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O alcance da clínica psicanalítica nos dispositivos psicossociais

5. REVISÃO DE LITERATURA

5.3. O alcance da clínica psicanalítica nos dispositivos psicossociais

Historicamente, a instância clínica e, em particular, a psicanalítica, foi percebida como problemática na paisagem da atenção psicossocial, na medida em que era interpelada como herdeira da prática individualista que se desejava desconstruir. A clínica, quando exercida em caráter individual, retrataria a opressão da figura de autoridade (psiquiatra, psicólogo, psicanalista) expondo a insensibilidade deste modelo com as determinações sócio culturais, visto que operavam, privadamente, pelo “interior”. A posição cautelosa percebida no campo psicossocial encontra-se alicerçada na percepção de que eram os profissionais deste segmento os protagonistas do modelo de exclusão ao qual estavam submetidos os sujeitos com grave sofrimento psíquico.

Segundo Bezerra e Rinaldi (2009), a abordagem clínica comparece secundarizada por estar associada à dimensão “psi”, qualificação que respaldaria “práticas refinadas de segregação, rotulação e medicalização”. Essa leitura se faz presente nos ensinamentos de Basaglia que, de acordo com Viganó (2006) priorizaria a dimensão social como revolucionária nas questões relativas à subjetividade, contestando a relação desta com a psiquiatria e a psicanálise. Amparados nessa lógica, a ênfase dos novos dispositivos clínicos recai sobre as intervenções que têm como meta o caráter de reabilitação e reinserção psicossocial, consagradas numa série de aquisições relativas à noção de cidadania (trabalho, alimentação, deslocamento, cuidado, família, renda).

Neste sentido, a proposta que sustenta a entrada da clínica psicanalítica na saúde mental é aquela que preserva os princípios orientadores da atenção psicossocial, como o acolhimento, a convivência, o coletivo e o cuidado, mas que indaga sobre a pertinência de distinguir o individuo- portador de direitos civis- da noção de sujeito formulada pela psicanálise. Rinaldi (2005) evoca a distinção que a psicanálise introduz quando articula o sujeito ao inconsciente, definindo-o não como alheio aos fenômenos psicopatológicos em que vive, mas como aquele que se evidencia no sintoma, logo resultado dos efeitos da desnaturalização do corpo com a entrada na linguagem. Dessa forma, distante de

qualquer conduta moralizadora e adaptadora, o analista torna-se um aliado na consolidação do projeto da reforma por sua intervenção ratificar a proposta humanizadora reivindicada pelo movimento reformista.

Esta concepção aparece em Ribeiro (2005), ao referir que a Reforma Psiquiátrica e a Psicanálise partem do pressuposto ético de que a loucura não é uma doença a ser curada, mas consiste numa produção plena de sentidos, a qual deve ganhar, no âmbito do sujeito, um lugar de existência subjetiva e territorial, que viabilize sua inscrição como ser no mundo em que vive. Assim, percebemos na argumentação da analista, seu esforço em ilustrar a afinidade teórica existente entre ambas, ligadas pela recusa a uma abordagem negativa de sintoma.

Um exemplo que nos ajuda a esclarecer esse ponto de vista, diz respeito à contribuição que o analista pode realizar junto à equipe de trabalho do reconhecimento da singularidade através do questionamento sobre a noção de sintoma. Regularmente, o sintoma, na sua figuração psíquica, tende a ser tomado como “positividade negativa”, quer dizer, como uma presença incômoda que precisa ser debelada e descaracterizada enquanto portadora de alguma mensagem que demanda interpretação para sua retirada. Nestes casos, a abordagem define-se pelo caráter de inconveniência da sua manifestação, fazendo prevalecer um desfecho processado pela ratificação de critérios diagnósticos de verniz cientifico ou da moralidade cotidiana. Com isso, a direção do tratamento descamba para a adjetivação do excedente pulsional como um atributo desprovido de sua potencialidade metafórica, circunstância que se afirma no avesso dos princípios da clínica freudiana, resultando em medidas que decretam ações essencialmente adaptativas e normalizadoras.

O caráter multidisciplinar destes serviços representa um dos maiores desafios à psicanálise na composição dessa clínica, na medida em que se faz necessário a elaboração de uma forma de trabalho que guarde a especificidade da práxis psicanalítica e supere os eventuais movimentos de resistências que podem ser suscitados nos integrantes das equipes de saúde mental. Esse mecanismo pode ser percebido na oposição simples à psicanálise ou manifesto na neutralização dos referenciais analíticos através da banalização dos mesmos, conforme destaca Figueiredo (2007):

A Psicanálise como saber de referência aparece através de certas indicações ou máximas, algumas já consagradas e mesmo tomadas triviais, como: valorizar a palavra do paciente; acolher o desejo do paciente em suas diferentes modalidades; tomar o delírio como uma tentativa de cura; tomar a transferência como fundamental no tratamento; supor a existência do

inconsciente e suas manifestações. O problema reside em saber como estas indicações se mantêm na prática, já que uma série de mal entendidos podem advir daí (p. 82).

