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2.1. Paulo e o Helenismo

2.3.4. A vinda do Senhor

2.3.4.3. O anúncio salvífico da ressurreição

Da leitura desta perícope – 1Ts 4, 13-18 – 5, 11 – resulta, finalmente, um terceiro aspecto a destacar e a reflectir: o anúncio salvífico da ressurreição. Com efeito, o apóstolo destaca por diversas vezes ao longo da exortação o conteúdo kerygmático da sua pregação: Cristo morreu e ressuscitou por nós. Assim, em 1Ts 4, 14, exorta: “se acreditamos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus reunirá com Jesus os que em Jesus adormeceram”; e logo a seguir no v. 16, proclama: “os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro”. Por sua vez, em 1Ts 5, 9, Paulo anuncia: “Deus não nos destinou à ira mas à posse da salvação por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Para expressar a noção de “ressurreição”, o apóstolo utiliza em 1Ts 4, 14.16, o verbo anisqasqai362 que, literalmente, designa “levantar”, “subir”, “colocar-se de pé”363. Se no v.14 é anunciado que Deus irá agir salvificamente pela mediação de Jesus, no v.16, o encontro escatológico confere o protagonismo de Cristo na ressurreição364. Com efeito, como avança Malherbe, na comunidade de Tessalónica, a principal questão que suscitava interpelação e dúvida não era tanto como seriam ressuscitados os cristãos, mas fundamentalmente, como os vivos e os mortos tomariam parte no evento escatológico. Por sua vez, Paulo não pretende explicar a transformação dos corpos dos cristãos operada por tal evento (cf. 1Cor 15, 51-52; Fl 3, 20-21), antes a sequência dos momentos escatológicos, de forma a elucidar que os mortos ressuscitarão em primeiro lugar de maneita a tomarem parte da parusia de Cristo365. Já em 1Ts 5, 9, o apóstolo anuncia a iniciativa divina na obra da salvação, tema aliás recorrente ao longo da carta (cf. 1Ts 1, 4; 2, 2.4.12.16; 3, 3; 4, 7.9.14)366. Armados com as virtudes teologais, os fiéis de Tessalónica deveriam permanecer sóbrios, uma vez que Deus não os destinou para a ira, antes para que alcancem367 a salvação368. Com efeito, o apóstolo inicia este grande

362 Cf. KREMER, J., “anastasij”, in DENT, Vol. I, 260-275.

363 Em Rm 1, 4 e 1Cor 15, 12.13.21, Paulo utilizará o substantivo anastasij (ressurreição). Por sua vez, ao

descrever a ressurreição de Cristo operada por Deus, o apóstolo utilizará o verbo egeirein, na voz passiva, que traduz a ideia de “ser elevado”: Rm 6, 4.9; 10, 9 e 1Cor 15, 4.12.13. Cf. MALHERBE, A.J., The Letters to

the Thessalonians, 265. GREEN, The Letters, 219.

364 Cf. MALHERBE, A.J., The Letters to the Thessalonians, 273. GREEN, The Letters, 224. 365 Cf. M

ALHERBE, A.J., The Letters to the Thessalonians, 275.

366 Cf. M

ALHERBE, A.J., The Letters to the Thessalonians, 299. GREEN, The Letters, 242.

367 O termo original – peripoihsin – aqui traduzido por “alcançar”, pode também signicar “tomar posse”

(como em Ef 1, 14), ou “preservar” (como em Heb 10, 39) ou ainda “obter” (cf. 2Ts 2, 14). Cf. MALHERBE, A.J., The Letters to the Thessalonians, 299.

discurso escatológico explicitando o que Deus fará pelos que morreram (cf. 1Ts 4, 14), num desígnio de salvação que terá como mediador o Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 5, 9)369.

O anúncio salvífico da ressurreição anunciado por Paulo encontrou não raras dificuldades de compreensão e mesmo recusa frontal em diversos círculos sociais e filosóficos helenistas, o que fica iconicamente expresso pela reacção do areópago ateniense: “Até alguns filósofos epicuristas e estóicos trocavam impressões com ele. Uns diziam: «Que quererá dizer este papagaio?» Outros: «Parece que é um pregoeiro de deuses estrangeiros.» Isto, porque Paulo anunciava a Boa-Nova de Jesus e a ressurreição.” (Act 17, 18). Na verdade, a mensagem da ressureição resultava absurda e literalmente rídicula para tais contextos intelectuais: “Ao ouvirem falar da ressurreição dos mortos, uns começaram a troçar, enquanto outros disseram: «Ouvir-te-emos falar sobre isso ainda outra vez.»” (Act 17, 32).

