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2. Bandas militares: os brasões sonoros da aristocracia

2.3 O éthos militar

A presença multiplicada que aos poucos as bandas militares foram adquirindo a partir de 1830 parece ter contribuído para a criação de hábitos característicos que ainda hoje podem ser encontrados nas bandas de música civis, cuja origem ou vetor de difusão foram as bandas militares. Existiram outros conjuntos de sopro e percussão, menores e mais informalmente organizados mas, toda vez que se fazia necessária uma certa pompa oficial, as bandas tinham preferência. Foi o que ocorreu em Campinas (SP), em 1846, durante a recepção do imperador dom Pedro II. Para esta ocasião, a Câmara Municipal incumbiu Manoel José Gomes de preparar toda a música necessária

para as solenidades da visita do imperador. Uma das atrações musicais planejadas foi uma banda de música, criada especialmente para a ocasião, e que recebeu o sugestivo nome de Banda Marcial (NOGUEIRA, 1997, p. 57). Não consta que o conjunto de Manoel José Gomes tivesse ligações com alguma unidade militar que justificasse o adjetivo marcial em sua denominação; evidentemente tratava-se de um conjunto privado que, devido à função que executava naquele momento - prover a música para as aparições públicas do imperador - procurava reproduzir características que os conjuntos militares apresentavam. No ano seguinte, 1847, a Banda Marcial transformou-se na Orquestra e Banda Campineira, seguindo assim um caminho trilhado por outras corporações musicais, que possuíam ensambles adequados aos diversos ambientes onde a música fosse necessária: teatros, igrejas, ruas e praças.

A incorporação deste éthos militar não se reduzia ao nome do conjunto ou ao repertório; a aparência também era um fator importante. Disso é sintomático o uso de uniformes que se inspiravam nas fardas militares. Carlos Gomes, filho de Manuel José Gomes e integrante da Banda Marcial durante a infância, em carta a José Egídio Campos Júnior comentou este aspecto ao descrever o “mano Juca tocando 4ª clarineta e vestido de ‘sordado’, com barretina de papelão, de

espada que metia medo à gente” (NOGUEIRA, 1997, p. 61).77

A figura 1278 é uma das várias ilustrações feitas por Washt Rodrigues para o álbum de

Uniformes do Exército Brasileiro, organizado por Gustavo Barroso por ocasião das comemorações do

centenário da Independência, em 1922. Esta ilustração, como todas as outras, foi feita com base em documentos históricos, no caso específico da figura apresentada, figurinos preservados no Arquivo Nacional. Segundo Barroso, até aproximadamente 1855, o uniforme dos músicos era “pura fantasia” pois cada batalhão fardava seus músicos de acordo com um plano, apresentado pelo comandante ao ministro da Guerra para sua aprovação (BARROSO, RODRIGUES, 1922, p. 44).

O uso de uniformes inspirados em modelos militares pelas bandas civis foi largamente difundido pelo século XIX. Em seu estudo sobre as bandas de Campos dos Goitacazes (RJ), José

75 Sobre a “banda alemã” e outros grupos que atuavam no Rio de Janeiro, ver WEHRS, 2000. 76 AN, DPESN, masso 44.

77 O “mano Juca” é José Pedro de Santana Gomes (1834-1908), terceiro filho de Manuel José Gomes e irmão mais velho de

Jorge Pinto Santiago observa que, ainda no século XX, as duas bandas civis criadas por volta de 1870 e que ele estudou na década de 1990 mantiveram por longo tempo, em função da tradição, fardas que possuíam “exatamente as características dos uniformes militares” (SANTIAGO, 1992, p. 114).

Isto também pode ser observado nas fotografias das corporações musicais. A fotografia na figura 1379 foi feita em 1915 e retrata a Banda São Benedito, de Botucatu (SP). Observe-se que o

uniforme do mestre da banda, Lázaro G. de Oliveira (na primeira fila, ao centro, segurando a batuta) é o único dotado de dragona; este ornamento franjado, utilizado ao ombro também é um elemento típico de identificação e distinção na hierarquia do exército. Outra característica que mostra a influência militar é a maneira como os músicos da banda estão postados, em posição de sentido, isto é, calcanhares unidos, cabeça apontando para frente, peito estufado e palmas das mãos apoiadas nas laterais das coxas.

