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CAPÍTULO I ESTADO: revelando sua face oculta e complementar

3. Notas sobre o Estado Colonial e o racismo enquanto estrutura

Para finalizarmos esse capítulo, breves considerações sobre o Estado colonial e sobre o racismo enquanto estrutura serão tecidos. Acerca do primeiro, no que tange o Estado, Osório (2014) elenca quatro particularidades do Estado no que se refere sua importância na sociedade capitalista: 1. “O Estado é a única instituição que tem a capacidade de fazer com que interesses sociais particulares possam aparecer como interesses de toda a sociedade” (OSÓRIO, 2014, p.18); 2. O Estado se apresenta como uma comunidade; 3. O Estado é o

centro do poder político; e 4. O campo material, social, político e ideológico da sociedade são produzidos e reproduzidos, essencialmente, pelo Estado. Desse modo, "o elemento específico e essencial do Estado é, portanto, o poder e a dominação de classes” (OSÓRIO, 2014, p.19). O autor chama atenção para a necessidade de toda análise do Estado deve levar em conta seus aspectos políticos e econômicos, de maneira integrada, tendo em vista que ambas se situam sob as relações sociais capitalistas.

Um dos aspectos levantados por Osório (2014) e já discorridos na primeira parte deste capítulo, que faz com que o Estado, que é essencialmente poder e dominação de classes, se apresente como Estado de todos é a aparente ruptura que o mesmo faz entre economia e política. Ocorre que no capitalismo a economia parece ser regida sem influência da política, o que não se sustenta. Sem o Estado, o mercado teria ido à falência em muitas de, senão todas, suas crises. Ou seja, “falamos de Estado, portanto, para nos referir a uma condensação particular de redes e relações de força numa sociedade, as quais permitem que sejam produzidas e reproduzidas relações de exploração e dominação” (OSÓRIO,2014, p.21).

Não obstante, o autor indica que o "pacto cidadão” entre os sujeitos faz parecer que os indivíduos são iguais, e não influenciados e moldados de acordo com a classe a que pertence (OSORIO, 2014). Sendo assim, "o imaginário de igualdade apenas pode se sustentar (…) caso a existência social seja fragmentada, autonomizando a política e desligando-a da trama econômica e social” (OSÓRIO, 2014, p.23). Assim, percebemos a funcionalidade do discurso ora economicista, ora politicista que se pretende analisar o Estado e a sociedade de maneira desintegrada e residual, em muitos casos para atender a discursos da classe dominante. Bem, diante dessas características básicas do Estado no mundo moderno, identificamos o Estado brasileiro, pelos traços constitutivos de sua classe dominante, como um espaço no qual as particularidades acima elencadas por Osório (2014) são aplicáveis à questão racial e colonial. Para Gilroy (2007)

A modernidade pode também servir para introduzir os problemas colocados pela relação do capitalismo, da industrialização e da democracia com a emergência e consolidação do pensamento sistemático de raça. (GILROY, 2007, p. 78)

Ocorre que a classe dominante e ideologia que a conforma são brancas. E isso não se constitui enquanto uma característica subsidiária, de menor importância. A racialidade da classe dominante é também um aspecto constitutivo sob o qual a dominação e poder contidos no Estado se fazem valer sobre a sociedade. Nesse aspecto, constatamos a identidade racial

branca sob formato do racismo nas entranhas do Estado como provedor, em primeira instância, do embranquecimento da nação. Vale dizer que

A branquitude é entendida como uma posição em que sujeitos considerados e classificados como brancos foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade. Portanto, para se entender a branquitude é importante entender de que forma se constroem as estruturas de poder concretas em que as desigualdades raciais se ancoram (SHUCMAN, 2014, P. 136)

Notamos como desde o fim da escravidão o negro tornara-se um problema. A solução vislumbrada para lidar com essa “mancha” na história do país, foi também a difusão cada vez mais maciça e refinada das teorias raciais, que inscrevia nos corpos o seu destino. Aos negros e indígenas, a domesticação racial e/ou fim. E aos brancos, a perpetuação de sua cor, valores e costumes. Às praticas negras, como capoeira e candomblé, a proibição. Aos brancos, a liberdade de suas subjetividades e cultura. Sempre em prol da elite branca, o Estado não precisou legalizar o apartheid, tratou de negar aos negros as possibilidades de permanecerem existindo em um contexto de trabalho assalariado, no qual, a própria configuração do trabalho e dos trabalhadores era influenciado e definido pela raça e, consequentemente, pelo racismo.

A concepção do Estado aqui, portanto, passa pela função que ele desempenha na reprodução das desigualdades sociais, na qual mesmo em um Estado democrático de direito, instituído 100 anos após a abolição, parece estar “distante” dos segmentos violentados pelo racismo - africano e indígena - no Brasil na produção de leis que subsidiam os direitos aos mesmos. Diante da historicidade do Estado brasileiro, a maneira como o racismo está inscrito no imaginário social e a disposição racialmente estruturada das classes, a marginalização da população negra pode ser vista como um projeto colonial em plena execução - apesar de seu refinamento moderno.

