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2. QUAL A CLÍNICA DO ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO?

2.3 O Acompanhamento Terapêutico no campo da saúde mental

O movimento da Reforma Psiquiátrica tem implicado em um trabalho que foca em um campo fora do hospital, ou seja, saindo desse meio e se inserindo em um contexto de vínculos sociais em comunidades locais. Desse modo, de acordo com Palombini (2006) e Silva e Silva (2006), o acompanhamento terapêutico na rede pública teve seu surgimento apenas no contexto de uma política de saúde mental baseada na construção de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico/manicômios, ou seja, a partir da Reforma Psiquiátrica, quando a cidade passa a ser o espaço de experiência e acompanhamento da loucura e não mais os asilos. A implementação da mesma colocou em análise o funcionamento da rede. Nesse contexto, o profissional AT surge na rede de saúde mental acompanhando o sujeito com o objetivo de reinseri-lo socialmente na vida cotidiana, influenciando diretamente a construção de redes com capacidade de superar os hospitais psiquiátricos/manicômios. Porém, se difundir em um espaço aberto para esse tipo de atuação, torna-se um desafio para o âmbito de saúde mental (PALOMBINI, 2006; PALOMBINI et al, 2008; SILVEIRA et al, 2014).

Historicamente, para Silva e Silva (2006), o surgimento dos psicofármacos influenciou na substituição gradual da camisa-de-força pelo controle químico do comportamento considerado “desviante”, apontando um novo direcionamento no tratamento das “doenças mentais”. O cuidado, que anteriormente estava associado a programas mecânicos e visíveis como a contenção física, a camisa-de-força, as amarras, os eletrochoques, entre outros, passa para um cuidado voltado ao controle,

[...] ou seja, o sujeito tomado por louco, doente e perigoso “consegue sair” da estrutura manicomial desde que leve consigo, no mínimo, o suporte químico dessas mesmas estruturas, representado pelos psicofármacos, e seja acompanhado nessa circulação por um “agente terapêutico”, o acompanhante, o auxiliar, o atendente (SILVA; SILVA, 2006, p. 213).

Nesse contexto, pode-se perceber que não é à toa que, inicialmente, a função do at estava associada ao controle da ingestão de medicamentos e a vigilância do comportamento fora da instituição manicomial. Ou seja, o espaço urbano era lugar

de errância – mas, uma errância controlada de maneira física e química (SILVA; SILVA, 2006).

Porém, o AT busca hoje o estabelecimento de novas formas de atenção à saúde mental, contrária aos de uma sociedade disciplinar, “O Acompanhamento Terapêutico constitui-se, então, em paradigma da direção clínico-política em que uma dada concepção da reforma psiquiátrica pretende mover-se.” (PALOMBINI, 2006, p. 124). Feita a céu aberto, a clínica não se enquadra mais nos parâmetros manicomais, se aproximando de decisões coletivas e construções autônomas, possibilitando, assim, os múltiplos territórios, os conflitos e os imprevistos (PALOMBINI, 2006).

Em sua prática, o AT está inserido em uma equipe, através da qual o mesmo recebe um apoio por meio de supervisões – realizadas individualmente ou em grupo –, um espaço para discussão dos casos, aconselhamento e troca de informações (SILVEIRA et al, 2014). Porém, há modos distintos de discriminar o trabalho do AT nas equipes de saúde mental, seguindo algumas direções, sendo elas

1) A que privilegiava o encaminhamento, para o acompanhamento, dos casos perante os quais a equipe sentia-se impotente [...] nesses casos, o AT representava, para a equipe ‘a última cartada’ [...] o at via-se, muitas vezes, sozinho nessa empreitada, estando lançada sobre si toda a responsabilidade pelo curso de um tratamento a que a equipe parecia não dar mais crédito. 2) A que decidia os encaminhamentos com base em um prognóstico favorável, ou seja, onde o acompanhamento somava-se a um conjunto de procedimentos terapêuticos já em curso e ao qual o usuário vinha respondendo de forma positiva. O acompanhante era, então, um facilitador ou potencializador do processo terapêutico, cumprindo, geralmente, uma função pontual nesse processo (PALOMBINI et al, 2008, p. 79).

