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4. JUDICIALIZAÇÃO DOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADENA JUSTIÇA

4.2 Judicialização da defesa dos direitos humanos das vítimas

4.2.1 Novos atores internacionais (ONGS e indivíduos): demandantes sociais

A condição social de novos atores internacionais atribuiu-se a progressiva e emergente influência política internacional de organizações não-governamentais e indivíduos em controvérsias entre Estados, governos e populações. Os denunciantes de delitos internacionais atuavam em espaços onde não mais persistia o monopólio do Estado na exclusiva administração do sistema mundial (VILLA, 1999. p. 21). Tais denúncias públicas expressavam demandas sociais contra impunidades contemporâneas de crimes contra a humanidade derivados dos princípios do Tribunal de Nuremberg (ex. escravidão e deportação) e outros, aos quais restou atribuído este status específico por normas internacionais posteriores como foi, por exemplo, o caso da tortura em 1975.

Novos atores internacionais desenvolveram denúncias públicas e organizadas contra a impunidade de torturas e omissões dos Estados em relação a trabalhos forçados de prisioneiros de guerra estrangeiros. Nestas situações referidas as organizações não- governamentais passaram a exercer marcantes formas de influência institucional na política internacional. A NGO Global Network (2011) definiu as ONGs como qualquer grupo de cidadãos voluntários organizado, sem fins lucrativos, em nível local, nacional ou internacional. Essas associações cidadãs poderiam pretender realizar vários serviços, desempenhar funções humanitárias ou ainda se concentrarem em questões especifícas como direitos humanos, meio ambiente ou saúde. Tais organismos institucionalizados tentariam retomar e auxiliar a missão de unificar os povos em seus diversos níveis, no mínimo, ao que se refere a símbolos e aspirações comuns.

Mesmo assim, instituições governamentais nacionais continuaram, igualmente, como produtoras de informação histórica e elaboradoras de estudos para exposição política de impunidades e omissões internas e internacionais. As comissões chilenas governamentais pesquisaram os dados e deram publicidade aos relatórios: Rettig sobre as vítimas mortas no governo Pinochet e o Valech sobre os torturados por agentes do regime militar no Chile de 1973 a 1990. O primeiro relatório embasou provas e fez parte das referências do juiz Baltasar Garzón para dar sequência a demanda penal contra Pinochet na Audiência Nacional da Espanha. O segundo foi pubblicado em 29 de novembro de 2004, quando esse ex-presidente militar já havia retornado ao território chileno.

A justiça inglesa estabeleceu um importante precedente jurídico no caso Pinochet sobre a aplicação temporal da convenção contra a tortura de 1984 no Reino Unido. Contudo, os representantes britânicos do poder executivo detém a competência determinante em relação as decisões finais de extradição de réus para outros Estados. Uma decisão política e ministerial determinou a falência da extradição do senador vitálicio à justiça espanhola.

Porém, este fim não retira a importância da atuação política das ONGS em defesa dos direitos humanos das vítimas como, por exemplo, a Anistia Internacional e a Human Rights

Watch257. A primeira pediu as autoridades britânicas a prisão de ex-ditador em Londres desde 10 de outubro de 1998. A segunda juntou-se também aos participantes não-governamentais nesta controvertida demanda judicial nos tribunais britânicos.

O caso do britânico William Beausire foi informado também, por três organizações humanitárias258, à Scotland Yard antes da detenção do ex-presidente chileno. Beausire desapareceu depois de haver sido entregue a polícia chilena em 1975. Outras vítimas europeias de diferentes Estados fundamentaram outros pedidos de extradição além do realizado pela justiça espanhola. A Suíça reclamou a prisão do acusado pelo caso de Alexis Jaccard, um homem com dupla nacionalidade suiça e chilena, que desapareceu no Chile, em 1977. Os suíços formalizaram pedido de extradição do ex-ditador ao Reino Unido em 11 de novembro de 1998 e, posteriomente, franceses e belgas também apresentaram seus próprios requerimentos.

A construção social do consenso transnacional é uma das ações pragmáticas na defesa de direitos humanos das ONGs. Estas organizações elaboram estratégias especifícas para atingir seus objetivos de condenação de crimes contra a humanidade e para contestar a tolerância política a impunidade histórica de atos ilícitos tipificados por normas penais internacionais. Numa primeira fase, estes novos atores internacionais têm como âmbito de atuação a sociedade nacional e quando o problema ultrapassa as fronteiras estabelecem contatos pessoais e institucionais que permitem a criação de identidades coletivas globais.

