estabelecidas são rapidamente revertidas e sem qualquer cerimônia para com nossas expectativas” (LESSA, 2005a, p. 70). Em contrapartida, mostra-nos também que toda mudança tem de acontecer no e pelo mercado. O mercado aparece, pois, como transcendental, insuperável. “A mercadoria assume, na ideologia cotidiana, o estatuto ontológico da transcendentalidade: como substrato último e imutável, seria o suporte de toda e qualquer existência concebível” (idem).

Não obstante a isso, a existência da força de trabalho sob a forma de mercadoria tem seu marco histórico. “Antes de tudo”, afirma Marx (1988, p. 142), “o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza”. Na verdade, como

o próprio homem é parte da Natureza, o trabalho é também a automediação da Natureza consigo mesma (MÉSZÁROS, 2006). E podemos mesmo encontrar outras formas de “automediação da Natureza consigo mesma”, outras formas de trabalho, que não o trabalho humano. Entretanto, essas outras formas se dão de uma maneira puramente instintiva, qualitativamente diferente do trabalho humano.“Assim, a espécie humana partilha com as demais atividades de atuar sobre a natureza de modo a transformá-la para melhor satisfazer suas necessidades” (BRAVERMAN,1980, p. 49).

O que se deve ressaltar, entretanto, não são as semelhanças entre o trabalho humano e o dos outros animais, mas os aspectos que distinguem um do outro (MARX, 1988; BRAVERMAN, 1980). Essa distinção aponta para as características que são exclusivamente humanas e que tornam substancial a diferença entre ambos.

É oportuno resgatar aqui a clássica passagem de Marx (1988, p. 142) sobre essa questão:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade.

Ou seja, o que é preciso sublinhar é o fato de que o ser humano antecipa idealmente em sua cabeça seu objetivo e o modo pelo qual irá realizá-lo para satisfazer suas necessidades. É por isso que o trabalho possui um caráter eminentemente teleológico (LUKÁCS, s/d.; ANTUNES, 2003 e 2006). Segundo Lukács (s/d., p. 6), “o trabalho é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em funcionamento séries causais”. Enquanto a causalidade representa a lei espontânea em que todos os demais movimentos são dela derivados, “a teleologia é um modo de pôr - posição sempre realizada por uma

consciência - que, embora guiando-as em determinada direção, pode movimentar apenas séries causais” (ibidem).

Isto é, o ser humano projeta idealmente aquilo que pretende executar com o objetivo de satisfazer suas necessidades27, com base em possibilidades limitadas pelas circunstâncias históricas na qual atua, ou seja, diante de condições que independem de sua vontade. Por isso Lukács (s/d., p. 5) caracteriza, “com justa razão”, o “animal tornado homem pelo trabalho” como um ser que dá respostas.

O trabalho é a mediação necessária entre o homem e a natureza, independente da forma social. Dizia Gramsci (1976, p. 71) que “toda a sociedade vive e desenvolve-se, porque se insere numa corrente de produção historicamente determinada: onde não existe produção, onde não existe trabalho organizado (mesmo numa forma elementar) não existe sociedade, não existe vida histórica”. “O processo de trabalho”, com efeito,

[...] é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida. Sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais (MARX, 1988, p. 146).

O trabalho como atividade proposital, consciente, é o que permite o surgimento da sociedade humana. O famoso texto de Engels (2004), Sobre o Papel da Transformação do Macaco em Homem pelo Trabalho, já explicava, de acordo com os conhecimentos da época, como o trabalho permitiu o desenvolvimento das primeiras sociedades, criando a linguagem, sendo a base das relações sociais e permitindo o desenvolvimento do conhecimento acumulado e da cultura28.

27 “No processo de trabalho a atividade do homem efetua, portanto, mediante o meio de trabalho, uma transformação do objeto de trabalho, pretendida desde o princípio. O processo extingue-se no produto. Seu produto é um valor de uso; uma matéria natural adaptada às necessidades humanas mediante transformação da forma. O trabalho se uniu com o seu objetivo. O trabalho está objetivado e o objeto trabalhado. O que do lado do trabalhador aparecia na forma de mobilidade aparece agora como propriedade imóvel na forma de ser, do lado do produto. Ele fiou e o produto é um fio” (MARX, 1988, p. 144). 28 Segundo Braverman (1980), a idéia central de Engels permanece válida até hoje,

Nesse sentido, afirma Braverman (1980, p. 53) que “o trabalho que ultrapassa a mera atividade instintiva é [...] a força que criou a espécie humana e a força pela qual a humanidade criou o mundo como o conhecemos”. É também esta característica – concepção em mente antes de sua objetivação – que permite dissolver a unidade entre concepção e execução nas diversas formas de organização do trabalho, o que seria impossível caso a atividade produtiva fosse puramente instintiva. Por isso, nas sociedades humanas, o planejamento pode ser descolado da produção (idem).

Assim, se por um lado o trabalho é ontológico, constituinte do ser social, a separação entre concepção e execução e o surgimento da força de trabalho como mercadoria não o é, tampouco a força de trabalho como mercadoria comprada – e portanto subordinada – pelo capital. Segundo Lessa (2005b), o trabalho tal qual analisamos até aqui, em que se encontram indivíduo e natureza, sempre imediatamente, é uma mera abstração, pois é independente de suas formas históricas29.

