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Trabalhando encarcerado

3.1. Notas sobre o conceito de ressocialização

O conceito de ressocialização, de nova socialização dos indivíduos, foi cunhado ao longo do desenvolvimento das ciências comportamentais, no século XIX, e é produto das formulações teóricas das ciências jurídicas positivistas. Tal conceito foi e é objeto de críticas por parte de juristas e pesquisadores do sistema prisional. Entre as críticas está a de funcionar como um recurso discursivo empregado pelos administradores da justiça criminal para realocarem “novos e utilitários fins” (CAPELLER, 1985).

Sob sua designação, diversas medidas institucionais foram implementadas, renovando o “repertório de utilidades”. Para a jurista Wanda Capeller (1985), o conceito de “ressocialização” costuma ser apropriado nos discursos de políticos e administradores, quando o sistema prisional apresenta a sua face mais obscura e cruel - em ocasiões de exacerbação de rebeliões e violências físicas que resultam em mortes -, ensejando e justificando a alocação de recursos públicos para a reforma e a construção de novas prisões, com oficinas de trabalho e instalações “humanizadas”, direcionando o problema para “a esfera mitológica”. Nessas circunstâncias, o “mito da ressocialização” é apresentado como uma alternativa efetiva de transformar os presos em “indivíduos honestos”, “responsáveis” e “felizes”, para que possam, assim, retornar ao seio da sociedade.

O conceito e o discurso jurídico sobre a “ressocialização” foram construídos concomitantemente com a racionalização do poder de punir. Dizem respeito ao momento histórico em que o “velho castigo”, observado nas penas de suplícios, foi substituído progressivamente na Europa pelo “castigo humanitário”, por uma nova forma de controle dos corpos, não mais dilacerados, e sim encarcerados. É quando se cristaliza o sistema prisional e a pena passa a ser, por excelência, a privação de liberdade. As reformas penais desses períodos buscaram, sobretudo, segundo Foucault (2004), mecanizar os corpos e as mentes para a disciplina do trabalho nas fábricas, surgindo, assim, o discurso da “ressocialização”, associado à ideia de requalificação dos indivíduos para a emergente sociedade capitalista.

A requalificação dos indivíduos para o novo sistema produtivo, político e social; a racionalização do castigo, enfim; a nova forma de controle dos corpos, se traduz na criação de um sistema prisional voltado para reconduzir os corpos desobedientes, mais pela violência simbólica do que pela violência física, ao universo da ordem e da harmonia social. Projetado para ressocializar por meio da disciplina e do trabalho, do isolamento e da obediência à hierarquia administrativa, o modelo arquitetônico panóptico foi implementado baseado no binômio tempo/valor do mundo industrial e da disciplina da fábrica. Nesse contexto, “o discurso dos „bons‟ no alto de sua caridade, é o de pretender recuperar os „maus‟” (CAPELLER, 1985, p. 131).

Com o passar do tempo, o conceito de ressocialização foi assumindo cada vez mais a conotação de reinserção no sistema produtivo. Ressocializar aparece quase como um sinônimo de profissionalizar e de viabilizar trabalho. Com a

emergência do fenômeno da terceirização de presídios, o discurso da “ressocialização” pelo trabalho ganhou destaque público, sendo apresentado nos materiais de propagandas do poder público e das empresas de segurança privada que administram prisões, como um item fundamental na execução da pena. Para os defensores da terceirização prisional, os benefícios que podem ser conquistados com o trabalho referem-se, sobretudo, à “profissionalização”, qualificando presos para o mercado de trabalho, e à diminuição da insegurança, evitando “distúrbios interiores”, como demonstra o artigo “Ressocialização pelo trabalho”, publicado no jornal O POVO, no caderno Opinião, no dia de 13 de maio de 2004, escrito pelo Gerente da PIRS:

Em meio ao acúmulo de problemas, comprovam-se os acertos de algumas inovações, revertendo anos de atraso, o abandono das soluções exigidas e o pouco caso que se tem feito para recuperação dos encarcerados (...). Não há termos de comparação entre a vida de um detento nos presídios mantidos por administração direta e os de co-gestão (...), pois a Penitenciária Regional do Cariri e Regional de Sobral e o novo Instituto Penal Professor Olavo de Oliveira aliam, necessariamente, trabalho e estudo, como medidas preventivas contra distúrbios interiores e como qualificação de mão de obra para facilitar o reingresso do apenado na vida social.

