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3. O regime actual 1 Questões gerais

3.5. O ónus da prova

Posto isto, uma ulterior questão é frequentemente debatida e prende-se em saber quem deve provar o justificado interesse próprio ou a relação de domínio ou de grupo. As questões “quem tem de provar?” e “o que tem de provar?” são sempre de difícil solução. Repare-se que a questão não se deve ater pelo justificado interesse próprio, uma vez que, pelo menos nas relações de domínio, a lei utiliza conceitos indeterminados. Os dois verdadeiros desafios de prova consistirão no justificado interesse próprio da sociedade garante, e na influência dominante exercida, uma vez que as relações de grupo não colocam dificuldades de maior.

Sobre o justificado interesse próprio da sociedade garante, mais uma vez, surgem à contenda Pedro de Albuquerque228 – que defende a aplicação do artigo 342.º e 343.º do CC fazendo-o incidir sobre a própria sociedade garante229– e Osório de Castro230– segundo o qual “o critério

enunciado no artigo 342.º do Código Civil não basta, mesmo em tese geral, para solucionar o problema do ónus da prova”, pelo que se a sociedade garante ou outro interessado invocarem a nulidade da garantia, não é a ela que cabe o ónus de alegar e provar a inexistência de justificado interesse próprio mas sim ao credor231 da entidade cuja dívida foi garantida. Esta é a conclusão

228 PEDRO DE ALBUQUERQUE, “Da Prestação …”, pp. 134 e ss.. Também neste sentido, por exemplo, LUÍS

SERPA OLIVEIRA, “Prestação de …”, p.402.

229 Cfr. o Ac. STJ de 6.2.1996 (Fernandes Magalhães); o Ac. STJ de 21.9.2000 (Abel Freire); o Ac. TRC

de 4.6.2002 (Artur Dias); o Ac. TRL de 13.11.2003 (Graça Amaral); o Ac. TRE de 5.2.2004 (Pereira Batista); e o Ac. STJ de 17.6.2004 (Quirino Soares).

230 CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, “De Novo …”, p. 846, acompanhado dos demais seguidores desta

orientação.

231 Ac. TRL de 27.1.2000 (Silva Salazar); e Ac. TRL de 16.12.2003 (Tibério Silva), que assim conclui

75 natural a que o segundo chega por ver elencadas no artigo 6.º n.º 3 verdadeiras excepções à incapacidade das sociedades.

Cremos porém que a questão deve ser resolvida com base nas regras gerais. Ter o ónus da prova não significa a exclusividade da prova232. Trata-se, em bom rigor, de ter um ónus de iniciativa

da prova, que se impõe, regra geral, a quem alega os factos do seu direito. Tem-se conveniência em provar os factos, pois as consequências negativas da sua falta desembocam em factos não provados. As regras sobre o ónus da prova são vitais para qualquer processo e para a descoberta da verdade material.

Por um lado, quem considerar que o artigo 6.º n.º 3 opera como uma excepção à nulidade que decorreria da natural incapacidade das sociedades em prestar garantias, enquadra o ónus da prova do lado do credor. É que, se for assim, a verificação de um justificado interesse próprio actua como facto impeditivo da incapacidade e compete àquele contra quem a invocação é feita (artigo 342.º n.º 2 do CC). Ou seja, por exemplo, se a sociedade garante invoca a nulidade da garantia por incapacidade, tudo o que terá de provar é a prestação da garantia, facto constitutivo do seu direito (n.º 1 do artigo 341.º do CC), recaindo sobre o credor a prova de que essa garantia foi prestada ao abrigo de um justificado interesse próprio, isto é, o facto impeditivo da incapacidade. Ao credor, naturalmente, convém-lhe provar a existência de interesse próprio da garante, de forma a beneficiar da garantia.