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A Human Rights Watch (2012) é uma organização independente dedicada, internacionalmente, a defesa de direitos humanos violados no mundo. Seu objetivo declarado é realizar investigações e organizar estratégias para advogados construirem intensa pressão para condenações judiciais e aumentar o custo dos abusos de direitos humanos. Reune também especialistas de diversas formações acadêmicas e nacionalidades como advogados, jornalistas etc.

258 Foram três organizações humanitárias referidas desde o princípio no caso Pinochet, mas somente duas foram

nomeadas ao público em geral. No decurso do processo mais ONGs contribuiram com informações no processo e proferiram seus pareceres sobre o caso Pinochet como amicus curie (amigos da corte) na Câmara dos Lordes. Os juízes britânicos conseguiram reunir diversas fontes e provas para fundamentar a decisão pela ausência de imunidade do réu em casos de acusação de torturas.

Tais identidades internacionais lhes permitiram definir estratégias coordenadas, que fixaram métodos de ação e campos de atuação. Os métodos apareceram, geralmente, de duas formas: sensibilização da opinião pública e ação direta. Nessas duas formas de atuação é fundamental a sincronia com a mídia nacional e internacional. A senbibilização da opinião pública para que exerce pressão sobre os responsáveis pela decisão e execução de projetos e políticas. A ação direta consiste, muitas vezes, na execução de ações nos próprios lugares onde se desenvolvem os projetos considerados não procedentes (VILLA, 1999. p. 24-29).

A Anistia Internacional atuou diretamente no caso Pinochet e opinou, em sentido contrário, a decisão da Corte Internacional de Justiça de fevereiro de 2012 que afetou o caso Ferrini. Além disso, em favor de sua própria campanha internacional pela competência universal, os efeitos jurídicos do caso Ely Ould Dah foram também significativos para plano de pressão política para defesa internacional dos direitos humanos na França e no espaço europeu em casos de crime de tortura. A campanha “Competência Universal: um dever dos Estados de legislar e implementar”259

prega que todos os governos reconheçam em suas legislações o importante papel que os tribunais nacionais podem desempenhar no exercício da competência universal.

Nas reivindicações deste movimento global260, as legislações deveriam atribuir o dever das autoridades nacionais em investigar e processar qualquer suspeito de crimes internacionais e a estabelecer reparações para as vítimas e suas famílias. A campanha destaca seis crimes que merecem o ajuizamento em tribunais nacionais como graves violações aos direitos humanos cometidas em qualquer parte do mundo: o genocídio, os crimes contra a humanidade, a tortura, as execuções extrajudiciais e os desaparecimentos forçados. Existem previsões em legislações nacionais do reconhecimento da competência universal, em pelo menos um dos seis crimes, em mais de 125 países (AMNESTY INTERNATIONAL. 2012).

A diversidade jurídica dos fenômenos transnacionais transformou as capacidades políticas da pluralidade dos atores internacionais em utilizar e combinar a coerção, a troca e a negociação (BADIE e SMOUTS, 1999. p. 231) para definição de valores comuns. Nos tribunais franceses, vítimas mauritanas e refugiadas no Hexágono conseguiram, por exemplo, a condenação penal do capitão Ely Ould Dah por seus atos de tortura na Mauritânia, com

259 O título original da campanha: Universal Jurisdiction: the duty of states to enact and implement legislation 260 A ideia do movimento foi baseada num artigo intitulado “Os prisioneiros esquecidos” redigido pelo advogado britânico Peter Benenson e publicado no Observer. O artigo lançou a campanha “Apelação pela Anistia 1961” em nome de dois estudantes portugueses que foram pressos por fazerem um brinde a liberdade. Outros jornais aderiram a campanha pelo mundo em favor da liberdade de expressão e religião. A primeira reunião internacional do movimento contou com delegados da Alemanha, Bélgica, Estados Unidos, França, Irlanda, Reino Unido e Suíça (AMNESTY INTERNATIONAL. 2012).

representação e auxílio da Fédération internationale des ligues des droits de l’homme (FIDH) e da Ligue des droits de l’homme (LDH). Posteriormente, a Association Mauritanienne des

Droits de l'Homme (AMDH) apoiou em conjunto a atuação das ONGs francesas em defesa

dos direitos humanos violados das vítimas.

O condenado militar mauritano havia sido convidado pelo exército francês para o curso frequentava desde agosto de 1998, na França, no momento de sua detenção em 1999. Situação distinta da viagem de Pinochet que chegou a dizer que se sentia traído pelo Reino Unido em 7 de novembro de 1998, na primeira declaração pública que realizou após sua prisão em Londres. As relações diplomáticas entre franceses e mauritanos tornaram-se tensas também por questões oficiais de convite e de hospitalididade em relações governamentais na política internacional.