Públicas ou terceirizadas, as penitenciárias são instituições que evocam imagens socialmente degradantes, das quais a mais imediata é a do espaço de aflição, de tristeza e de revolta. Nelas, os presos experimentam os custos da violação das normas jurídicas. A prisão representa, sobretudo, a socialização na “sociedade dos cativos”. Segregados da família, dos amigos e de outras relações socialmente relevantes, espera-se que os presos reflitam sobre os seus atos criminosos e sintam a representação enérgica da punição. Por tal razão, alguns autores consideram a prisão como “a escola do sofrimento e da purgação”.

Tal compreensão remete, por sua vez, a outras imagens. Abrigando indivíduos socialmente classificados de “fora da lei” e “desajustados”, as penitenciárias não apenas os sujeitam a métodos de controle e de sofrimento, como possibilitam aos mesmos um espaço de interação e “aprendizagem”, “do qual resulta a „conversão‟ de novos adeptos a uma perspectiva criminosa. São, nesse sentido, „universidades do crime‟, - local de socialização e aperfeiçoamento de técnicas delinquentes” (PAIXÃO, 1987, p. 09).

Estas e outras razões têm dificultado a realização dos propósitos de reabilitação pautados pelo trabalho prisional, quando oferecido. Ademais, um conjunto de contradições se apresenta entre os propósitos de reabilitação e a realidade social de fora da prisão. Ainda que houvesse trabalho e programas de profissionalização para todos os presos, não se tem como garantir que serão empregados quando cumprirem suas sentenças. Se, em princípio, as penas de prisão foram formuladas para preencher a carência de mão-de-obra, atualmente, a situação, no Brasil, é de excesso de mão-de-obra. Com efeito, a probabilidade de um ex-presidiário trabalhador se tornar um desempregado, somando-se a milhares de homens livres desempregados, é muito grande (HASSEM, 1999).

Numa perspectiva sociológica, a análise do conceito de “ressocialização” deve levar em conta a sua apropriação por outras ordens de significados. Conforme Marion J. Levy Júnior, a “socialização” pode ser definida como o processo de interiorização da estrutura de ação de uma sociedade no indivíduo (ou grupo). Nesse sentido, considera-se uma pessoa “adequadamente socializada” quando, na sua vida cotidiana, demonstra ter inculcado os elementos das estruturas de ação da sociedade, de maneira que lhe permita o desempenho satisfatório dos papeis a ele atribuídos (LEVY JR, 1975).

Evidentemente, numa sociedade, é possível encontrar diversos indivíduos que não correspondem a estas expectativas. Não obstante, para que uma sociedade possa existir, ela deve transmitir satisfatoriamente a cada um de seus indivíduos a maior parte da “quota mínima” necessária à “adequada socialização”, o máximo dos modos de ajustamento à situação total, dos recursos de comunicação, das orientações cognitivas, atitudes inerentes à regulação dos meios, modos de expressão afetiva etc., a fim de torná-los capazes de se comportarem adequadamente nos seus diversos papeis ao longo da vida.

Considerando que o espaço destinado à “ressocialização” é a prisão, é possível imaginar que alguns dilemas se interponham na construção de pessoas ressocializadas pela disciplina do trabalho. A transformação de indivíduos delinquentes em pessoas “qualificadas” para uma relação harmônica com a sociedade presume a existência de espaços de relações socialmente dadas, das quais os indivíduos apreendem formas de pensar e agir garantidoras de práticas sociais voltadas para essa transformação. A aquisição dessas disposições, como sugere Bourdieu (1989), pressupõe a constituição e a existência de campos

fomentadores de um habitus76 capazes de fazer com que os indivíduos assimilem

disposições e mapas cognitivos de percepção do universo do qual fazem parte. Desse modo, se a construção de um indivíduo “ressocializado” tem como premissa a incorporação de valores e normas de conduta que se contraponham às do “antigo mundo do crime”, cabe aqui apresentar alguns questionamentos: que normas, valores, atitudes, saberes e habilidades são compartilhados pelo “mundo do trabalho” na prisão? Qual a relação entre o “mundo do crime” e o “mundo do trabalho” na perspectiva dos presos? Como preparar o indivíduo para a vida livre mantendo-o preso?

Em resposta a esta última pergunta, Hassen (1999, p.166) é enfática ao dizer que é como preparar um atleta para uma corrida deitando-o numa cama. “A idéia de ressocialização (para a qual o trabalho concorre na maioria dos argumentos, seja do Estado, seja da sociedade em geral), com o seu objetivo declarado de evitar que o apenado volte a delinquir, é absolutamente incompatível com o fato da segregação”. Nesse diapasão, diversos juristas que criticam a ineficácia da prisão declaram que é uma idéia contraditória querer reintegrar um indivíduo à sociedade distanciando-o dela77. Com efeito, os resultados obtidos após o cumprimento da sentença continuam muito distantes dos ideais ressocializadores.