Porém, já se referiu que se considera que o fim da sociedade e o justificado interesse próprio têm conteúdos idênticos e são, por isso, difíceis de destrinçar. Se o artigo 6.º n.º 3 se aplica e se conclui pela validade do negócio em apreciação é porque a garantia é válida e a sociedade é capaz de a prestar uma vez que tem um justificado interesse próprio na prestação da garantia. E se tem interesse, esse acto está compreendido naqueles actos que lhe permitem atingir o seu fim, na acepção do n.º 1 do art. 6.º. Os n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º não são contraditórios mas antes convergentes, não sendo viável destrinçá-los. Isso pode ser formulado pela negativa, como o faz quem vê no artigo 6.º n.º 3 uma excepção à incapacidade – é a inexistência de um proveito da sociedade garante que impede a capacidade –, ou pela positiva – é porque existe um proveito da sociedade garante que esta é capaz. Ou seja, não há por que negar a negação, considerando as circunstâncias do artigo 6.º n.º 3 como factos impeditivos da incapacidade da sociedade. A existência de uma vantagem, nos termos já referidos, pressupõe o respeito pelo escopo das sociedades. Nesse aspecto, como os demais actos em proveito da sociedade, eles encerram um fim em si próprios. Dito de outra forma, a existência de um justificado interesse próprio constitui a capacidade da sociedade garante. O que nos leva a concluir que se a sociedade

232 JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum: à Luz do Código Revisto, Coimbra: Coimbra

76 garante invoca a nulidade da garantia por incapacidade – porque quem alega, deve provar o que alega233 – terá de provar que prestou a garantia, sem justificado interesse próprio. O autor

formulará o pedido fundamentando de facto e de direito. Mas conjuntamente com o pedido, estará a causa de pedir – e os factos constitutivos que se querem fazer valer ou negar, ou os factos integrantes do facto cuja existência ou inexistência se afirma234.

A prova do justificado interesse próprio, como se percebe, não impõe qualquer diligência acrescida à garante, uma vez que não poderá provar algo que se alega não existir. Contudo, não se julgue que a prova da prestação da garantia é perfeitamente inócua, uma vez que é possível que nela apenas resida a vantagem para a garante, constitutiva da sua capacidade235.

À parte contrária incumbirá a contraprova, que terá necessariamente de encontrar uma vantagem da garante, sob pena de nulidade da garantia – uma vez que a falta de justificado interesse próprio é requisito e facto impeditivo para a incapacidade das sociedades comerciais. Por outras palavras, na maioria dos casos, será ao credor que compete a prova de que essa garantia foi prestada ao abrigo de um justificado interesse próprio – que terá apenas de cumprir os requisitos supra enunciados. Mas nem sempre assim sucede.

Se, porém, for um credor da sociedade garante a invocar a nulidade da garantia, estamos perante um cenário distinto. Esse credor terá de provar a prestação de uma garantia da sociedade, sem justificado interesse próprio da mesma. Mais uma vez, na generalidade das situações, através dessa garantia, não poderá fazer prova de um interesse que supõe não existir. Logo, caberá à sociedade garante a prova de que obteve uma vantagem – e teve interesse próprio – como facto gerador da sua capacidade. A verdade dos factos trazida a juízo é sempre subjectiva236. Mas esta

subjectividade aumenta exponencialmente com a utilização de conceitos indeterminados, como o interesse próprio.

Não basta, para que se verifique uma vantagem da garante, que esta tenha expressamente declarado ter interesse em garantir a dívida237. E para efeitos do ónus da prova, pese embora a

233 RUI MANUEL DE FREITAS RANGEL, O Ónus da Prova no Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra:

Almedina, 2002, p. 152.

234 JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção ..., pp. 37 e 182 e ss..

235 Por vezes, o interesse próprio é intrínseco à garantia. Pense-se num caso em que a sociedade

participante detém 50% do capital social da participada. Por princípio, não exercerá uma influência dominante sobre a sociedade participada. Mas o interesse que terá no incremento dos negócios da sua sociedade filha justificará a prestação da garantia. Provando-se a garantia e a participação em 50% de uma sociedade noutra, é notório que existe esse interesse – e só assim não sucederá se a garantia for prestada para assegurar dívidas que desrespeitem o escopo lucrativo da participada.