Entre as três mencionadas ONGs, a FIDH liderou o monitoramento da ausência de providências e falta medidas tomadas após as condenações daquele réu estrangeiro fugitivo. Em 1922, esta federação internacional foi fundada e reuniu vinte organizações nacionais entre as quais está a francesa LDH, mas que desde a fundação contava também com membros de origem germânica. Seu lema é “Paz para direitos humanos”.

Em 1927, suas propostas eram a criação de uma declaração internacional de direitos humanos e um tribunal penal internacional. A partir de 1948, a FIDH (2010) passou a declarar em seu estatuto, como propósito de sua fundação (art.1º), a defesa e implementação dos princípios estabelecidos na Declaração universal dos direitos humanos da ONU. Atualmente, fazem parte deste movimento internacional 164 organizações de direitos humanos pelo mundo (FIDH. 2013).

No caso Ely Ould Dah, as solicitações por informações ao governo da França observaram os períodos de golpe de Estado e as crises enfrentadas pelos mauritanos no território nacionais. Medidas efetivas para execução da pena de prisão do condenado torturador foram requeridas inclusive com referência do paradeiro do fugitivo em seu país de origem. A mauritana AMDH (2013) era um referencial de confiabilidade da localização do condenado.

Esta associação foi criada em 1991 num contexto de precedentes violações a direitos humanos na Mauritânia. Os militantes associados foram vítimas da repressão do regime militar de Ould Taya. A ideia inicial era aderir as lutas internacionais contra a escravidão, a impunidade, a tortura e assegurar outros direitos do homem.

A AMDH filiou-se a FIDH e trabalha em colaboração com a ACNUR. Suas campanhas têm merecido destaque em estabelecer mecanismos de integração dos refugiados

mauritanos no Senegal e no Mali. No século XX, as ONGs de defesa de direitos humanos desempenharam atividades de denúncias públicas e observações realizadas, anteriormente, por organizações sem fins lucrativos instituídas antes da lei de registros francesa de 1909.

A Ligue des droits de l’homme foi fundada em 4 de junho de 1898, por Ludovic Trarieux para defender Alfred Dreyfus, um oficial judeu do Estado-Maior francês acusado e condenado261 por espionagem em favor da Alemanha. A pressão da opinião pública e novas provas mostravam a injustiça e o erro daquela condenação penal. Após anos de procedimentos judiciais declararam a inocência do oficial na justiça francesa e restituiram-lhe seu posto militar antes da primeira grande guerra.

O caso Dreyfus marcou o espírito de contestação social as Razões de Estado. A LDH traz em sua história uma tradicional defesa dos direitos individuais do homem na França. Esta organização se opôs também as torturas perpetradas pelo exército francês na Guerra da Argélia. A trajetória histórica das ONGs participantes do caso Ely Ould Dah mostrou uma luta contra a impunidade e a tortura monitorada pelos denunciantes nos níveis nacional e a internacional.

A falta do pagamento das indenizações às vítimas e a ausência do efetivo cumprimento da pena de prisão pelo condenado não retiraram a importância social do reconhecimento jurídico dos direitos humanos violados e do sofrimento vivido. O envolvimento político, a atuação social e a participação jurídicas das ONGs assumiram responsabilidade de observação de medidas efetivas e monitoramento de violações a direitos humanos em tribunais nacionais e até no sistema europeu de proteção de direitos humanos no caso Ely Ould Dah. Luigi Ferrini denunciou seu próprio sofrimento e demandou contra a impunidade das feridas históricas que carrega consigo desde a Segunda Guerra Mundial.

O pleito de Ferrini terminou por unir-se ao grupo dos militares internados italianos. Contudo, é integrante de fato de um grupo ainda mais esquecido, os civis do tempo de guerra. Estes passaram a ter suas necessidades humanitárias reconhecidas pelo direito internacional, somente, na quarta convenção de Genebra de 1949. Ex-prisioneiros de guerra e ex- trabalhadores forçados denunciaram complexas questões políticas em todas as instâncias da justiça italiana e até a Corte Internacional de Justiça. Os julgadores examinaram situações pretéritas internacionais na justiça nacional e julgaram os limites sociais das pretensões políticas (caso Pinochet), da defesa dos direitos humanos (caso Ely Ould Dah) e das expectativas de direito (caso Ferrini) em acusações de crimes contra a humanidade.