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CAPÍTULO 2: A POLÍTICA DE ALIANÇAS ENTRE ÍNDIOS E NÃO-ÍNDIOS

2.1. Novos olhares sobre os índios no Nordeste

Discutir a temática indígena no Brasil significa refletir sobre estereótipos construídos e arraigados nas memórias do senso comum. Com a afirmação exacerbada da cristalização das culturas indígenas vinculadas a um passado distante, mais especificamente o momento inicial da colonização portuguesa no Brasil, desconsiderando assim, o longo período de contato e processos de trocas culturais, violentos ou espontâneos entre índios e não-índios.

63 O discurso da “aculturação”, apesar de questionado pelos estudos antropológicos e históricos mais recentes, ainda é predominante, provavelmente por servir bem ao propósito de justificar as invasões das terras indígenas, como também, para o Estado omitir-se das “despesas” com a assistência aos indígenas. Um índio que, de acordo com esse discurso, teria se transformado num tímido esboço do que foi um dia. Pesando também as situações dos que em várias regiões do país vivenciaram um longo período de contato, deixando de falar suas línguas nativas. Por essas razões, os que enfatizam tal discurso, os desclassificam, denominando-os apenas como “remanescentes” de indígenas.

Porém, surgiram novas abordagens acerca do território e identidade étnica indígena, evidenciando que as mobilizações pelo reconhecimento étnico perpassam indissociavelmente pela conquista da demarcação territorial. Expressando assim, os significados da terra para as mobilizações pelo direito à posse da mesma e a reafirmação étnica. Esse índio deixando a posição de coadjuvante para ser protagonista de sua própria história, e o território pensado como um espaço, não só de sobrevivência, mas também, de resistência.

A noção de territorialização é definida como um processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (OLIVEIRA, 1998, p. 58-59).

O autor acima citado, discutiu as experiências dos indígenas no Nordeste, calcadas em processos de mobilizações para afirmações étnicas, com a emergência de novas identidades e a reinvenção das etnias em um processo chamado de etnogênese. Este processo ocorreu a partir do que denominou de misturas interétnicas, provocando a incorporação dos índios nos contextos social e econômico na Região.

Para discutir as relações entre identidade e território, considerando os processos históricos vivenciados pelos indígenas no Nordeste, são fundamentais as reflexões acerca da etnicidade e de conceitos tais como, territorialização enquanto processo de reorganização social; visibilidade social e indianidade. Outro conceito importante é o de "índios misturados" (OLIVEIRA, 1998), sujeitos a contatos interétnicos, pois a partir dele é possível estudar os índios no Nordeste, particularmente aqueles assistidos pelo Padre Alfredo Dâmaso.

Com a extinção dos aldeamentos no Nordeste no final do século XIX e a destituição dos territórios, os indígenas deixaram de ser vistos enquanto coletividade e passaram a ser considerados “misturados”. Ocorrendo a negação dos direitos dos índios e também a exclusão da historiografia oficial no período e posteriormente (OLIVEIRA, 1998). Neste sentido, na

64 condição de anonimato, os indígenas perceberam a necessidade de estabelecer mediadores para tornar possível o diálogo com o SPI, que naquele momento ocupava-se de povos indígenas de outras regiões do Brasil, cujo contato com não-índios, teria sido menos invasivo.

É partir da observação desse contexto, que foi possível compreender a atuação do Padre Alfredo Pinto Dâmaso em defesa dos indígenas. Em suas narrativas eles afirmam que a nomeação do sacerdote como pároco das cidades de Bom Conselho e Águas Belas, localizadas em Pernambuco e essa aproximação ocorreu após a sua visita a Aldeia Carnijó, acompanhado do Bispo de Garanhuns e outros padres, na ocasião para escolha do pároco responsável pela capela naquela comunidade.

Os Carnijó/Fulni-ô, foi o primeiro povo indígena reconhecido pelo SPI no Nordeste, onde a intervenção/mediação do Pe. Alfredo foi fundamental. O que desencadeou as mobilizações de outros povos, que também contaram com o apoio do religioso para serem reconhecidos com a instalação de postos indígenas nas terras onde habitavam.

É necessário pensar os índios no Nordeste em suas relações com a chamada sociedade envolvente, estabelecendo um viés considerando as relações socioculturais e econômicas sendo importante a compreensão do contexto histórico. E a partir da perspectiva das reflexões sobre os “costumes”, como um novo viés proposto pelas reflexões da História Cultural. Em uma abordagem crítica aos estudiosos do folclore do Século XVIII, que viam os costumes da plebe como resíduos do passado, provocando um distanciamento que implicou no julgamento de tais “costumes” como inferiores remanescentes do passado. O que era lamentado por historiador ao entender que o “costume” deveria ser estudado em suas especificidades, como algo ocorrendo de forma particular, moldado pelas vivências, ambiente e mentalidades.

Mas o que se perdeu, ao considerar os costumes (plurais) como discretas sobrevivências, foi o sentido intenso do costume no singular (embora com variadas formas de expressão) – o costume, não como posterior a algo, mas como sui generis: ambiência, mentalité um vocabulário completo de discurso, de legitimação e de expectativa (THOMPSON, 1998, p.14).