Toda a interação com a natureza é uma interação da sociedade com a natureza, uma vez que não se pode falar em indivíduo sem sociedade. Por essa razão, o caráter teleológico do trabalho tem características específicas nas sociedades de classes, o que significa dizer que os momentos da concepção e execução são separados de acordo com a formação de classes. Assim, ao passo que as classes dominantes exercem a atividade intelectual, as classes subalternas – as que transformam diretamente a natureza - exercem o trabalho manual. Mas como a atividade intelectual necessita controlar as objetivações que transformam efetivamente a natureza, o traballho intelectual das classes dominantes não é outra coisa senão o desenvolvimento e aplicação de um modo eficiente de controlar as classes subalternas de acordo com seus intersses de classe. Surgem aqui, em um modo ainda muito rudimentar, os germes do que mais tarde formarão as chamadas “Ciências da Administração”. O trabalho manual, por sua vez, não perde seu momento teleológico, mas passa agora também a considerar sua

29 “Para evitar mal-entendidos, lembremo-nos de que, para Marx, uma abstração teórica não significa uma falsidade ou apenas uma ‘pulsão’ da subjetividade. Para o pensador alemão, universalidade e singularidade são distintas esferas de generalização do próprio real e, por isso, são igualmente reais. [...] o abstrato é o cancelamento, no processo real, de determinadas particularidades e, no pensamento, as categorias que refletem esse cancelamento” (LESSA, 2005b, p. 56). Desnecessário dizer que essa observação de Lessa vale para todas as categorias marxianas.

posição de classe no momento de sua prévia-ideação. Ou seja, a subjetividade do trabalhador manual passa a levar em conta o controle estranho ao qual está sujeito e não apenas as necessidades as quais pretende satisfazer. Ambas as atividades – a intelectual da classe dominante e a manual das classes subalternas – permanecem constituídas pelo momento da prévia-ideação seguida da objetivação, mas agora determinadas por suas posições de classe. As complexidades específicas que assume essa relação dão forma à relação ontologicamente estabelecida entre o gênero humano e a natureza ao longo da história.

“Por isso”, prossegue o autor (idem, p. 55-6), “quando examinamos o trabalho como manifestação particular de um momento histórico esta abstração não basta”. Para que se compreenda uma forma historicamente específica de trabalho, no caso, o da sociedade capitalista, “... é necessário que se incorpore à análise ‘abstrata’ o exame das mediações históricas que articulam o trabalho, como categoria histórico-universal, em sua forma histórico-particular ‘trabalho abstrato’”.

Segundo Tumolo (2003a), Marx traz em O Capital três categorias distintas e inter-relacionadas para tratar do trabalho na sociedade capitalista. O trabalho concreto, que é presente em qualquer sociedade; o trabalho abstrato, que constitui a substância do valor das mercadorias; e, completando a trilogia, o trabalho produtivo de capital, comprado por este para seu processo de autovalorização.

Lessa (2005a; 2005b), por sua vez, apresenta em sua análise os conceitos de trabalho concreto e trabalho abstrato, sendo que este se divide em trabalho abstrato improdutivo e trabalho abstrato produtivo. Podemos notar que em ambos os autores, cujas respectivas análises da sociedade do capital são derivadas do sistema marxiano, há um movimento da categoria trabalho, que representa tanto graus distintos de generalização, quanto o próprio movimento histórico da realidade. Isso porque o “trabalho abstrato produtivo” ou “trabalho produtivo de capital” só podem existir tendo como pressuposto o “trabalho abstrato”, isto é, a produção de mercadorias. A produção de mercadorias (trabalho abstrato), por sua vez, implica necessariamente a produção da vida humana – trabalho concreto, necessário em qualquer forma social. O caminho inverso, entretanto, não é verdadeiro.

A possibilidade de uma divisão do trabalho com base na dissolução entre planejamento e execução leva, nas sociedades de classes, a uma verdadeira oposição entre ambos (LESSA, 2005b) e torna real a alienação do trabalho. Segundo Mészáros (2006), essa alienação assume, primeiramente, uma forma política, em que a apropriação do excedente da produção social e a divisão entre o trabalho espiritual e o trabalho das mãos têm por base uma relação política direta. A propriedade privada é identificada com seu possuidor e ideologicamente justificada30. Como se origina esse processo e os mecanismos que

legitimam politicamente esta forma de alienação são questões cujas respostas são variadas, mas seu estudo não nos interessa aqui. Entretanto, cabe ressaltar que a alienação política é condição necessária para a afirmação da alienação econômica, ou universal (idem).

A alienação econômica pressupõe também o fortalecimento do mercado e do dinheiro. Quanto mais se fortalecem esses elementos, tanto mais perdem força as relações políticas que asseguravam a forma de alienação anterior (MÉSZÁROS, 2006). Só com a generalização da força de trabalho como mercadoria é que a sociedade capitalista pode se firmar, pois, como afirma Romero (2005, p. 80), “de nada vale uma grande massa de dinheiro sem que haja, ao mesmo tempo, outra grande massa de trabalho disponível”. Como a generalização da produção capitalista pressupõe a transformação de tudo que lhe for necessário, inclusive a força de trabalho, em mercadoria, “a premissa de toda a produção capitalista é, portanto, nivelar, no âmbito da circulação [mercado], todos sob um mesmo critério: possuidores de mercadoria, quer sejam dinheiro ou força de trabalho” (ROMERO, 2005, p. 81). As relações pessoais de dominação são assim substituídas por relações mercantis de dominação.

A origem da subsunção, portanto, representa a emergência de novas relações de hegemonia e subordinação, caracterizada pela substituição de relações pessoais de dominação por relações mercantis de dominação, em que a função/posição social do indivíduo (capialista, trabalhador ou proprietário de terra) parte da combinação dos elementos na produção (capital, trabalho e terra)” (ROMERO, 2005, p. 75).

30 Para um aprofundamento sobre essa forma de dominação diretamente política, cf. Marx (2005, p. 96-110) e Mészáros (2006).

É, então, concomitante à consolidação do mercado a subsunção formal ao capital, a qual será abordada no tópico seguinte.