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Nova identidade para gentios e judeus no cristianismo paulino da Galácia

4 GÁLATAS 3,26-29: ANÁLISE EXEGÉTICA E INCURSÕES À CARTA NA

5.1. Nova identidade para gentios e judeus no cristianismo paulino da Galácia

No que concerne à narrativa de Gl 3,10–4,7, Paulo apresenta, aparentemente, a Lei como um interdito para a liberdade do espírito. Se considerarmos Paulo em continuidade com o judaísmo, seria correto afirmar que ele estaria apresentando algum resquício de rejeição à lei? Ora, constitui um paradoxo afirmar que Paulo, em continuidade com o judaísmo, estaria rejeitando a Torá.

Segundo Gálatas, “antes que chegasse a fé, éramos guardados sob a tutela da lei para a fé que haveria de se revelar. Assim, a lei se tornou nosso pedagogo até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé” (Gl 3,23-24). De acordo com Juan Luis Segundo,

1 Daniel BOYARIN, A radical Jew, p. 137.

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com isso fica claro que, a partir de Cristo, já não estamos sob a lei. E como a circuncisão representa para quem a recebe, a aceitação do fato de estar sob a lei, Paulo acrescenta: vocês, que buscam a justiça na lei, se desligaram de Cristo e se

separaram da graça.2

De acordo com Rudolf Bultmann, na naturalidade com que se menciona o conteúdo permanente do no,moj (as exigências éticas do Decálogo – Rm 13,8-10; Gl 5,14), que é válido também para o cristão, revela-se que a identidade de sentido entre as exigências ritual-cúlticas e as éticas somente existem para o ser humano antes da pistis, e que na fé é dado um princípio crítico que atua irrefletidamente.3 Para E. P. Sanders, depois da negação da função positiva da lei na história da salvação (Gl 3,15-18), a pergunta natural é: qual é a função da lei, já que ela não salva? A lei foi dada por causa das transgressões e temporariamente (Gl 3,19); ela entregou todas as coisas ao pecado (Gl 3,22); ela nos guardou sob tutela (Gl 3,23); ela era nosso pedagogo (Gl 3,24). Paulo pergunta: que finalidade estava por trás da doação da lei?4

Para o pensamento paulino em Gálatas, judeu e grego são justificados pela fé em Cristo Jesus (Gl 3,28), e não pela guarda e complacência da lei. Na perspectiva paulina, a Lei teria um efeito pedagógico temporário para os judeus até Cristo, o que não exclui, no entanto, o papel por ela desempenhado como pedagoga em um determinado período da história da salvação, isto é, até a chegada da pistis (Gl 3,24-25). Para Jerome Murphy-O’Connor, a dimensão da vida de Jesus que Paulo realça é exatamente sua pistis.5

A necessidade da equiparação da condição do gentio com a do judeu aparece pela primeira vez em Gl 2,15s, onde Paulo afirma que mesmo os judeus, que não são gentios pecadores, são justificados apenas pela fé em Jesus Cristo. Essa afirmação indica o motivo pelo qual a situação dos judeus se equipara à dos gentios: todos necessitam da fé em Cristo.6 Ressalte-se no termo “todos” o caráter plural e multifacetário do cristianismo localizado na Galácia, que pode ter congregado judeus e gentios de diferentes matrizes étnicas, segundo a perspectiva paulina. Assim, segundo a opinião de Krister Stendahl, fica claro que o problema para Paulo era o de explicar que não há razão para impor a Lei aos gentios, que agora, no tempo messiânico de Deus, serão partícipes do cumprimento da promessa em Abraão,7 como em Gl 3,29, possibilitando-se, portanto, em Cristo, a dilatação da promessa da salvação.

2 Juan Luis SEGUNDO, O caso Mateus: os primórdios de uma ética judaico-cristã, p. 10. 3 Rudolf BULTMANN, Teologia do Novo Testamento, p. 323.

4 E. P. SANDERS, Paulo, a lei e o povo judeu, p. 76.

5 Jerome MURPHY-O’CONNOR, Paulo: biografia crítica, p. 213. 6 E. P. SANDERS, Op. cit., p. 80.

Portanto, os que são de Cristo – que foram trazidos à vida por ele e repetem a fé/fidelidade dele em sua conduta – são os genuínos descendentes de Abraão (Gl 3,26-28).8

Quanto a Gl 3,26-29, o impacto social das diferenças sociais, étnicas e de gênero na sociedade gera a necessidade da elaboração de um novo ethos, em uma relação de mutualismo, a partir da ética cristã, que por sua vez não somente colide com a realidade social vigente, como força antagônica, como também a questiona. Para Gerd Theissen, há uma extraordinária dialética entre o ethos social e a realidade social nas congregações paulinas. Em Gl 3,28 há uma dinâmica moral e social caracterizada pelo mutualismo e criadora de igualdade. Esse ethos radical é preservado numa realidade social virtual dos sacramentos: “Como cristãos batizados e partícipes no Senhor, todos são iguais”,9 portanto, não iguais entre

si e sim iguais em Cristo, novo referencial para a unidade nas comunidades cristãs.