236 RUI MANUEL DE FREITAS RANGEL, O Ónus ..., p. 16.

237 Ac. do TRP de 20.5.1999 (Custódio Montes); Ac. TRL de 27.1.2000 (Silva Salazar); Ac. do TRC de

17.10.2000 (Ferreira de Barros). E contra, Ac. do STJ de 21.09.2000 (Abel Freire); Ac. TRE de 5.2.2004 (Pereira Batista).

77 prática demonstre que, na esmagadora maioria das vezes, o beneficiário da garantia será um banco238 e tomará as devidas precauções, a verificação ou não dessa circunstância não altera o

que fica referido sobre o ónus da prova. Os deveres acrescidos aos bancos e demais instituições financeiras (artigos 73.º e seguintes do RGICSF) não interferem nesta matéria.

No que toca à influência dominante, como bem afirma João Labareda239, a verificação de uma

das presunções do n.º 2 do artigo 486.º não assegura inexoravelmente a existência de uma relação de domínio entre as sociedades consideradas e, por isso, não obsta à discussão da validade das garantias prestadas. Estas presunções são apenas algumas das situações passíveis de se configurarem como influência dominante. Na sua verificação, extrai-se a ilação de que há influência dominante. Nada impede que alguém alegue e prove que entre duas sociedades existe uma influência dominante, fora dos casos deste preceito. Mais uma vez, a prova caberá a quem alegar os factos. Além de que, mesmo nas situações enunciadas pelo artigo 486.º n.º 2 se admite prova em contrário. Nestes casos, perante a demonstração de uma das presunções do artigo 486.º n.º 2, compete à garante a prova de que, pese embora a ocorrência de facto presuntivo, não existe efectivamente uma relação de domínio traduzida na influência dominante de si sobre outra sociedade.

A prova deve ater-se às circunstâncias demonstradas no momento da prestação da garantia ou que o credor conhecia ou pelo menos devia conhecer, se tivesse agido com normal zelo e diligência.

A quem invocar uma relação de domínio com base nas presunções do artigo 486.º, aproveitará automaticamente a capacidade de garantir a dívida. Isto é, ao prestar uma garantia, neste caso, bastará provar que a garante tem a faculdade de designar mais de metade dos membros do órgão de fiscalização da dependente, por exemplo. Torna-se desnecessário provar a influência dominante, que se presume. Só aqui nos parece existir uma verdadeira e expressa inversão do ónus da prova.

A prova é uma realidade dinâmica, que leva a que o juiz forme a sua convicção. Naturalmente que as regras sobre o ónus da prova perdem preponderância se todos os factos relevantes forem trazidos ao processo. Se assim for, não interessa quem os trouxe, pois a verdade material estará ao alcance do decisor.

Resumindo, o artigo 6.º n.º 3 não é uma presunção legal, nem uma norma que dispense ou libere o ónus da prova. Argumento decisivo para esta orientação são as razões que levam à inversão do ónus da prova. Esta técnica processual está associada ao equilíbrio e ponderação entre as

238 JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de ..., pp., 193 e ss.. 239 JOÃO LABAREDA, “Nota sobre ...”, pp. 175 e ss..

78 vantagens e desvantagens que lhe são inerentes. E se é verdade que o justificado interesse próprio pode ser identificado objectivamente e sem grave prejuízo das oportunidades de negócio, não o é menos que não há qualquer justificação material para proceder a essa inversão: nenhum interesse superior é salvaguardado por se desonerar o autor da prova do justificado interesse próprio.

Uma vez assente que se verifica a capacidade, para que os actos sejam ineficazes, não restam dúvidas que é às sociedades por quotas, anónimas e em comandita por acções que cabe provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias, que o acto extravasava o objecto – artigos 260.º n.º 2, 409.º n.º 2 e 478.º.

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