Assim, é evidente que a clínica do AT, por transitar no espaço intermediário entre instituição e espaços públicos, permite uma aproximação a indivíduos que se mostravam inacessíveis a qualquer outra proposta tradicional de tratamento. A população atendida do âmbito de saúde mental, frequentemente, não conta com suporte familiar ou social, sendo, muitas vezes, o único laço mantido com a própria instituição de saúde. O AT se faz uma proposta pertinente a esses casos por permitir

alcançar o sujeito em seu mundo interno (PALOMBINI et al, 2008). Assim, os passeios pelas regiões, a céu aberto, possibilitam ao acompanhante outra visão e experiência com o acompanhado, diferente do que é vivenciado no serviço. Essa diferença é levada pelo profissional AT a toda a equipe do serviço, exigindo um reposicionamento de estratégias com relação ao caso (PALOMBINI, 2006).

A clínica do AT enriquece o espaço terapêutico na medida em que lança o cotidiano no contexto do tratamento, identificando talentos, habilidades e estratégias de sobrevivência do paciente; conhecendo sua rotina, vivências, que são completamente ignoradas no contexto institucional. A partir do momento que o profissional at chega à equipe de saúde com uma série de informações sobre o paciente, a equipe acaba se reposicionando em relação ao caso, abandonando estratégias e até inserindo outros profissionais de outras áreas, transformando suas ações. Porém, segundo Palombini et al (2008, p. 83),

O AT não constitui um campo de saber específico, mas uma prática, para a qual confluem múltiplos saberes. Não é uma profissão regulamentada. Embora venha sendo incorporado com sucesso ao campo profissional da psicologia como uma modalidade terapêutica própria, seu exercício não pode ser circunscrito a esse campo [...] os conhecimentos produzidos no seu campo e pela psicanalise são ferramentas cruciais para imprimir uma direção clínica ao trabalho, dando expressão à sua potência terapêutica.

O que a prática clínica do AT busca é responder as necessidades de ordem social e assistencial, sendo uma prática que vem se constituindo como uma política pública de inclusão nas equipes de saúde mental. É nesse sentido que o AT se constitui como uma grande ferramenta ao processo da reforma psiquiátrica, buscando um alcance entre o sujeito e o social. O trabalho do profissional at é feito, nesse sentido, a partir dos pontos oferecidos pelo acompanhado, buscando situar o sujeito, fazê-lo construir um lugar para si, e fazendo-o sentir parte do fluxo da vida. Ao sair à rua com o acompanhado há uma nova cidade que se emerge, onde tudo se altera, os papéis desempenhados nessas situações são diversos e inusitados. A própria cidade pode sofrer transformações, pois esses encontros têm potência para perturbar a cultura vigente, modificando a ideologia a respeito da loucura (PALOMBINI et al, 2008).

Desse modo, a relação entre sujeito e instituição passa por transformações, pois, segundo Palombini et al (2008, p. 115)

[...] os usuários dos serviços [...] encontravam-se enclausurados na instituição Manicômio, que transcende as paredes dos hospitais psiquiátricos e alcança a rua, constituindo o silencioso – por vezes não tão silencioso assim – do discurso cultural. Tanto aquele que há muito tempo chamava o hospício de casa quanto o que freqüentava um serviço aberto sem nunca ter se submetido à internação sofriam profundamente os efeitos de uma alienação extrínseca à sua condição psíquica.

Os requerimentos de instituições e Centros de Saúde Mental para a presença de um profissional AT em seu meio vem aumentado cada vez mais, evidenciando o valor e eficácia desse dispositivo. Assim, o trabalho na rede pública em saúde mental vem se desenvolvendo no sentido de criar e instituir dispositivos de cuidado, como o AT, pois há uma necessidade de introduzir no serviço público dispositivos inovadores de cuidado que estejam em consonância com a Reforma Psiquiátrica. O at, nesse contexto, é mais um profissional que integra a equipe de saúde, sem ser superior ou inferior a outro profissional, contribuindo para a inserção do sujeito e criando vias de subjetivação para os mesmos (CABRAL, 2005; MAUER; RESNIZKY, 2008).