A autora é favorável à idéia de que o psicanalista, neste cenário, deve definir sua função na direção do trabalho partilhado com outros profissionais da equipe, mesmo com alguns que não dominem o jargão psicanalítico, na medida em que o que conta é a transferência ao modus operandi que o analista imprime em sua clínica e nas discussões com a equipe. Com isso, deixa claro que a aceitação da psicanálise não se dará pela apropriação e circulação dos conceitos nos ambientes de trabalho senão pela forma como o analista produz seu ato e o sustenta com seus colegas de equipe. Ao dar mostras do seu fazer, inaugura uma diferença com as demais estruturas discursivas, ofertando seu ofício como operador clínico a ser demandado. Para Figueiredo (1997), o êxito do trabalho de um analista nesse contexto, passa longe da figura do especialista freqüentemente valorizada nesse cenário, tampouco deve almejar um lugar especial na instituição que o permita gozar de uma certa inconveniência. Para a autora, interessa à clínica, o analista que convive e que faz de sua diferença, uma especificidade. Só assim, ele convém (p.168).

A convivência entre os diferentes profissionais deve ser buscada e, no caso do analista, lhe cabe ser específico na sua atribuição, quer dizer, ele não é mais um técnico que sabe sobre uma parte do objeto/sujeito, representante do saber inconsciente que vai se somar aos demais fragmentos discursivos rumo à apreensão do saber absoluto. Ao invés disso, trabalha a partir da sua especificidade reintroduzindo a hiância que sobra na relação entre os saberes das especialidades. Mais precisamente, essa operação testemunha o fazer do analista como uma ferramenta que contribui na superação dos impasses daqueles tratamentos em que o não saber acerca do paciente, do sintoma, da instituição, se colocam como obstáculo para a equipe.

Este direcionamento clínico, no campo psicossocial, entretanto, não é assegurado tão facilmente, já que o atributo interdisciplinar dos CAPS indica uma diversidade teórica e política dos profissionais que compõem a equipe, resultando, muitas vezes, num ambiente tenso entre seus membros, repercutindo, por vezes, na prática do serviço. A respeito da diversidade discursiva, de maneira geral, costumamos centrar nossas reflexões acerca das aproximações e oposições que se produzem na articulação entre a clínica psicossocial e a clínica psicanalítica, sem fazer notar a alta pregnância que o modelo manicomial ainda faz vigorar e que se faz notar pela facilidade

com que o recurso à medicação, à internação e a estigmatização por rótulos são requeridos.

Para Monteiro & Queiros (2006), o analista avança e garante a presença da dimensão analítica ao “sustentar o lugar social do sujeito a partir de sua diferença, e não pelo universal dos direitos do cidadão. Isto pode ser feito através da posição de escuta do analista sobre o que há de especifico em cada sujeito” (p.113), registro que ratifica o entendimento de que a contribuição da psicanálise, nestes espaços passa por realçar as vias de acesso à produção subjetiva em seus diferentes lugares de produção e

manifestação pela verificação da emergência do sujeito, que é um, mas não é uno. Delgado (2008), por sua vez, sugere que este parâmetro não deve ser apenas um

objetivo a ser alcançado, mas um vetor importante da proposta clínica, no qual “é a direção do sujeito o operador que deve orientar o trabalho na direção da assunção da responsabilidade e da implicação de cada um, com suas vicissitudes [...] é a ética da psicanálise, cujo motor é o desejo, o que possibilita a direção do tratamento” (p.60).

Tal aposta revela a porta de entrada dos analistas nestes serviços, que se dá no reconhecimento de que todo e qualquer tratamento requer a responsabilização do usuário sobre as contingências da sua vida, as escolhas e saídas, conduta ética que ratifica a existência de um sujeito. Lacan (1964) nos interpela insistindo que “por nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis” (p. 873). Em sua declaração, procura evidenciar que o alcance da responsabilidade que interessa ao analista na direção do seu trabalho, não é aquela que cobra a correspondência ou a falta de correspondência com os fundamentos da moralidade cotidiana. A responsabilidade validada por Lacan é aquela que se presentifica no gozo do sintoma, nas manifestações do delírio, nas passagens ao ato, que, ao serem localizadas em seu caráter de desconhecimento, demandam o pronunciamento do sujeito. Por isso, a ética em que o analista está implicado no seu cotidiano clínico é aquela que faz a convocação do sujeito a dar conta daquilo que se evidencia pelo seu padecimento, expondo, ora a divisão psíquica, ora o fracasso da circunscrição pulsional pelo limite da cadeia simbólica.