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Mas, os túmulos são mudos. Os monumentos e as inscrições ajudam, mas não efetivam o sentimento que se deseja extrair dos vivos. Os túmulos, portanto, só poderiam “falar” se houvesse uma memória conservada que ajudaria a mediar os ensinamentos que os mortos teriam para os vivos. De acordo com Barrès, para a cons- trução de uma consciência nacional é imprescindível um elemento “mais inconsciente”. Esse elemento, que deveria trabalhar conjun- tamente com todos os outros esforços, é composto por bons senti- mentos, pela paixão que têm o poder de envolver, de seduzir através da empatia que sugere sentimentos de pertença, de amor pelo sagrado, auxiliando fortemente a construção nacional (DE- TIENNE, 2005, p. 127). Ou seja, as experiências “inconscientes” podem ser utilizadas para ampliarem o sucesso de projetos racio- nais de desenvolvimento do patriotismo, já que ser patriota é ser sensível aos símbolos. O respeito é construído a partir da emoção que se sente ao vislumbrar a bandeira, ao escutar o hino, ao visitar o túmulo do herói.

Lira parecia saber que para desenvolver um “diálogo” entre vivos e mortos, era preciso ter maior sensibilidade ou mesmo como ele diz: um “paladar histórico”. A valorização do sangue e do corpo, acompanhada da edificação de um mausoléu, monumentalizaria uma forma de visão sobre o passado que passaria necessariamente por um “apetite oral” (BANN, 1994, p. 143). O “amor à antiguidade” é tido assim como uma experiência sensorial: o prazer de degustar, de sentir o através do envelhecimento, o sabor diferenciado. Atentamo- -nos para a sensibilidade antiquária analisada por Stephen Bann, que mostra ser essa prática formada na passagem do século XVIII para o século XIX (BANN, 1994, p. 140).

Mas estamos falando de cadáveres, portanto como podemos conceber tal relação com o paladar? O trabalho do antiquário, o amante do passado, é importante para entendermos os mecanismos

de valorização da memória que se utiliza de “rótulos evocativos” para incrementar os fragmentos do passado:

Com certeza, está claro que a necessidade de Fausset em ornar seus achados fragmentários com estes rótulos evocativos, provocando re- pulsa ou prazer, dizem-nos menos sobre os próprios objetos do que sobre sua própria força de motivação (BANN, 1994, p. 142).

A força de motivação (arte de apontar, de rotular, de tornar visível), para o amor ou ódio, o prazer ou a repulsa, é importante para entendermos que essas práticas seguem nuances mais fortes do que o valor (superior ou inferior) do próprio fragmento do passado. Nesse sentido, Lira criou “rótulos evocativos” para os restos mortais dos sobralenses, a fim de transformar a sensação de repugnância sentida pelo cadáver em prazer de reverenciar o corpo do herói. Mas, ele mesmo tinha a consciência de que para tanto não bastava o ato de valorização. Era necessário ter “apetite histórico”: “Não sei se o nosso povo já possui o paladar histórico para saborear este alimento cultural, alimento aliás, próprio dos povos elevados” (grifo nos- so).227 Na opinião de Lira, o povo sobralense não estava envolvido o

bastante para entender a importância e a necessidade da construção de monumentos aos heróis e da sua presença no solo de origem. O envolvimento é o conceito que mais está adequado à experiência de sentidos que é própria do antiquário (BANN, 1994, p. 148), pois o sentido é completamente simbólico e não é imediatamente inteli- gível. É preciso envolver-se nessa teia de sensibilidades para envol- ver-se com as simbologias. Segundo Nietzsche:

O homem envolve-se com um cheiro de mofo; através da mania anti- quária, ele consegue mesmo reduzir uma disposição mais significativa, uma necessidade nobre, a uma sede insaciável por novidade, ou, mais corretamente, por antiguidade, e por tudo e por cada coisa; frequen- temente ele desce tão baixo que acaba por ficar satisfeito com qual- quer migalha de alimento e devora com prazer mesmo a poeira de minúcias bibliográficas (NIETZSCHE, 2003, p. 28-29).

227 OS RESTOS mortais dos que fizeram nossa história. Jornal Correio da Semana, Sobral, Cap.

O envolvimento implacável do antiquário é criticado por Niet- zsche que aponta o que Stephen Bann chama de perigo do antiquário que é a ação de fetichizar o fragmento em detrimento do todo (BANN, 1994, p. 150). Isso ocorre, pois o antiquário tem o olhar restrito pelo envolvimento: vê o próximo e o isolado, maximizando o pequeno, amplificando seus valores. Dessa forma ele não somente olha para trás com fidelidade, mas também exige a fidelidade dos outros (NIET- ZSCHE, 2003, p. 26-28).

O alimento cultural, segundo Padre Lira, só seria digerido de forma adequada com o aprimoramento de um paladar específico, que diferenciaria os cultos dos incultos. Essa experiência sensorial era um dos dispositivos simbólicos228 fundamentais para ajudar a

enfrentar o luto relativo ao passado. Luto que não era sofrido por todos. Dessa maneira, Lira admitia que nem todos os sobralenses possuíam a capacidade de degustação de uma especiaria cultural. As exigências impostas pelo autor sobre uma postura diferenciada com relação às coisas do passado estavam presentes no que ele escrevia. E não tinha a ver apenas com o aprimoramento sensorial, mas prin- cipalmente com o sentimento que se tinha sobre o passado da ci- dade. O amor ao passado podia ser entendido também como amor à memória da cidade.

Porém, não afirmamos que Padre Lira era um antiquário. Antes, confirmamos que são perceptíveis certas ideias próprias do pensa- mento antiquário em seus escritos. Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, a noção de quem era o “amante das coisas do passado” partia de um estereótipo do colecionista que se arrastava desde o século XVIII, configurando-o como um:

Erudito desprovido de um sentido mais contemporâneo para sua ativi- dade colecionista, alheio às questões centrais de seu tempo e devo- tando ao passado culto religioso, sacralizando os seus objetos pelo próprio fato de trazerem em si inscritas as marcas de um tempo pas- sado e distante como que um signo suficiente para o seu valor (GUIMARÃES, 2008, p. 43).

228 A experiência sensorial podia partir tanto do paladar, quanto do olfato, do tato e da visão.

Para tanto ver além de Guimarães, os exemplos sobre a experiência relativa à visão e ao olfato no trabalho de Bann e no muito citado romance histórico de Scott.

Deste modo não poderíamos encaixar Padre Lira nessa defi- nição uma vez que o “amor pelo passado” que ele indicava era moti- vado principalmente por questões do presente. Mesmo denotando alto valor aos “tempos de ouro” de Sobral, a insatisfação com a dita ruptura com o passado, não nos permite destacá-lo como alheio ao tempo presente. Na constituição da própria História como disciplina (organizando-se através de debates, do estabelecimento de seus ob- jetos e objetivos, regras e métodos) foram incorporados métodos da tradição antiquária no pensamento relativo ao passado (GUIMARÃES, 2008, p. 73). Dessa maneira, por mais que Lira não possa ser “defi- nido” como um historiador antiquário, não podemos negar que ele absorveu muito da inclinação antiquária.

É preciso enxergar criticamente as