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2 HERESIA, CRIME, PSICOPATIA: DISCURSOS E PRÁTICAS EM TORNO DAS

1.5 Novamente acordados para brilhar à luz da liberdade: saiam, caudilhos!

“Saiam, caudilhos”, que não há mais no Brasil estudantes nem operários autênticos, professor nem trabalhador honesto, cientista nem intelectual verdadeiro que deseje, que queira, que admita a continuação de uma ditadura não apenas policial mas assassina. Ditadura inimiga do que a cultura brasileira tem de melhor. Inimiga da dignidade humana. Inimiga das mais puras tradições e das melhores esperanças do Brasil.155

Finalizava com essas palavras o discurso de Gilberto Freyre, proferido na Faculdade de Direito, por ocasião de vigília pela morte do estudante Demócrito de Souza Filho, no dia 03 de março daquele ano, 1945, enquanto protestava junto a outros estudantes, intelectuais, operários e ativistas contra a ditadura do Estado Novo e a interventoria de Agamenon Magalhães. Na ocasião, um comício na Praça da Independência, o próprio Freyre discursava na sacada do prédio do Diário de Pernambuco quando a polícia baleou o estudante e o operário Manuel Elias dos Santos.

Por todo o Brasil diferentes setores da sociedade, burlando os mecanismos de censura instalados, cada vez mais denunciavam a ditadura e pediam por mais liberdade e democracia. Os próprios militares, que mesmo em precárias condições de equipamentos haviam lutado contra a Itália fascista no próprio território italiano, não poderiam mais apoiar um regime semelhante aquele contra o qual fora mandado guerrilhar.156 E mesmo com os vários comunicados de Vargas que manteria as eleições de dezembro de 1945, como programado, foram os militares, mais uma vez, que destituíram a figura maior do Estado Novo de seu posto, temendo qualquer manobra que pudesse mantê-lo mais anos no poder. Com a destituição de

155 Saiam, caudilhos. Diário de Pernambuco. Recife, 11 de abril de 1945. P. 1-2.

Vargas, também seus interventores estaduais, em grande parte, foram substituídos por membros do judiciário.157

Mas, para o povo de santo de Pernambuco, mais importante que o reestabelecimento da democracia no país, fora a aprovação de uma nova Constituição em setembro de 1946. Após oito anos de total impedimento, os brasileiros tiveram sua liberdade de associação, em torno de quaisquer que fossem os interesses comuns, reconquistada. Esta era uma questão necessária para a reorganização dos partidos políticos que concorreriam às novas eleições e que fora reafirmada na nova Constituição de 1946 em seu capítulo que versava sobre os direitos e garantias individuais:

§ 12 - É garantida a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma associação poderá ser compulsoriamente dissolvida senão em virtude de sentença judiciária.158

Juntamente com o direito de livre associação, a nova Constituição também reafirmou a liberdade e inviolabilidade de consciência e crença:

§ 7º - É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.

§ 8º - Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigação, encargo ou serviço impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituição daqueles deveres, a fim de atender escusa de consciência.159

No entanto, como podemos ver no artigo sétimo, duas prerrogativas ainda foram mantidas para que as associações religiosas fossem reconhecidas: elas não poderiam contrariar a ordem pública e os bons costumes, elas também deveriam adquirir personalidade jurídica de acordo com a lei civil. Nesse sentido, as à época intituladas de “seitas africanas” ainda estavam limitadas a tais questões para se legitimarem como associação religiosa. Somava-se a essas questões constitucionais a manutenção, no recente Código Penal de 1940, de artigos que criminalizavam o curandeirismo e o charlatanismo,160 os mesmos tipos que outrora foram

utilizados pela portaria Nº 193 de 1938 do Secretário de Segurança Pública, Etelvino Lins, para proibir o funcionamento das “seitas africanas” e centros de “baixo-espiritismo”.

157 Ibidem, p. 79.

158 Constituição dos Estados Unidos do Brasil, 1946. 159 Ibid.

Por outro lado, a partir do momento que foram aprovados novo Código Penal, em 1940, e nova Constituição, em 1946, a portaria acima referida tornava-se, ao menos teoricamente, revogada tacitamente, posto que tomava como referência artigos tanto do Código Penal como da Constituição antigos. Dessa sorte, a partir de 1946, não deveria haver mais qualquer portaria ou lei que proibissem expressamente, como nos anos anteriores, o funcionamento dos templos afro-pernambucanos. Ao menos no que diz respeito aos pré-requisitos legais, os “Ilus” poderiam voltar a ressoar “nas noites encantadoras do Recife”, “os passos leves das dançarinas em transe” poderiam voltar a “marcar os seus hieróglifos confusos sobre a terra dos terreiros”, os cânticos poderiam voltar a subir “em direção das constelações celestes, do pestanejar amistoso das estrelas...”. Os orixás e encantados agora poderiam ser novamente acordados para brilhar à luz da liberdade.”161 Desde que respeitadas as exigências da lei.

Mas, os afro-religiosos de Pernambuco ainda tinham bastante com que se preocupar. Em fevereiro de 1948, deixava o cargo de interventor Amaro Gomes Pedrosa para dar lugar ao novo governador eleito, Barbosa Lima Sobrinho. O último assume o cargo de Governador do Estado após um conturbado processo eleitoral que se iniciara em janeiro do ano anterior, como previsto na nova constituição estadual, aprovada em assembleia em 25 de julho de 1947. Entre os seus secretários, escolhe João Inácio Ribeiro Roma, antigo delegado da Delegacia de Investigações e Capturas para dirigir a Secretaria da Segurança Pública. João Roma era velho conhecido dos xangozeiros e catimbozeiros de Pernambuco. Como vimos, foi ele o delegado responsável por executar a portaria que obrigava o fechamento de todas as “seitas africanas” e centros de “baixo-espiritismo” do Estado.

Por outro lado, agora o Brasil vivia uma nova realidade social e política, na qual, talvez, práticas tanto condenadas como a repressão de outrora não fossem mais toleráveis. Vejamos então, nos capítulos seguintes, nessa nova República democrática, como foi a relação dos afro- religiosos com as autoridades e com a sociedade e quais foram as estratégias por eles utilizadas para finalmente afirmarem-se e legitimarem-se socialmente.

3 O XANGÔ NO COTIDIANO: FOLCLORE, ARTE, ANTROPOLOGIA, CRIME E