O modelo punitivo de privação da liberdade adotado em nossa sociedade objetiva muito mais a proteção e a defesa social do que a “ressocialização”; fato este

76 O habitus inscreve-se nos corpos sob a forma de disposições duráveis, nas quais estão inscritos os esquemas de percepção e de ação que guiam as relações de conhecimento e de reconhecimento práticos dos sujeitos no interior dos campos. O habitus é, portanto, um sistema de “disposições inconscientes” que constitui o resultado da interiorização das estruturas objetivas (BOURDIEU, 1998). 77 Entre os juristas que questionam radicalmente a possibilidade das instituições prisionais alcançarem a “ressocialização” dos presos está Cezar Roberto Bintecourt. Os argumentos que orientam suas teses fundamentam-se na corrente do Direito chamada de Criminologia Crítica. “A criminologia crítica não admite a possibilidade de que se possa conseguir a ressocialização do delinquente numa sociedade capitalista” com base nos seguintes argumentos: “a) A prisão surgiu como uma necessidade do sistema capitalista, como um instrumento eficaz para o controle e a manutenção desse sistema. Há um nexo histórico muito estreito entre o cárcere e a fábrica. A

instituição carcerária, que nasceu junto com a sociedade capitalista, tem servido como instrumento

para reproduzir a desigualdade e não para obter a ressocialização do delinquente. A verdadeira função e natureza da prisão está condicionada a sua origem histórica de instrumento assegurador da desigualdade social. [...] b) O sistema penal, dentro do qual logicamente se encontra a prisão, permite a manutenção do sistema social, possibilitando, por outro lado, a manutenção das desigualdades sociais e da marginalidade. O sistema penal facilita a manutenção da estrutura vertical da sociedade, impedindo a integração das classes baixas, submetendo-as a um processo de marginalização. [...] Para a Criminologia Crítica, qualquer reforma que se possa fazer no campo penitenciário não terá maiores vantagens, visto que, mantendo-se a mesma estrutura do sistema capitalista, a prisão manterá sua função repressiva estigmatizadora. Em realidade, a Criminologia Crítica não propõe o desaparecimento do aparato de controle, pretende apenas democratizá-lo, fazendo desaparecer a estigmatização quase irreversível que sofre o delinquente na sociedade capitalista” (BITENCOURT, 2008, p. 116-117).

que pode ser comprovado por meio dos altos índices de reincidência criminal. Assim, ao que tudo indica, a verdadeira função da pena é criminalizar os indivíduos que “„sobram‟, levar o sofrimento e a morte para aqueles que são „demais‟ e que não são absorvidos economicamente, porquanto não são produtivos e não podem assumir integralmente papeis enquanto sujeitos de direito” (CAPELLER, 1985, p. 133). Em consonância com essa perspectiva, um preso que cumpre pena na penitenciária industrial terceirizada de Itaitinga faz uma crítica severa às políticas penais:

O nosso cotidiano está marcado pela divulgação maciça de uma violência que faz construir muros altos e grades reforçadas em casas e condomínios equipados com sofisticados equipamentos de segurança para quem pode pagar, ou nos induz a defender ações punitivas extremadas contra os criminosos. A violência é um mal intolerável que precisa ser combatido. Pode parecer paradoxal alguém que se encontra em privação de liberdade falar contra a violência. No entanto, tanto fui vítima como contribuí para o seu aumento. Os presídios brasileiros tornaram-se verdadeiros depósitos humanos e enterram sonhos, vidas, histórias. Os que aí se encontram não podem ser considerados como os únicos responsáveis pelo crescimento da violência, mas devem ser vistos como o seu efeito, isto é, aquilo em que a violência os transformou. Todavia, somos classificados como "lixo", "escória" do sistema. A prisão é um lugar tétrico em que encontramos pessoas cabisbaixas, deprimidas, irritadas, ansiosas, desesperadas, angustiadas e inseguras. Também há as crises decorrentes de rejeição dos amigos e do afastamento dos familiares. Contudo, é possível encontrar alegria, esperança, beleza, autoestima no caos. Apesar do "calvário" que vivenciamos no cárcere, precisamos manter a esperança e perseverar na luta para superar esta situação, mantendo a fé (e fé em Deus), e, mesmo em privação de liberdade e restringido a um espaço físico, jamais se deixar conduzir à barbárie. O Estado precisa desenvolver ações eficazes que possibilitem a ressocialização de pessoas em privação de liberdade. Atualmente, a ressocialização é um mundo de "faz-de-contas", e as ações voltadas para este fim quase não existem. As medidas tomadas pelo Estado visam, em sua maioria, reprimir os efeitos da violência, mas não prevenir. (MANOEL FIRMINO BATISTA. Presídio Prof. Olavo Oliveira II- IPPOO / CE)78.