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CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.4 O APAGAMENTO COMO PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO

“O estágio zero é o momento máximo de exaustão da estrutura e anuncia a retomada do processo contínuo que é a gramaticalização.” (CASTILHO, 1997, p. 46)

Supomos que o apagamento dos clíticos de forma reflexiva, em particular, aquele cuja função é indeterminar, seja um dos estágios do processo de gramaticalização, pelo qual esses clíticos têm passado. Outros autores, como Vitral (2006) e Mateus et al (2003), também abordam que a existência de diferentes tipos de clíticos de forma reflexiva ao longo de diferentes sincronias seja produto de processo de gramaticalização e o primeiro autor chega a mencionar que o apagamento do clítico se é o estágio zero do processo.

2.4.1 O trajeto da gramaticalização:

Como dito na seção 2.2.3, o processo de gramaticalização passa por estágios ou fases. Nos estudos sobre gramaticalização, Givón (1979, apud CASTILHO, 1997) propõe que o percurso da gramaticalização seja o seguinte:

discurso> sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero.

De acordo com o paradigma da gramaticalização, no estágio do processo em que o item encontra-se mais gramaticalizado, zero ou apagamento, ele pode sofrer apagamento, por ter-se tornado anti-funcional. Segundo Castilho, (1997, p.46) “o estágio zero é o momento máximo de exaustão da estrutura, e anuncia a retomada do processo contínuo que é a gramaticalização.”

Em trabalho sobre gramaticalização dos clíticos de forma reflexiva, do período arcaico (séc. XIV ao XVI) ao português contemporâneo (séc. XX ao XXI), Vitral (2006) observou um considerável aumento da freqüência de uso do clítico se de caráter não-reflexivo (apassivador, ambíguo8

, indeterminador) no período moderno (séc. XVII e XIX) e,

8 O autor considera ambíguo o clítico que ocorre com verbo na terceira pessoa do singular e argumento interno singular.

particularmente, do ambíguo.

Sabe-se que, no processo de gramaticalização, nos estágios iniciais da mudança, formas/estruturas diferentes precisam possibilitar interpretação igual ou semelhante, condição para a aplicação da reanálise. A indeterminação do agente (semelhança entre as construções com se com sentido passivo e indeterminador) pode ter desencadeado um processo de reanálise sintática da antiga construção com se-apassivador. Nota-se, pois, que, segundo o estudo de Vitral (2006) e de acordo com os corpora analisados, a fase moderna da língua portuguesa é período que precede o aumento da freqüência de uso do se em contextos de indeterminação.

Segundo o paradigma funcional, a freqüência de uso interfere consideravelmente no processo de gramaticalização:

De acordo com essa trajetória de gramaticalização, progressivamente, via repetição, seu uso torna-se previsível e regular (...) Com o aumento da

freqüência de uso, essa construção tende a sofrer desgaste formal e funcional que poderá causar seu desaparecimento, dando início a um novo ciclo.” (FURTADO DA CUNHA, 2003, p.54)

A proposta de Vitral é que, durante esses períodos, o se reflexivo passou por processo de gramaticalização, originando clíticos, que passam a atuar em outros contextos e desempenham outras funções (estilístico9

, apassivador e indeterminador). Nesses clíticos a

noção precípua de reflexividade vai-se atenuando até desaparecer por completo (indeterminador).

Schmidt-Riese (2002, p.257) também admite que haja um processo de gramaticalização na formação dos clíticos de forma reflexiva, iniciado no reflexivo-recíproco:

Sob o ponto de vista diacrônico, o pseudo-reflexivo lexical [clítico que ocorre na voz média] ocuparia evidentemente uma posição intermediária em

um processo de gramaticalização. Na verdade, ele é diacronicamente atestado com anterioridade considerável em relação ao pseudo-reflexivo gramatical [se apassivador e indeterminador], em textos de baixa

latinidade. [grifo nosso]

Ainda segundo Vitral (2006, p.124), o indeterminador é o tipo mais gramaticalizado. Para ele, os se reflexivo e recíproco têm natureza de clítico, são [+argumental], ocupam posição sintática e detêm papel temático, desempenhando, portanto, uma função gramatical,

porém comportam propriedades “menos gramaticais” do que os demais clíticos (apassivador e indeterminador, por exemplo). No extremo oposto do processo, encontra-se o

indeterminador que, ao contrário do reflexo-recíproco não é um argumento, ou seja, é [-

argumental] e já não dispõe de traços de pessoa e número, apresentando, portanto, natureza de afixo, e não do clítico, comportamento “mais gramatical”.

Assim os clíticos recíproco e reflexivo estariam na penúltima fase do cline proposto por Hopper e Traugott (1993 apud VITRAL, 2006, p.129) para a trajetória da gramaticalização:

item lexical > item gramatical > clítico > afixo.

Com base também nesta proposta, acreditamos e esperamos então que o se-

indeterminador seja o mais propenso ao apagamento, uma vez que é o mais gramaticalizado

(ver quadro 1, p.37), o que nos leva à nossa terceira hipótese: HIPÓTESE 3:

A hierarquia do apagamento seria a seguinte:

a) função indeterminadora; b) função passiva; c) função reflexiva; d) função recíproca. O apagamento do clítico, em particular do indeterminador, seria o último estágio do processo de gramaticalização, pelo fato de o clítico, em determinados contextos, ter-se tornado anti-funcional. Ou seja, ao longo do processo de gramaticalização, perdeu traços e propriedades de sua forma-fonte (recíproco-reflexivo) e sofreu alterações no nível semântico. Se considerarmos que as mudanças no quadro pronominal do PB levaram a um rearranjo do paradigma verbal e, dentro deste quadro de mudança, a morfologia verbal de 3ª. pessoa10 passa a produzir interpretação de sujeito/agente indeterminado, muitas vezes podendo incluir até mesmo o falante, podemos dizer que o uso do clítico passa a ser menos funcional para indeterminar o sujeito/agente do que a morfologia de 3ª. pessoa, em particular do singular, o que pode contribuir para o seu apagamento. Além disso, ao longo destes cinco séculos, surgiram formas nominais e pronominais que também têm sido usadas para indeterminar (a

gente e você, por exemplo).

Acreditamos que o processo de gramaticalização tenha-se iniciado por volta do séc. XVI, quando surgem construções supostamente passivas, com VTD e sem concordância entre o argumento interno e o verbo, atestadas por Naro (1976), e tenha-se intensificado quando os

10 Incluímos a 3ª. pessoa do plural por ter uma abrangência genérica, podendo remeter a um todo não identificável.

clíticos passam a ser usados, com maior freqüência, junto a verbos intransitivos e transitivos indiretos, como atestado por Nunes (1995; 1991). Isso deve ter favorecido o enfraquecimento do sentido passivo, o conseqüente aumento do sentido impessoal e, em paralelo, diminuição dos valores dos traços categoriais e alteração da propriedade referência. Ao final dessa trajetória, já exaurido semanticamente, é substituído, em alguns contextos, por formas nominais e pronominais de indeterminação ou por estratégias de esquiva ou simplesmente apagado.