A permeabilidade das bandas de música à influência militar também foi utilizada pelo comércio de instrumentos e de músicas. No Rio de Janeiro, o Grande Armazém de Pianos e Música anunciava no Almanaque Laemmert de 1845 “excelentes instrumentos para Música Militar, e de

Orchestra”. Em 1849, texto praticamente idêntico foi publicado com a ilustração apresentada na figura

14. Na parte superior lê-se “Instrumentos Militares”, na parte inferior foram representados instrumentos de sopro e percussão, entre estes, um chapéu chinês, ou árvore de campainha.

Outra loja carioca, a CARDOZO e C.a, confeccionava seu catálogo de instrumentos de

música desde 1871, cuja principal função era facilitar as compras dos clientes do interior. Na segunda edição do catálogo, de 1879, o termo banda militar aparece ao lado de orquestra mostrando a percepção que o ensamble formado por instrumentos de sopro e percussão - a banda de música - possuía características reputadas aos militares. Observe-se também na descrição o destaque dado à origem importada dos instrumentos:

Conhecedores de muitos defeitos inerentes às diversas classes de instrumentos resolvemos tratar em Paris a fabricação especial de muitos

78

BARROSO, RODRIGUES, 1922. 79

deles para a nossa casa, com o fim exclusivo de proporcionarmos aos nossos fregueses do interior a aquisição de um instrumental completamente uniforme na sua afinação, e volume de som e timbre perfeitamente proporcionados. O péssimo efeito do conjunto de muitas bandas militares ou mesmo orquestras provém da desigualdade relativa entre os instrumentos que as compõem, de modo que esta circunstância torna improfícuo todo o trabalho de execução, dando até injusta idéia do bom gosto dos mestres. ¶ Os instrumentos de fabricação especial para a casa Euterpe além de serem manufaturados com o maior escrúpulo, são depois examinados um por um, e só nos são remetidos de Paris depois de passados por esta prova (Catálogo CARDOZO & C.ª 1879, p. 21).

Tais instrumentos não eram vendidos apenas às bandas militares, os conjuntos civis, que àquela época já existiam em número razoável, também formavam mercado importante. Isto é o que mostra um oficleide80 pertencente ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, inventariado sob a cora

1750. O instrumento foi comprado da loja CARDOZO, como se depreende da inscrição gravada na campana do instrumento: “Cardoso e C.re

/ À Euterpe Rio de Janeiro”.Na mesma cidade, a Sociedade Musical Senhor Bom Jesus de Matosinhos, possui exemplar do mesmo instrumento feito por Gautrot, fabricante francês, e importado por outra loja carioca, a Casa Minerva.81

Além dos instrumentos tais lojas também vendiam músicas. O catálogo da casa comercial A Minerva, de 1872, iniciava a seção dedicada à venda de partes e partituras anunciando música para banda. Eram dobrados, marchas, quadrilhas, polcas, schottisches, valsas, redovas, polonesas, mazurcas, varsovianas, aberturas e fantasias, todas, sem nenhuma exceção, seguidas da expressão “para Banda Militar”; os compositores eram todos estrangeiros: “E Marie, Léon Chic, Donard, Brunet,

Coutner, J. Kufner, J. Ascher, Passloup, Blanchetaux, G. Fisher, Offenbach e muitos outros” (A Minerva, 1872, p. 66-67). À exceção das marchas e dobrados, tais gêneros musicais estavam muito

longe de serem descritos como “militares”. Tal repertório estava em voga no segundo reinado e transitava por outros círculos que integrava o que Cristina Magaldi chamou de Subcultura Operática: adaptações de óperas e outros gêneros de música teatral que extrapolavam o restrito círculo das casas de óperas e alcançavam contextos mais informais como as casas da recém formada burguesia carioca, os salões de danças, as paradas carnavalescas, as ruas (MAGALDI, 2004, p. 55), sem deixar de participar, conspicuamente, do repertório das bandas de música.

80 N.º inventario 1750.

Figura 11: Bandas de negros no Vale do Paraíba

No vão inferior dos Castelos se formavam quartos muito decentes,

onde se serviu gratuitamente, e com

profusão ao povo os refrescos, que qualquer

apetecia, e no alto dos mesmos castelos se colocou em cada um deles um coro de música

militar, que tocava de espaço em espaço muito

agradáveis sinfonias (SANTOS, 1981, p. 178,

v. 172).

Figura 13: Banda São Benedito em Botucatu (SP) em 1915

3. DIREITO, LEGISLAÇÃO ADMINISTRATIVA E HISTÓRIA SERIAL: CONSIDERAÇÕES PARA A

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