A consciência da classe trabalhadora, como sinal de resistência aos abusos da produção capitalista, incitou o citado historiador a fazer uma análise valorizando os “costumes” e comportamentos formadores de uma identidade social. Enfatizando as relações entre resistência social e as tradições (em constantes mudanças) das classes populares. Esses costumes tradicionais, defendidos ardentemente pelas camadas mais baixas, aliados as insurgências ocorridas no período, eram para o historiador, características fundamentais no moldar da identidade social no que diz respeito à cultura.

65 Nessa perspectiva, compreendemos os povos indígenas no Nordeste como resultado não apenas do extenso contato com o colonizador, mas de um histórico de mobilizações e resistência, inclusive no aspecto sociocultural. Deste modo, esconderam suas expressões socioculturais, quando foi necessário à sua sobrevivência, afirmando-a nesses mesmos termos enquanto índios diante dos órgãos oficiais. Considerando fundamentais as manifestações dos indígenas que recorreram e ainda recorrem aos aspectos socioculturais como meios para mobilizações nas reivindicações por direitos.

Outra perspectiva de trabalho converge com a atuação dos juízes na busca pelas provas, porém, diferente dos mesmos, não consiste em um julgamento preocupado apenas com os acontecimentos que poderiam vir a trazer consequências individuais ao “réu”. As situações não são analisadas a fim de trazer explicações convincentes para um dado acontecimento, não se limitando a apenas um indivíduo, nem estabelecendo sentenças:

Juízes e historiadores se associam pela preocupação com a definição dos fatos, no sentido mais amplo do termo, incluindo tudo o que se inscreve, de alguma forma, na realidade: até as opiniões que influem nos mercados financeiros (para os juízes), até os mitos e as lendas (para os historiadores) e assim por diante. Juízes e historiadores estão vinculados pela busca das provas. A essa dupla convergência corresponde uma divergência em dois pontos fundamentais. Os juízes dão sentenças, os historiadores não; os juízes se ocupam apenas de eventos que implicam responsabilidades individuais, os historiadores não conhecem essa limitação. (GINZBURG, 2002, p.62).

O citado e conhecido historiador influenciado pela Antropologia, refletiu a partir da História Cultural, preocupando-se com as perspectivas acerca do coletivo, de maneira diferenciada, que não se restringisse às particularidades de um grupo. Assim, abordou a Cultura Popular evidenciando os protagonismos em suas crenças, atitudes e comportamentos em um tempo e momento histórico.

O conceito “circularidade cultural” utilizado por Ginzburg, colocou em questão a ideia de uma cultura engessada ou de assimilação cultural unilateral, tão discutida nos séculos XIX e XX por antropólogos e historiadores. E ainda na atualidade no imaginário da sociedade, principalmente, quando se trata dos índios no Nordeste. Esse conceito prevê o dinamismo entre as culturas, quando evidencia as relações de trocas de aspectos culturais, desarticulando ideais de uma hegemonia cultural. Entendendo assim, a necessidade de o historiador pesquisar alargando seu arcabouço teórico, objetivando a interpretação de códigos, sem desconsiderar os processos históricos.

Os conceitos de memória individual e memória coletiva (HALBWACHS, 2003), favorecem a compreensão das narrativas dos povos indígenas acerca de sua história, quando o autor afirmou que toda lembrança é construída em uma coletividade, partindo do pressuposto

66 que a memória individual é intimamente relacionada com a memória coletiva, tornando-se dependente dela.

Dessa forma, “A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (HALBWACHS, 2003, p. 75-76). Logo, a partir dessas memórias fundamentadas em vivências, esse espaço construído serve de referências, também, para reconstrução de um passado por meio das percepções dos membros do grupo. Deste modo, para registrar essas memórias no efetivo conhecimento dos processos que desencadearam as emergências étnicas, traz-se a luz imagens, que não são importantes pelo ineditismo, mas pela análise diferenciada de situações, alcançadas por meio das narrativas orais, combinadas com a análise de lembranças pessoais e a documentação analisada.

Sobre as relações entre os índios e o SPI, é preciso considerar as relações sociais que determinaram os seus termos e seu modo de operação. Deste modo, é necessário discutir maneiras de explicitar a combinação de operações que compõem uma cultura e as lógicas que movem os fazeres acionados pelos cotidianos, reconhecendo os discursos táticos envolvidos nas relações.

A partir da introdução e análises das narrativas orais, bastante exploradas em outras áreas das Ciências Sociais, são indiscutivelmente experiências vivenciadas (ALBERTI, 2004). Assim, torna-se possível perpetrar uma redefinição nas práticas e métodos da pesquisa, extrapolando as limitações do Positivismo, rompendo o silêncio de uma história estatal elitizada. Os arquivos orais proporcionaram uma aproximação com os antes excluídos da História, os ditos dominados, percebidos pela História Oral, também, enquanto sujeitos da/na História.