Sem o racismo como um dispositivo que, primeiramente, permitiu ao senhor que o escravizado africano lhe servisse para a relação desumana indispensável para produção da riqueza colonial, e em segundo, deu assim condições para que a Europa acumulasse riqueza pela via da dominação colonial; o capitalismo não teria se desenvolvido tal como se desenvolveu. O capitalismo, as desigualdades, a questão racial, e todos os outros problemas sociais ou instituições sociais, são e tem como pilar de sua estruturação os insumos não superados da construção de nosso país. E em todos eles está, de maneira irreparável, velada ou não, o racismo como modus operandi.

O racismo é, também, as fantasias do imaginário branco sobre o corpo negro. Não é estritamente sobre o negro, afinal raça não é uma categoria biológica. Não há algo que essencializa o negro e o diferencia dos demais. A diferença construída para subsidiar o racismo é histórica e social. Racismo é, também, sobre como as identidades são construídas para serem dominadas. Ao falarmos de racismo estrutural, a linha de raciocínio se segue e se aplica à estrutura econômica, política e social. Ou seja, ao evocarmos o racismo à nível estrutural, visualizamos o lugar de onde são utilizados os instrumentos de exploração, coerção e dominação contra os negros, a partir das fantasias do imaginário branco e sua necessidade de autopreservação diante esse Outro-mercadoria; Outro-ameaça; Outro-inferior; Outro- subdesenvolvido; Outro-descartável.

Como visto, o Estado possui características apropriadas para a manutenção dos pressupostos coloniais, dado que a classe dominante do brasil possui a raça e o racismo como traço constitutivo de sua auto-organização enquanto classe. Se assumimos que “o racismo é a supremacia branca” (KILOMBA, 2019, p.78), o Estado, por possuir natureza de classe, agencia os interesses raciais que fundam tal classe dominante. Vale dizer que esse invólucro racial que direciona o fazer o Estado é velado pela ideologia do mito da democracia racial enquanto “elemento desarticulador da consciência do negro brasileiro” (MOURA, 1983, P.127) instituído no país. Quanto a isto:

A sociedade competitiva que substituiu à escravista favoreceu essa ideologia e fez com que algumas organizações negras procurassem assimilar certas normas de comportamento brancas, para não serem perseguidas em face de uma eventual radicalização dos seus propósitos. Criou-se, assim, um pacto entre a ideologia do colonizador e a do colonizado. (MOURA, 1983, p.127)

Junto à capacidade da classe dominante não ter a necessidade de se denominar branca, ou seja, assumir que a brancura que os une enquanto classe; a aparência de comunidade ilusória10 do Estado vem a funcionar como um espaço onde se firma o pacto entre tais

ideologias. No mesmo formato de suposta abertura ao colonizado-escravizado pós abolição, o colonizador-burguesia estabelece vínculos com o dominado mediante a intenção de mantê-lo sobre seu domínio. O mito da democracia racial, que escamoteia e romantiza tal pacto de submissão do colonizado, encontrará no Estado o seu maior ponto de articulação.

10 O Estado apresenta-se enquanto instituição apartada dos indivíduos. A sua aparente separação garante sua

disseminação enquanto comunidade ilusória, na qual haveria uma representação de todos sob um mesmo regime político. Trazendo à tona a visão de um Estado enquanto “ente universal e guardião de cada indivíduo” (PEREIRA-PEREIRA, 2009, p.13).

E é pela defesa da existência do Estado moderno que possui uma face oculta, denominada Estado Colonial, que percebemos como os manejos da classe senhorial se mantém como projeto social da classe burguesa atual, ambas unidas pela racialidade branca que a conforma e pela capacidade de direcionamento da dimensão política que ordena a vida social, tal qual é o Estado. Com vistas à execução permanente de uma guerra racial anti-negro e, consequentemente, de preservação e difusão da supremacia branco-europeia a quem esta classe dominante, apesar de brasileira, se referencia e se subordina. O branco brasileiro não é europeu, mas busca sê-lo.

Em síntese, se há uma dimensão invisível do Estado, que esconde sua natureza de classe (OSÓRIO, 2014) e que dá direcionamento ético para a dimensão que lhe é visível - o aparato do Estado; há também uma dimensão invisível que esconde no Estado moderno brasileiro sua natureza colonial-racial. Nomear enquanto Estado colonial a face invisível do Estado moderno é parte do desvelamento do processo de organização, funcionamento, permanência e refinamento do racismo na modernidade. Nesse sentido, aprofundaremos no capítulo a seguir a nossa compreensão sobre a relação do Estado e dominação racial, ao evocarmos o conceito de dispositivo de colonialidade.