O ethos cristão compreende uma perspectiva messiânica mais propensa à concepção do Cristo sofredor, que ao assumir a dimensão política e social da vida colidirá indubitavelmente com a realidade social vigente e provocará certas fraturas na compreensão judaica de um messianismo convencional e na medida das expectativas vigentes. Tal compreensão messiânica poderia estar presente nas possíveis disparidades e conflitos refletidos nas diversas concepções do querigma cristão no cristianismo primitivo, o que estaria obviamente presente no contexto de Gálatas, pelo menos quanto ao novo ethos cristão e à filiação divina pela fé em Cristo Jesus (Gl 3,26).

Para a elaboração paulina do ethos cristão, Paulo sugere uma inovada compreensão judaico-helenística, como também no que concerne aos sinais de ruptura, continuidade e inovações teológicas e antropológicas presentes em Gl 3,28-29. Mark G. Brett considera que o argumento de Paulo constitui precisamente uma atribuição de identidade étnica para os Gálatas que se opõe ao ethos judaico, pois a visão paulina em Gl 3,28-29 é que o espaço social está definido por Jesus Cristo, onde não há judeu nem grego, não há fêmea nem macho, não há escravo nem livre.10

Na concepção paulina do ethos cristão, exclui-se qualquer possibilidade de homogeneização dos grupos socioculturais por sangue ou genealogia. Para Brett, o conceito

8 Jerome MURPHY-O’CONNOR, Paulo: biografia crítica, p. 215.

9 Gerd THEISSEN, The social structure of Pauline communities: some critical remarks on J. J. Meggitt, Paul,

poverty and survival, Journal for the Study of the New Testament, v. 24, n. 2, 2001, p. 84.

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bíblico de etnicidade, segundo a tradição de Esdras e Neemias, aponta simplesmente a genealogia e tipo de sangue, enquanto que o conceito paulino de condições de ser um povo distingue a descendência física da espiritual (Gl 4,29).11 Entretanto, quanto a Gl 3,28-29, não

se trata meramente de uma oposição do argumento de Paulo ao ethos judaico, quando se trata da “atribuição de identidade étnica para os Gálatas”, como afirma Bret, e sim de uma nova

compreensão do judaísmo, que possibilitará uma linha tênue, fluida e tensa entre o judaísmo e

o cristianismo, imersos no ambiente greco-romano.

Na concepção de Shaye J. D. Cohen,12 no que diz respeito à nova compreensão do

conceito judaísmo há três estágios, que correspondem a definições genealógicas e geográficas, religiosas ou culturais, como também políticas e de cidadania, de que já tratamos com mais pormenores no primeiro capítulo da tese. O uso feito por Cohen do conceito jewishness, que aproximamos do termo judaíta ou judaico, reúne os estágios acima mencionados, contudo, numa nova perspectiva da compreensão da identidade judaica e do judaísmo, a partir das diversas características judaico-helenísticas que fluem e variam no contexto greco-romano, segundo o dinamismo histórico-cultural e a mobilidade sociogeográfica na diáspora.

A identidade judaica, nessa perspectiva, já não se configura somente pelos fatores genealógicos, de sangue ou geográfico/territorial. Na compreensão de Daniel Boyarin, o conceito em inglês jewishness desestabiliza muitas categorias de identidade, pois não é nacional, nem genealógica, nem religiosa, mas é todas elas, em mútua tensão dialética.13

Quanto à questão do território como elemento constitutivo e até fundamental para a compreensão da identidade judaica, Boyarin o relaciona e situa no contexto da diáspora, e assevera que a identidade judaica da diáspora se fundamenta na memória comum de um espaço partilhado e na esperança dessa partilha num futuro que é infinitamente adiado. O espaço em si é transformado em tempo. A memória de território tem construído uma possível “desterritorialização”, e parodoxalmente, a posse de um território pode ter impossibilitado a “diáspora jewishness”.14

Conceitos como território e nação, que antes se constituíam como elementos de primeira mão para a compreensão da identidade judaica, desestabilizam-se pela tensão

11 Mark G. BRETT, Interpreting ethnicity, p. 12.

12 Shaye J. D. COHEN, The beginnings of Jewishness, p. 69-106. 13 Daniel BOYARIN, A radical Jew, p. 244.

dialética, mesmo sendo constitutivos da mesma; na mobilidade da diáspora e desde a dinâmica da história no contexto greco-romano a identidade judaica vai adquirindo uma nova fisionomia, um novo status e uma nova configuração, a partir da inserção de judeus e de gentios. Aí situamos Paulo e sua autocompreensão cristã.

Portanto, a autocompreensão paulina está impregnada pelos valores absorvidos de sua compreensão judaico-helênico-cristã e demarcada pelo ethos radical, onde as oposições e rupturas com certos elementos das antigas e atuais tradições geram crises, inovações, exigem reformulações e estabelecem novas relações, constituindo assim o que podemos denominar

uma nova compreensão da identidade judaica, com novos componentes das variadas

etnicidades, e que incidirá na formação das identidades na comunidade paulina da Galácia.