Com efeito, a ideia de “ressurreição”, seja aplicada ao corpo de Jesus na sua Páscoa, seja aplicada aos corpos humanos, que Paulo advoga certa no encontro escatológico, é absolutamente espúrea ao pensamento estoico e epicurista. Como explica Michael Fattal, tal concepção de ressurreição “é inadmissível e incompreensível à vista da racionalidade filosófica”370, chegando mesmo a ser “uma aberração que se vê redobrada de uma outra inaptidão, aquela de um Deus que se faz homem, que morre, que ressuscita, e que faz da sua ressurreição a promessa da ressurreição da humanidade no final dos tempos”371. Se é verdade que o platonismo, o orfismo e os filósofos pitagóricos defendem uma particular concepção de imortalidade da alma, através das doutrinas da transmigração das almas (as almas que se incarnam em corpos diferentes) e da metensomatose (passagem de um corpo para outro corpo)372, tais concepções não

prevêm nem entendem a ideia de ressurreição dos corpos, uma vez que defendem que os corpos são por natureza corruptíveis e perecíveis373. Por sua vez, para o Estoicismo e

para o Epicurismo, a alma, embora entendida como princípio vital, psicológico,

369 Cf. G

REEN, The Letters, 242-243. Cf. MALHERBE, A.J., The Letters to the Thessalonians, 299.

370 F

ATTAL, MICHAEL, Saint Paul face aux philosophes épicuriens et stoïcïens, L’Harmattan, Paris, 2010, 42. Tradução própria.

371 FATTAL, M., Saint Paul face aux philosophes, 44. Tradução própria. 372 Cf. F

ATTAL, M., Saint Paul face aux philosophes, 42.

intelectual e espiritual do Homem 374 é co-natural ao corpo, numa perspectiva

radicalmente materialista e imanentista, que dita que, como toda a natureza corporal, também ela não está imune à corrupção e à morte375. Com efeito, apenas os deuses, para os epicuristas, escapam ao vórtice da corrupção376. Desde aqui se infere que, para

o Epicurismo, tão em voga neste contexto, uma vez que a alma humana é mortal, não podendo por isso participar da eternidade, também o corpo humano é incapaz de eternidade, o que derrogaria qualquer possibilidade de ressurreição corporal. Desde estas concepções filosóficas, o máximo que se poderia esperar, com a morte e a corrupção, seria o regresso aos elementos primordiais e originais, aqueles átomos eternos e incorruptíveis que compõem a matéria eterna377, pelo que a morte não representaria um aniquilamento total, antes uma dissolução378. Por sua vez, para o pensamento estoico, uma vez que tudo é corpo, também a alma é uma realidade física e corpórea, que participa da realidade divina, pelo que a morte é entendida como uma fusão ou união dos elementos físicos que compõe o Homem com o divino379. Como explica muito claramente Epíteto: “o que há em ti de fogo voltará ao fogo, o que é de terra em terra, o que há de pneuma à pneuma, o que é de água em água. Não há nem Hades, nem Caronte, nem Cócito [...], tudo é pleno de deuses”380.

Considerando o corpo humano como perecível e corruptível, a ideia de ressurreição resultava num absurdo: como algo perecível poderia retornar à vida? Contudo, se tantas vezes Paulo procurou inculturar-se no contexto e ambiente filosófico da comunidade cristã de Tessalónica, resulta claro que o apóstolo, usou de um modelo de aculturação, em que, repelindo as concepções de natureza mortal da alma e de corrupção do corpo, próprias das filosofias epicuristas e estoicas, anunciou desassombradamente, o evento salvífico da ressurreição. 374 Cf. SEDLEY, D., Epicureanism, 340. 375 Cf. F

ATTAL, M., Saint Paul face aux philosophes, 42. SEDLEY, D., Epicureanism, 348.

376 Cf. E

PICURO, Carta a Meneceo, 123, op. cit., 83. Cf. SEDLEY, D., Epicureanism, 346.

377 Cf. F

ATTAL, M., Saint Paul face aux philosophes, 43.

378 Cf. SEDLEY, D., Epicureanism, 348-349. 379 Cf. S

EDLEY, D., Stoicism, 142-145. FATTAL, M., Saint Paul face aux philosophes, 43.

CAPÍTULO 3

Desafios pastorais para uma inculturação da fé a partir de Paulo

Neste capítulo procuraremos apresentar o conceito de adaptabilidade no húmus da cultura helenista (primeira parte), para depois percebermos como Paulo assumiu e traduziu esta noção (segunda parte), e finalmente salientarmos alguns desafios pastorais decorrentes no processo de inculturação (terceira parte).

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